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por Rodolfo Collevatti

 

Somos todos médiuns?


O item 159 d´O Livro dos Médiuns afirma, no seu início, que todos somos “mais ou menos” médiuns:

Médium é toda pessoa que sente, num grau qualquer, a influência dos Espíritos. Essa faculdade é inerente ao homem e, por conseguinte, não constitui um privilégio exclusivo. Por isso mesmo, raras são as pessoas que não possuam alguns rudimentos dessa faculdade. Pode-se, pois, dizer que todos são mais ou menos médiuns. (...) (1) (grifo nosso).

Ou seja, toda pessoa que venha a sentir a influência dos Espíritos seria médium. Tal assertiva, se considerada isoladamente, pode levar a conclusões apressadas, já que a continuação do mesmo item informa:

(...). Usualmente, porém, essa qualificação só se aplica àqueles em quem a faculdade se mostra bem caracterizada e se traduz por efeitos patentes, de certa intensidade, o que depende de uma organização mais ou menos sensitiva. É de notar-se, além disso, que essa faculdade não se revela da mesma maneira em todos os sensitivos. Geralmente, os médiuns têm uma aptidão especial para os fenômenos desta ou daquela ordem, de modo que há tantas variedades quantas são as espécies de manifestações (...) (1)(grifo nosso)

O texto confirma ser comum chamarmos por médium somente a quem tenha mediunidade patente ou ostensiva e informa também a dependência da mediunidade de uma organização mais sensitiva.

Porém, estava Kardec se referindo à maneira como a sociedade se referia aos médiuns, ou há uma distinção clara em suas obras, utilizando dois sentidos para a palavra “médium”?

Ora, a edição da Revista Espírita de novembro de 1861 traz um discurso de Allan Kardec, feito durante uma reunião dos espíritas de Bordeaux, ocorrida, naquele ano, onde o Codificador afirma não ser médium:

Nos trabalhos que tenho feito para alcançar o objetivo a que me propunha, sem dúvida fui ajudado pelos Espíritos, como eles próprios já me disseram várias vezes, mas sem o menor sinal exterior de mediunidade. Assim, não sou médium, no sentido vulgar da palavra, e hoje compreendo que é uma felicidade que assim o seja. (2) (grifo nosso)

Ao assegurar ter sido ajudado pelos Espíritos, e assim sentido a influência deles, mas a seguir reafirmar não ser médium no sentido comum da palavra, Kardec nos permite afirmar haver dois sentidos para o termo “médium” em sua obra.

Antes de procurar entender esses sentidos, vamos recordar a definição de médium. Conforme o mestre Lionês, médiuns são “meios ou intermediários entre os Espíritos e os homens” (3), ou ainda, médium é “o indivíduo que serve de traço de união aos Espíritos, a fim de que estes possam comunicar-se facilmente com os homens” (4).

Tais definições nos fazem pensar: se fôssemos todos médiuns, necessitaríamos de intermediários? Essa acepção de “médium” dada por Kardec claramente se opõe à ideia de sermos todos médiuns.

No entanto, há outras passagens d´O Livro dos Médiuns reafirmando sermos todos médiuns:

Channing nos pede para escutar a voz dos bons Espíritos, para chegarmos “progressivamente a ouvir o (...) anjo da guarda” (5)   e ressalta: “(...) a voz íntima que fala ao coração é a dos Espíritos bons e é deste ponto de vista que todos os homens são médiuns. (5) (grifos nossos).

Na mesma direção, ao estudarmos a definição de Médiuns inspirados ou involuntários, aprendemos: “a inspiração vem dos Espíritos que nos influenciam para o bem ou para o mal” e “sob esse aspecto, pode-se dizer que todos são médiuns (6) (grifos nossos)

Há, portanto, duas definições aparentemente antagônicas na Codificação: médium seria o intermediário, o traço de união entre os Espíritos e os homens, ou poderíamos chamar qualquer ser humano de médium, se assumirmos que todos podemos ouvir a voz interior de nosso anjo guardião ou sentir a influência dos Espíritos?

O Codificador esclarece a questão, ao ensinar, como vimos acima, que a faculdade mediúnica bem caracterizada “depende de uma organização mais ou menos sensitiva.” (1), e acrescentar que essa organização sensitiva depende de fatores alheios à nossa vontade, pois, embora cada um de nós tenha em si “o gérmen das qualidades necessárias para se tornar médium, tais qualidades existem em graus muito diferentes e o seu desenvolvimento depende de causas que criatura alguma pode provocar à vontade” (7).

Dessa maneira, a faculdade relativa à mediunidade não pode ser desenvolvida por todas as pessoas. Para reforçar esse raciocínio, na mesma obra, Kardec afirma não haver “nenhum meio para diagnosticar, ainda que de forma aproximada, que alguém possua essa faculdade [a mediunidade]” e existir apenas “um meio de se comprovar sua existência [da mediunidade]: é experimentar” (8).  No mesmo capítulo, somos aconselhados, caso “a mediunidade não se revelar de modo algum” a “renunciar a ser médium”, assim como “renuncia ao canto quem reconhece não ter voz”. (9)

Ou seja, podemos desenvolver a mediunidade, se tivermos as qualidades orgânicas necessárias no grau adequado, mas não basta apenas a vontade de ser médium para sê-lo, pois há limites que não conseguimos ultrapassar somente com nosso desejo, e assim, devemos nos contentar com os dons que Deus nos deu, “sem procurarmos o impossível” pois se tivermos mediunidade “ela se manifesta por si mesma” (10).

