Quem te viu, quem te vê
“Lá vai ele de novo
para o trabalho
assistencial... Tem
coisa melhor para fazer
não? Busca dominar suas
tendências ancestrais,
ele diz. Faz esforço
para que no mundo da
ação, pelo menos, não se
manifeste o pensamento.
Besteira! Estuda,
reflete, discute e
cresce... É o que ele
diz... Se reveste dessa
tal de prece, busca
sintonizar com esses
chamados amigos
espirituais, gente nova
no pedaço. Como pode?
Quem te viu, quem te vê,
Arnaldo!
Não se lembra mais
daqueles tempos, das
coisas que fazíamos...
Mudou seus valores,
rapaz, nos abandonou...
Rompeu compromissos que
nos sustentam há
séculos... Mas tenho
certeza que ele está aí,
o homem velho. O nosso
velho amigo se esconde
em algum lugar dos
recônditos de sua mente
e nas horas surdas, de
dor e solidão, sentimos
ele aparecer, clamar
pela volta, triunfante.
É! Arnaldo, queremos
você de volta, longe
dessa baboseira de gente
fraca, de perdão, de
amor, de caridade...
Não nos convence essa
sua nova capa, esse
envelopamento que chamas
de “novas disposições” e
esconde a sua verdadeira
essência… Sabemos que o
Arnaldo das antigas, o
cara da pesada, não vai
resistir a esses
problemas que
insistentemente chegam a
sua vida. A doença, a
carência material, a
ingratidão, o chamado do
prazer. Para que
resistir, se assim é a
condição humana? Essa
coisa horrível que Deus
colocou na Terra, que
mata e destrói seu
semelhante por prazer.
Somos isso mesmo,
Arnaldo, essa coisa que
não presta e a nossa
esperança, a nossa fé, é
apenas no que pudermos
levar nas mãos, para
atender nossos desejos,
nossa satisfação...
Imagem e semelhança
(risos).”
Diante dessa
manifestação psicofônica
na reunião mediúnica
semanal, Juvenal sai
apreensivo à frente dos
desafios da reforma
íntima preconizada na
Doutrina Espírita. Pensa
o dirigente a que
pressões se submete o
candidato a renovação em
mais uma encarnação, as
demandas de amigos do
passado, as suas
próprias tendências, os
chamamentos do mundo, em
tempos de prazer
hipervalorizado, de
egoísmo e orgulho
proclamados.
Desesperança campeando
pelas falas e discursos,
uma visão pessimista do
homem e a sua natureza.
Pela rua, chutando lata,
voltando para sua
humilde residência, para
seus problemas
cotidianos, pensa
Juvenal nos jornais, nos
amigos, nas suas
dificuldades, nos
pensamentos que às vezes
lhe assaltam a mente e
se indaga sobre as lutas
que se avolumam na
existência, as chamadas
“montanhas do eu” que se
erguem, ao fim de cada
escalada, de cada
esforço. Uma luta
solitária, que
respondemos perante a
nossa consciência. Uma
luta que aparentemente
se faz inglória, mas que
traz como prêmio o
amadurecimento
espiritual. Luta, dia a
dia...
Recorda nosso
introspectivo
protagonista de pessoas
que superaram esses
desafios com louvor, que
venceram o mundo.
Algumas célebres, outras
anônimas. Mas que, pelo
seu esforço, avançaram
um degrau da evolução,
rompendo a inércia, se
tornando mais leves.
Pensa nos seus desafios,
nas suas dificuldades
íntimas e, lembrando-se
da mensagem sobre
Arnaldo, recorda que
cada um carrega a sua
cruz, proporcional às
suas forças. Lembra-se
de rezar por Arnaldo,
ainda que não o conheça,
mas que deve ser objeto
de pressões e
perseguições dos
Espíritos que se
manifestaram.
Chega em casa o
esforçado dirigente,
atua em afazeres
domésticos, beija a
filha adormecida e
deita-se ao lado da
esposa, no repouso que
buscará refazer o corpo
que cedo acordará para a
labuta honesta. Faz seu
exame de consciência,
sobre o que é, e no que
tem se tornado.
Arrepende-se do que fez
e do que não fez.
Agradece a família, a
saúde, a vida, e a
possibilidade de ter uma
filosofia que permite a
ele enxergar a realidade
espiritual. Vira-se para
o lado, cansado, e
ensaia o merecido
processo de sonolência.
À medida que o sono
chega, Juvenal acorda
sobressaltado, em um
pulo na cama, pela ação
de uma voz, entre terna
e rancorosa, que diz no
interior de sua mente:
“Boa noite, Arnaldo!”.