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por Vladimir Alexei

 

Shopping de ofertas!


Uma rede que se forma, apresenta “nós” extensos, cujo olhar limitado do ser humano não consegue perceber, talvez dissesse o Professor Manuel Castells, autor de “A Sociedade em Rede”, com muito mais propriedade do que nós outros.

Recentemente fomos agraciados com o convite para participar de uma live em um canal nas redes sociais, que já era querido antes mesmo de conhecê-lo, em virtude da admiração que temos pelo seu fundador, um espírita de primeira ordem, no sentido de ser estudioso do assunto e com opiniões firmes, fraternas e amorosas. O canal no YouTube se chama Espiritismo com Kardec e o espírita querido é o Marcelo Henrique.

Debatedores “antigos”, já nos encontramos muitas vezes nas “listas de discussão espíritas”, armazenadas nos “Yahoo Groups” da vida. Essa lembrança só veio à tona graças à memória prodigiosa do Marcelo Henrique. Bons tempos. Tempos em que construímos teses para explicar porque entendemos o Espiritismo de uma forma e não de outra.

O tempo passou, contudo, parece que preservou a nossa vontade e a nossa determinação em continuar neste “Saara” que se transformou o “Movimento Espírita”. Feliz com o convite; feliz em participar; feliz em fazer novos amigos, como o também querido Marcus Braga, com quem tive a honra de dividir os “embalos de sábados à noite” no canal Espiritismo com Kardec.

Entre temas polêmicos, mediados com maestria pelo Marcelo Henrique, e comentários fraternos do Marcus Braga, observado de perto pela “Isabella” (gata), que carinhosamente se enroscou em seu colo, acompanhamos os comentários dos companheiros que participavam da live, pelo chat e um comentário nos chamou a atenção: o shopping de ofertas!, o que motivou essas reflexões sobre a divulgação da Doutrina Espírita na atualidade.

O título da live, que está disponível no Canal do YouTube, é “Temas proibidos, debates velados”, em que conversamos sem reservas, discutindo ideias que poderiam ser abordadas em alto nível, como ocorreu no Canal, nas Casas Espíritas e demais locais onde há estudo doutrinário. É uma pena que não seja essa a realidade do movimento espírita. Por quê? Por uma série de fatores que foram discutidos na live, dentre eles, ideias que não são espíritas e que são convidadas a entrar para o Espiritismo pela porta da frente, com seus palestrantes famosos, e por aqueles que são críticos e ao mesmo tempo seguidores – intencionais ou haters desses famosos.

Um exemplo que tem chamado a atenção e foi discutido, en passant, é a influência de pessoas vinculadas à área da saúde. Convidamos a todos para assistirem ao debate, entretanto, para auxiliar na contextualização, desde os primórdios a divulgação do Espiritismo contou com dedicados confrades e confreiras preocupados em transmitir os ensinamentos o mais fiéis possíveis ao pensamento de Allan Kardec, que, sem dúvida alguma para este despretensioso escriba, foi um filósofo à frente do seu tempo.

A “pureza doutrinária” tornou-se uma “plataforma” defendida, curiosamente, por todos, cada um ao seu estilo. O “estilo” de cada um é que se tornou um paradoxo. O movimento de unificação, por exemplo, defendia a pureza doutrinária e combatia ideias estranhas ao pensamento de Allan Kardec, ao mesmo tempo em que aceitava, porque publicava, pensamentos estranhos à obra fundamental da Doutrina Espírita.

Outros pensadores, no afã de “atualizar” Allan Kardec, propuseram mudanças nas obras fundamentais da Doutrina Espírita, sem, contudo, apresentar estudos estruturados, como, por exemplo, Lacan desenvolveu ante a obra de Freud. Lacan praticamente “reescreveu” a teoria do inconsciente, apresentando o “Inconsciente estruturado como linguagem”. Estudiosos da área poderão dizer que não é necessariamente a mesma coisa, outros ainda poderão dizer que sim. O fato é que Lacan agregou outros conhecimentos à teoria freudiana a ponto de propor um novo paradigma. Na Doutrina Espírita, ousamos dizer que não há estudo aprofundado sobre a obra de Allan Kardec. Existem estudos profundos que foram até o ponto de encontrar “erros” nas obras de Allan Kardec. Observem a diferença.

Encontrar “erros” em Allan Kardec só faria sentido se o mesmo método empregado por Allan Kardec fosse utilizado no presente. Alguém tem ideia de evocações dos Espíritos Superiores que tutelaram o trabalho de Allan Kardec para que eles pudessem apresentar os tais erros ou orientar quanto a correções dos tais erros? Ainda assim, se o estudo continuasse, de forma dialética, poderíamos concluir que existem pontos pouco detalhados, quase não foram explorados e outros pontos dúbios, por que não?! Ao pensar assim, não se busca derrubar a obra de Allan Kardec, e sim aplicar-lhe o mesmo princípio científico e o máximo respeito ao criador da Doutrina Espírita. Ainda sobre os "erros", alguns estudiosos apresentam avanços da Ciência que a princípio vão de encontro com o conhecimento doutrinário. Nesse caso, caberia um estudo aprofundado, inclusive utilizando o método de Allan Kardec, para saber se, de fato, é um erro de Allan Kardec ou mais um erro de interpretação do estudioso. Por quê? Porque o conhecimento científico não é exato. O conhecimento científico é progressivo, como progressivo é o conhecimento sobre a Vida e o Viver.

Na prática, não temos visto nem uma coisa, nem outra. Não temos notícias de estudos aprofundados e nem de pesquisas que possam avançar na compreensão do conteúdo doutrinário. Temos uma teoria sobre isso: ainda existe muito a se aprender sobre os princípios fundamentais da Doutrina Espírita, antes de se ter uma pretensão de se modificar suas estruturas fundamentais. A conta para este escriba é simples: se Herculano Pires estudou a Doutrina Espírita com admiração e dedicou sua vida inteira à vivência doutrinária e à divulgação de seus postulados, não seria eu um pretenso espírita a arvorar de reformador. Não mesmo, embora respeite com todo o coração aqueles que entenderem ser possível tal cometimento. É mais simples ainda, sem ser simplista: o estudo aprofundado da Doutrina Espírita não é para encontrar erros e sim para transformar a minha compreensão sobre a Vida e o Viver.

Quando se tem um mínimo de vivência acadêmica – e nesse caso é preciso tomar cuidado também, porque da mesma forma que existem influencers de áreas da “saúde” no movimento espírita, existem aqueles que são “professores” e por isso acreditam que seus “doutorados” são passe livre para interpretações obtusas –, tem-se a compreensão de que o debate de ideias é, além de um movimento educativo, filosófico, dialético importante, talvez o meio mais seguro para o aprendizado e, portanto, aquilo que é necessário para se conhecer algo. Quando não há estudo, não há espaço para o contraditório e, consequentemente, prejudica-se o aprendizado.

Nesse sentido, entendemos que existem muitos temas doutrinários a serem estudados e aprofundados e que são pouco difundidos e por isso poderiam merecer mais atenção a ponto de serem também difundidos pelas Casas Espíritas. Contudo, o acolhimento de ideias estranhas, e pensamentos de autoajuda, promovem “pontes” entre o que é tratado em consultórios pelos profissionais da área da saúde com aquilo que é difundido pelos voluntários espíritas que assumem a tribuna para falar de Doutrina Espírita.

A autoajuda é bem-vinda, por mais contraditório que pareça. A “busca” pelo conhecimento é importante e sempre bem-vinda, todo conhecimento pode ser válido, contudo, quando se tornam “pontes” também para oferecimento de cursos compactos, cursos vitalícios, palestras “isca” e outras ações marqueteiras, torna-se um shopping de ofertas e tudo em nome do Espiritismo. O que cada um faz com seu conhecimento é responsabilidade de cada um. Aquilo que se faz em nome da divulgação da doutrina espírita precisa ser refletido de forma diferente. Corre-se um sério risco de idolatria e a Doutrina Espírita esclarece sobre isso.