Explicando um pouco melhor tais limitações, Kardec afirma ser “peculiar aos médiuns” uma “afinidade especial” e “uma força de expansão particular, que lhes suprimem toda refratariedade” e, assim, essa resistência da matéria se opõe “ao desenvolvimento da mediunidade na maior parte dos que não são médiuns” (4) (grifo nosso)

Deste modo, é evidente haver pessoas que, além de não serem médiuns, não conseguem desenvolver nenhuma espécie de mediunidade pois não possuem a afinidade especial necessária, e tampouco a força para transpor a barreira que separa o mundo material do mundo espiritual.

O Livro dos Médiuns encontramos a confirmação sobre a limitação da mediunidade   em outras ocasiões. Ao lermos sobre a perda e suspensão da mediunidade, observamos haver casos de sua interrupção com o objetivo de ensinar aos médiuns sobre a liberdade dos Espíritos, “que não podeis obrigá-los a agir à vossa vontade.” E sendo “ainda por esta razão que as pessoas que não são médiuns nem sempre recebem todas as comunicações que desejam” (11) (grifo nosso).  

Também quando estudamos o questionamento de Kardec sobre a relação entre obsessão e mediunidade, aprendemos: “todo aquele que recebe más comunicações espíritas, escritas ou verbais, está sob má influência. Essa influência se exerce sobre ele, quer escreva, quer não, isto é, seja ou não seja médium (12) (grifo nosso), deixando bem explícito não ser necessária a mediunidade para sermos obsidiados, ou mesmo influenciados, condição anteriormente citada para afirmar que todos são médiuns. Além disso, reafirma no resumo da questão: “Mesmo os que não são médiuns podem se deixar apanhar pelas artimanhas dos Espíritos inferiores.” (12) (grifo nosso).

Os trechos elucidam claramente a existência de pessoas desprovidas de faculdades que lhes permita desenvolver a mediunidade, dependentes de médiuns para receberem comunicações dos Espíritos, e a independência entre obsessão e mediunidade, ou seja, o fato de pessoas, não médiuns, serem também obsidiados.

Para reforçar o conceito, o Codificador também nos informa que metade do gênero humano é médium, nos permitindo concluir que a outra metade não o é: “Para se encarcerarem todos os médiuns, seria preciso que se prendesse a metade do gênero humano.” (13) 

Quanto às afirmativas de sermos todos médiuns, seja por podermos ouvir a voz do nosso anjo guardião ou dos Espíritos, observamos nos dois trechos d´O Livro dos Médiuns onde consta tal assertiva, haver ressalvas quanto ao “ponto de vista” (5) e ao “aspecto” (6), nos explicando que somente sob tais condições podemos afirmar sermos todos médiuns e não de forma generalizada.

Ou seja, como nem todos podemos sentir a influência dos Espíritos – apesar de sermos por eles influenciados (14) - todos podemos ser chamados de médiuns se assim denominarmos a toda humanidade por ser possível ouvir a voz dos Espíritos ou de nosso anjo guardião.

Portanto, estamos diante de uma polissemia, pois, como vimos, Kardec e os Espíritos usaram a palavra médium com dois sentidos bem distintos. Tal fato nos convida a ter cuidado em afirmar categoricamente sermos todos médiuns, se o contexto da afirmativa se referir à mediunidade ostensiva, requerida para uma reunião mediúnica, por exemplo.

Tal assertiva pode frustrar desnecessariamente os irmãos neófitos, que, ao se depararem com tal conceito, se colocado de forma inadequada, se sintam mal por não serem médiuns e verem seus esforços frustrados em externar a faculdade.

A insistência em defender o tema sem condicionantes, diante da realidade pode até afastar do Espiritismo aquelas pessoas que acreditarem que todas as outras sejam médiuns, caso elas, de fato, não o forem, ou, pior ainda, não consigam desenvolver a faculdade mesmo após tentá-lo.

Pelo prisma científico do Espiritismo, como o próprio Kardec informou não ser médium, a afirmativa feita sem as devidas ressalvas poderia até colocar a credibilidade da Codificação em risco ou dúvida.

Esperamos ter contribuído com o entendimento dos diferentes escopos da palavra médium, e dos limites existentes para o desenvolvimento da mediunidade. Cremos que assim, auxiliamos também a ciência Espírita, qualificando melhor uma afirmativa que poderia se mostrar desatenta e distante da realidade empírica.

 

Referências:

1. KARDEC, Allan, O Livro dos Médiuns. Trad. Evandro Noleto Bezerra. 2ª ed. 1ª imp. Brasília, DF: FEB, 2013. it. 159.

2. KARDEC, Allan, Revista Espírita, Ano IV - 1861. Trad. Evandro Noleto Bezerra. 4ª ed. 1ª imp. Brasília, DF: FEB 2019. Novembro, Reunião geral dos espíritas bordeleses – Discurso do Sr. Allan Kardec.

3. KARDEC, Allan, O Livro dos Espíritos. Trad. Evandro Noleto Bezerra. 4ª ed. 5ª imp. Brasília, DF: FEB 2018.Introdução, it. IV.

4. KARDEC, Allan, O Livro dos MédiunsTrad. Evandro Noleto Bezerra. 2ª ed. 1ª imp. Brasília, DF: FEB 2013. it. 236.

5. ______, ______. Cap. XXXI, it. X

6. ______, ______. it. 182.

7. ______, ______. Introdução.

8. ______, ______. it. 200.

9. ______, ______. it. 218.

10. ______, ______. it. 171.

11. ______,______ . it. 220, parágrafo 11º.

12. ______, ______. it. 244.

13. KARDEC, Allan, O Livro dos Espíritos. Trad. Evandro Noleto Bezerra. 4ª ed. 5ª imp. Brasília, DF: FEB 2018, Conclusão, it. VI.

 

Rodolfo Collevatti, palestrante e conselheiro do Centro Espírita Divino Mestre, reside em São José dos Campos (SP).


 

 

     
     

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