Especial

por Rogério Coelho

Qual é a utilidade do aspecto filosófico no Espiritismo? (Parte 1)

A Filosofia permite o desvelamento do que está encoberto pelo costume


“A Filosofia é a possibilidade da transcendência humana”. 
M.L.A. Aranha e M.H.P. Martins[1]


Para saber a utilidade do aspecto filosófico do Espiritismo, faz-se necessário primeiramente termos em mente o significado da palavra “reflexão”, que vem do latim “reflectere”, e etimologicamente significa: “fazer retroceder, voltar atrás”. Portanto, refletir é retomar o próprio pensamento, pensar o já pensado, voltar para si mesmo e colocar em questão o que já se conhece...

Já no século XVII apresentava Renato Descartes, o filósofo e matemático francês tal método, hoje conhecido por “cartesianismo”, através do qual ele afirmava: “para alcançar a verdade é preciso, uma vez na vida, desfazermo-nos de todas as opiniões que recebemos e reconstruir os fundamentos, todos os sistemas dos nossos conhecimentos”.

Tal método o levou – por intuição e dedução – a descobrir a verdade da sua e da existência de Deus.

Segundo Gramsci, “não se pode pensar em nenhum homem que não seja também um filósofo, que não pense, precisamente porque pensar é próprio do homem como tal”.

Os Espíritos Amigos[2] esclarecem que “no pensamento goza o homem de ilimitada liberdade, pois que não há como lhe colocar amarras. Pode-se-lhe deter o voo, porém, não aniquilá-lo... Constranger os homens a procederem em desacordo com o seu modo de pensar, é fazê-los hipócritas. A liberdade no âmbito da consciência é um dos caracteres da verdadeira civilização e do progresso.”

Portanto, não falece dúvida que a liberdade de pensamento é um direito de todos.   Cerceá-lo seria produzir hipócritas, como sói acontecer com as conversões forçadas.  Podemos, então, concluir que a filosofia é filha dileta do pensamento e ela nasce no momento em que o pensar é posto em causa, tornando-se objeto de reflexão.

O homem comum, no cotidiano da vida, é levado a “parar” de vez em quando, num “staccato” necessário, a fim de retomar o significado de seus atos e pensamentos, e nessa hora é solicitado a refletir.  Entanto, a simples reflexão não gera a Filosofia, mas sim a reflexão filosófica.   Por sua vez, a reflexão filosófica se desdobra em três níveis: radical, rigorosa e de conjunto.

Interpretemos esses três tópicos com o professor Dermeval Saviani:

Radical – a palavra latina “radix, radicis” significa “raiz”, e no sentido figurado, “fundamento, base”. 

Portanto, a filosofia é radical não no sentido corriqueiro de ser inflexível (nesse caso seria a antifilosofia), mas enquanto busca explicitar os conceitos fundamentais usados em todos os campos do pensamento e do agir.

Rigorosa – Enquanto a “filosofia de vida” não leva as conclusões até às últimas consequências, e nem sempre é capaz de examinar os fundamentos delas, o filósofo deve dispor de um método claramente explicitado a fim de proceder com rigor, garantindo a coerência e o exercício da crítica. Mesmo porque o filósofo não faz afirmações apenas, precisa justificá-las com argumentos. Para tanto usa de linguagem rigorosa, que evita a anfibologia, isto é, evita a ambiguidade ou duplicidade de sentido das expressões cotidianas e lhe permite discutir com outros filósofos a partir de conceitos claramente definidos. É por isso que o filósofo sempre “inventa conceitos”, ou cria expressões novas e neologismos, ou altera e especifica o sentido das palavras usuais.

De conjunto – Enquanto as ciências são particulares, porque abordam “recortes” da realidade e se distinguem de outras formas de conhecimento, e a ação humana se expressa nas mais variadas formas, a filosofia é globalizante, porque examina os problemas sob a perspectiva de conjunto, relacionando os diversos aspectos entre si. Nesse sentido, além de considerarmos que o objeto da filosofia é tudo (porque nada escapa ao seu interesse), completamos que a filosofia visa ao todo, à totalidade.   Daí a função de interdisciplinaridade da filosofia, estabelecendo o elo de ligação entre as diversas formas do saber e do agir humanos.

A maneira pela qual se faz rigorosamente a reflexão filosófica varia conforme a orientação do filósofo e as tendências históricas decorrentes da situação vivida pelos homens em sua ação sobre o mundo.

A esta altura podemos perguntar: “onde está a necessidade da  filosofia?”

Os entendidos no assunto1 são unânimes em afirmar que a utilidade e mesmo a necessidade da filosofia ancoram-se no fato de que, por meio da reflexão, ela permite ao homem ter mais de uma dimensão, além da que é dada pelo agir imediatamente, no qual o “homem prático” se encontra ergastulado.

É a filosofia que dá o distanciamento para a avaliação dos fundamentos dos atos humanos e dos fins a que eles se destinam; reúne o pensamento fragmentado da ciência e o reconstrói na sua unidade; retoma a ação pulverizada no tempo e procura compreendê-la. Portanto, a filosofia é a possibilidade da transcendência humana, ou seja, a capacidade que só o homem tem de superar a situação dada e não-escolhida.  Pela transcendência, o homem surge como ser de projeto, capaz de liberdade e de construir o seu destino.

Por paradoxal que possa parecer, o distanciamento é justamente o que provoca a aproximação maior do homem com a vida. Whitehead, lógico e matemático britânico contemporâneo, disse que “a função da razão é promover a arte da vida”.   A filosofia recupera o processo perdido no imobilismo das coisas feitas (mortas porque já ultrapassadas). A filosofia impede a estagnação. Por isso, o filosofar sempre se confronta com o poder, e sua investigação não fica alheia à ética e à política.   É o que afirma o historiador da filosofia François Châtelet, quando escreve: “desde que há Estado — da cidade grega às burocracias contemporâneas —, a ideia de verdade sempre se voltou, finalmente, para o lado dos poderes (ou foi recuperada por eles, como testemunha,(por exemplo), a evolução do pensamento francês do século XVIII ao século XIX).   Por conseguinte, a contribuição específica da filosofia que se coloca ao serviço da liberdade, de todas as liberdades, é a de minar, pelas análises que ela opera e pelas ações que desencadeia, as instituições repressivas e simplificadoras: quer se trate da ciência, do ensino, da tradução, da pesquisa, da medicina, da família, da polícia, do fato carcerário, dos sis­temas burocráticos, o que importa é fazer aparecer a máscara, deslocá-la, arrancá-la...”

A filosofia é, portanto, a crítica da ideologia, enquanto forma ilusória de conhecimento que visa a manutenção de privilégios.

Atentando para a etimologia do vocábulo grego correspondente à verdade (a-létheia, aletheúein, “desnudar”), vemos que a verdade é pôr a nu aquilo que es­tava escondido, e aí reside a vocação do filóso­fo: o desvelamento do que está encoberto pelo costume, pelo convencional, pelo poder...

Finalmente, a filosofia exige coragem.  Filosofar não é um exercício puramente intelectual.  Descobrir a verdade é ter a coragem de enfrentar as formas estagnadas do poder que tentam manter o “status quo”, é aceitar o desafio da mudança. (Isso não é fácil, tendo em vista a ancestral acomodação humana).

Sócrates e Jesus enfrentaram, - impertérritos e desassombradamente -, o desafio máximo da morte em defesa da verdade que postulavam.

Já podemos, agora, entender por que Allan Kardec elegeu a Filosofia para ser um dos três vértices principais do Espiritismo. E compreendemos isso ainda mais quando observamos que a Filosofia não acoroçoa nem o dogmatismo sufocante  e tampouco o cepticismo, sendo este último uma posição filosófica que conclui pela impossibilidade do conhecimento, quer na forma moderada de suspensão provisória do juízo, quer na radical recusa em formular qualquer conclusão.  

No outro extremo de onde se encontra o cepticismo está o dogmatismo, segundo o qual o filósofo se considera de posse de certezas e verdades absolutas e indubitáveis. Enquanto o dogmático se apega à certeza de uma doutrina, o cético conclui pela impossibilidade de toda certeza e, nesse sentido, considera inútil a busca que não leva a lugar nenhum. Comparando as duas posições antagônicas, podemos perceber que elas têm em comum a visão imobilista do mundo:  o dogmático atinge uma certeza e nela permanece; o cético anseia pela certeza e decide que ela é inalcançável.

Mas a filosofia é movimento, pois o mundo é movimento. A certeza e sua negação são apenas dois momentos (a tese e a antítese) que serão superados pela síntese, a qual, por sua vez, será nova tese e assim por diante... 

(Continua na próxima edição.)


 

[1] - Do livro: Filosofando – Introdução à Filosofia – Ed. Moderna – 2ª edição, revista e atualizada.

[2] - KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. 88.ed. Rio [de Janeiro]: FEB, 2006, questões 833 e 837.


     

     
     

O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita