Espiritismo à brasileira: esvaziamento da
sua dimensão filosófica e científica?
Uma reflexão sobre os desafios do equilíbrio entre
ciência, filosofia e religião no Espiritismo brasileiro
Desde sua codificação por Allan Kardec, o Espiritismo se
apresentou como uma doutrina de três pilares
indissociáveis: ciência, filosofia e religião.
No entanto, no processo de consolidação do Espiritismo
no Brasil, país onde a doutrina mais se difundiu
globalmente, houve um desequilíbrio perceptível entre
esses fundamentos. O aspecto religioso se fortaleceu com
intensidade, enquanto os campos filosófico e científico
foram, muitas vezes, deixados em segundo plano. Isso
gerou uma prática espírita com forte viés devocional e
moralizante, por vezes distanciada da proposta original
de uma fé raciocinada alicerçada em estudos constantes e
aprofundados da realidade espiritual.
Tal fenômeno está intimamente ligado ao contexto
cultural e religioso do Brasil, marcado historicamente
por uma religiosidade de base católica, emotiva e
popular, herança da colonização portuguesa. O
sincretismo com tradições afro-brasileiras acrescentou
riqueza simbólica e diversidade às expressões
espirituais, mas também reforçou uma compreensão da fé
muito centrada na busca por proteção, curas e bênçãos
imediatas. Nesse ambiente, a proposta kardecista de
aliar fé e razão, convidando o ser humano a refletir
profundamente sobre sua trajetória espiritual, acabou
sendo absorvida por uma lógica mais afetiva do que
científico-analítica.
A filosofia espírita — com sua visão progressista do
espírito imortal, sua ética da responsabilidade e sua
leitura espiritual das leis da vida — é uma das grandes
riquezas da doutrina. No entanto, ela ainda é pouco
explorada em muitos centros e espaços de estudo. Em seu
lugar, predominam abordagens mais voltadas ao consolo
imediato e à moral cotidiana, o que, embora valioso
enquanto prática humanista, não dá conta da profundidade
filosófica proposta por Kardec. Recuperar esse eixo é
fundamental para ampliar o alcance formativo do
Espiritismo e fomentar a autonomia espiritual do
indivíduo.
No campo científico, a situação é mais precária. Embora
Kardec, nos primórdios do movimento que deu origem à
Doutrina Espírita, tenha se apoiado no método
observacional e tenha tratado os fenômenos espirituais
através das lentes de uma ciência
de observação dos fenômenos espirituais,
esse esforço primordial foi praticamente abandonado no
Brasil. A tradição experimental, que deu origem às
pesquisas metapsíquicas e parapsicológicas na Europa,
não encontrou terreno fértil aqui. A maioria dos centros
espíritas desdenha do método científico ou sequer
compreende sua importância, preferindo uma abordagem
mística e fideísta, com exaltação dos “fenômenos” e
forte apelo emocional. O resultado é um Espiritismo que
fala em ciência, mas não a pratica — e que rejeita,
quando não ridiculariza, o pensamento científico
secular.
É importante reconhecer que o Espiritismo brasileiro tem
realizado avanços significativos no campo moral e
assistencial, com obras de caridade, acolhimento
fraterno e promoção de valores como empatia,
solidariedade e perdão. No entanto, para que se mantenha
fiel à sua proposta original, é necessário avançar
também na promoção do pensamento crítico, do estudo
rigoroso e do diálogo entre saberes. O desequilíbrio
entre os três pilares não é uma falha definitiva, mas um
convite à retomada consciente de caminhos que já estão
presentes na codificação.
Superar a predominância exclusiva do aspecto religioso
não significa negar sua importância, mas sim integrá-lo
de forma mais harmônica com os outros dois alicerces.
A religião espírita, em sua essência, não se confunde
com rituais ou dogmas, mas se ancora na vivência do bem,
no esclarecimento espiritual e no cultivo da
consciência. Reforçar a dimensão filosófica e
científica, portanto, não enfraquece a fé: ao contrário,
a enriquece e a torna mais lúcida, madura e
transformadora, e em total sintonia com as raízes da
doutrina. Afinal, como afirmou Kardec com clareza e
coragem: “Fé inabalável é somente aquela que pode
encarar a razão face a face, em todas as épocas da
Humanidade.” Que o Espiritismo brasileiro reencontre
esse caminho de equilíbrio — não como ruptura com sua
história, mas como continuidade fiel ao espírito da obra
que lhe deu origem.
Desse modo, ao fortalecer os vínculos entre filosofia,
ciência e espiritualidade, o Espiritismo pode se afirmar
como uma doutrina verdadeiramente integral, capaz de
dialogar com os desafios contemporâneos sem perder sua
essência. Essa é uma tarefa que exige estudo, dedicação
e humildade, mas que pode trazer frutos profundos para o
movimento espírita e para cada consciência em busca de
evolução.
Para resgatar a integridade do Espiritismo como doutrina
de tripé equilibrado, seria preciso um esforço
deliberado de reintrodução da filosofia e da ciência nos
espaços de prática espírita. Isso exige formação
crítica, estudo sério das obras kardecistas em diálogo
com o pensamento contemporâneo, abertura ao debate e,
sobretudo, coragem para romper com o conforto do
moralismo dócil que tantas casas espíritas oferecem. É
tarefa ingrata, mas indispensável, se a proposta
kardecista quiser manter sua relevância diante dos
desafios de um mundo que exige, mais do que nunca, razão
com espírito e espiritualidade com lucidez.
Sem esse resgate, o Espiritismo no Brasil seguirá sendo
o que hoje é: uma religião entre tantas, moldada ao
gosto popular, esvaziada de sua radicalidade original,
incapaz de interpelar o presente com a força de uma
doutrina que nasceu justamente para integrar saber,
sentido e transcendência — e não para reproduzir, com
novos nomes, as velhas fórmulas do conformismo típico
das religiões “tradicionais” que o antecederam.
Leonardo Queiroz Leite reside em Franca,
SP.
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