A mesma figura que é vitrine em Congressos, Palestras, Eventos, Encontros, Reuniões Doutrinárias, Seminários etc. é a figura que aparece nos reels (vídeos curtos) de redes sociais, vendendo, oferecendo soluções quase milagrosas. Não se iluda: muitos só são conhecidos por causa da Doutrina Espírita. Isso é um fato. E é importante que se diga também que é por mérito deles manterem-se conhecidos e com trabalhos que possuem qualidade. Não há, da nossa parte, o menor desejo de diminuir o esforço de ninguém, apenas expressar um pensamento diferente do corrente.

Quem já leu minimamente a história da divulgação do Espiritismo no Brasil, vai lembrar que acontecia um movimento contrário: pessoas famosas davam a vida e até suas posses para beneficiar aqueles menos favorecidos e tudo em prol da divulgação doutrinária. É só ler a história do Espiritismo no Brasil, desde a cidade desconhecida e a casa mais simples, até grandes centros espíritas em capitais pelo país.

A curto prazo esse cenário não deve mudar. Será preciso acontecer algo muito grave para mudar. A pandemia arrefeceu por um tempo os grandes e caros congressos ditos espíritas. No entanto, passados mais de três anos, voltaram os “mega encontros” em que somente alguns poucos afortunados possuem recursos para participar. Nos médio e longo prazos, contudo, é possível que se amadureça a compreensão de que, para se divulgar a Doutrina Espírita, é necessário ter mais do que simplesmente “compromisso espiritual”. É preciso ter preparo. É preciso ter um “ego saudável”. É preciso encarar o conhecimento doutrinário como um benefício a ser ofertado gratuitamente para que gratuitamente ele seja propagado cada vez mais.

shopping de ofertas tornou-se uma realidade em função das influências que não são doutrinárias. Jesus já havia dito a respeito dos “vendilhões do templo”. Expulsou aqueles que faziam “comércio” no Templo. As interpretações variam ao infinito. O "Templo" pode ser interpretado como o próprio corpo, simbolicamente. Se o templo for o corpo, simbolicamente, pode-se entender que aquele que faz comércio do próprio conhecimento na Doutrina Espírita está errado em relação ao que faz; se por comércio levarmos em consideração a obtenção de algum ganho, agrava-se o entendimento e a compreensão simbólica sobre o “templo” e assim sucessivamente de tal forma que, embora o “comércio” tenha se modificado, há sempre o que vende e o que consome por livre iniciativa ou em função dos esforços daquele que vende.

Existem ofertas enganosas e isso talvez seja o mais preocupante. Enganosas por quê? Porque há um forte apelo de sensacionalismo que não coaduna com o propósito educativo da Doutrina Espírita. E funciona da seguinte forma: dizem os autores que deu resultado com alguém e até que se prove o contrário é passível de acreditar-se. Apresentam fragmentos de depoimentos de pessoas que talvez tenham melhorado ou alcançado resultados momentâneos melhores, todavia, se você não alcança o mesmo resultado, é porque não fez da forma correta, porque em algum momento deixou de seguir exatamente aquilo que foi “receitado”. Ou ainda, se não alcançou o resultado, é porque não chegou ao ápice, ao ponto principal e por isso é necessário continuar.

Em algum momento chega a ser constrangedor ter que discutir esse tema no meio espírita, pois são práticas adotadas por algumas religiões convencionais. Não deveria fazer sentido isso acontecer no meio espírita. Contudo, em nenhum momento nossa reflexão está insinuando que esses vendilhões do templo estão realizando comércio dentro da Casa Espírita, esperamos que isso fique claro. É tudo muito sutil e não limitado a palestrantes famosos. É algo que acontece entre “desconhecidos” e é divulgado pelas redes sociais.

Com tudo isso que tem acontecido no meio espírita, a chance de parecer sandice o que escrevemos é grande, afinal, é muito mais fácil tentar combater um pigmeu, desconhecido, do que um gigante “cheio de recursos”. O dia que esses recursos “abrirem as portas do Céu” no meio espírita, será motivo de preocupação. Até lá, não se enganem: tem muito lobo em pele de cordeiro dirigindo casas espíritas, assumindo a tribuna, falando manso e vendendo conhecimentos que deveriam ser gratuitos.


 

 

     
     

O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita