Harmonia interior
A conquista de si mesmo está ao alcance do
querer para ser, do esforçar-se para
triunfar.
“Sem a transformação interior profunda, o
equilíbrio exterior será impermanente.” -
Amélia Rodrigues
Assiste toda razão à nobre mentora Amélia
Rodrigues1 quando afirma ser “(...)
Jesus o Construtor do Reino de Deus que convocou
operários para a ação concreta e apresentou os
planos no cenário ridente das paisagens humanas
vivas, sem ocultar detalhes nem exagerar
contornos...
Toda atividade partiria de dentro para fora do
ser, produzindo renovação, e os métodos de ação,
diferindo dos tradicionais, seriam fundamentados
na mansidão, na humildade, na doação plena, e
cimentados pelo amor”.
André Luiz nos
aconselha à vigilância ante as “(...)
próprias manifestações, não nos julgando
indispensáveis e preferindo a autocrítica ao
autoelogio, recordando que o exemplo da
humildade é a maior força para a transformação
das criaturas.”
Segundo Ermance
Dufaux “(...)
a resistência moral e
a maturidade só serão alcançadas à custa de
muito esforço e na
medida de nossa capacidade individual de vencer
a nós mesmos, embora
alguns corações embevecidos pelo ideal da
transformação de si
mesmos esperam, ingenuamente, a "harmonia de
empréstimo" ou "transformação
por osmose" através
de orações, tarefas, passes e outros
benefícios de fortalecimento... Decerto, a
misericórdia nunca escasseia e ampara a todos
por esses meios, mas não pode em tempo
algum mimar nossos pedidos para que não
acostumemos a receber
sem manifestarmos a decisiva coragem de
enfrentar-nos.
A harmonia interior é o fruto sadio da valorosa
semeadura de esforços autoeducativos exercidos
no cumprimento fiel dos roteiros de
crescimento.”
Joanna de Ângelis
encerra magistralmente uma de suas obras,
em um passeio filosófico pela história da
humanidade, oferecendo-nos valiosos subsídios
para o autoconhecimento e, consequentemente para
a autoconquista, numa página intitulada: “Conquista
de si mesmo” na qual ela expõe que a
aquisição da consciência demanda tempo e esforço
humano, tornando-se o grande desafio do processo
da evolução do ser. Surgem-lhe os pródromos, na
fase do instinto, abrindo espaço para a razão,
como fenômeno natural do desenvolvimento
antropológico-psicológico-sociológico da
criatura.”
Continua a nobre Mentora4: “(...) o
discernimento do bem e do mal, do certo e
do errado, e as aquisições ético-morais
aparecem, como se fossem o medrar espontâneo da
essência divina de que é constituído o Espírito;
todavia, o aprimoramento e a profundidade desses
valores dependem do empenho, do interesse, das
realizações de cada um.
Herdeiro dos arquétipos remotos dos seus
antepassados, o indivíduo mantém por atavismos
religiosos e culturais a consciência de
culpa, especialmente os ocidentais,
vitimados pelas heranças judaico-cristãs, no que
diz respeito à desobediência de Eva, no paraíso, e
ao fratricídio cometido por Caim contra Abel.
A divina punição de Deus pela rebeldia da
mulher e pela insensatez do homem, que a seguiu
no erro, responde pelo sofrimento que os
acicata, assim como a expulsão do criminoso
aumenta-lhe a angústia, dando-lhe margem ao
ciúme doentio e à raiva, considerando a
preferência injustificável de Deus por Abel,
cujas oferendas mais O agradavam...
A absurda
aceitação literal do texto bíblico, que tem um
caráter simbólico, quiçá para demonstrar o
momento em que surge a consciência, — quando o
ser pode identificar o que deve, daquilo que não
lhe é lícito realizar, saindo do automatismo do
instinto para a seleção do discernimento
racional, representados no mito da árvore do
conhecimento do bem e do mal — devido a
interpretações apaixonadas e fanáticas, gerou
conflitos que
ainda remanescem nas vidas psicologicamente
imaturas.
Na fase do instinto, os fenômenos biológicos
automáticos não se fazem acompanhar das dores,
que são maiores conforme mais seja apurada a
sensibilidade, qual sucede na ocorrência do
parto, que passou a ser punição divina, tornando
a procriação um verdadeiro castigo, fruto ainda
da desobediência que, milenarmente, transformou
a comunhão sexual em condenável e imunda, do
ponto de vista puritano e hipócrita.
Fonte de vida, o sexo é o instrumento para a perpetuação
da espécie, não sendo credor de qualquer
condenação. O ultraje e a vulgaridade, a nobreza
e a elevação
amorosa mediante os quais se expressa, dependem do
seu usuário e não da sua função em si mesma.
Igualmente a arbitrária eleição celeste de um
por outro irmão, ambos gerados em circunstâncias
iguais, teria que despertar sentimentos
contraditórios, de ciúme e de raiva, no
rejeitado, que levariam inevitavelmente ao
hediondo fratricídio...
De geração em geração, a criança que se sentia
desprezada, desenvolveu esses sentimentos
perversos, perturbando o desenvolvimento da
consciência e a consequente conquista de si
mesmo.
Em qualquer atividade, competitiva ou não, o inconsciente
desatrela a insegurança infantil, ali
adormecida, e surgem os conflitos, a
infelicidade, a desconfiança desastrosa.
Graças, porém, à reencarnação, o progresso do
ser é imperioso, inevitável, e os mecanismos da
evolução se expressam, trabalhando-o e
promovendo-o a níveis e patamares cada vez mais
elevados, até quando o ser, liberto dos
conflitos, conquista os sentimentos que
canalizará na direção de novas metas, que
alcança realizando-se, plenificando-se... Já
não luta contra as coisas, mas luta pelas
coisas, que aprende a selecionar e qualificar,
abandonando, por superação, as paixões
dissolventes e fixando os valores que enobrecem.
Percebendo-se instrumento da vida, que faz parte
da harmonia do Universo, o indivíduo supera a
raiva, por ausência do ciúme, e não compete para
destruir, mas trabalha para fomentar o
progresso, no qual se engaja e se realiza.
A conquista de si mesmo resulta, portanto, do
amadurecimento psicológico, pela
racionalização dos acontecimentos, e graças às
realizações da solidariedade, que facultam a
superação das provas e dos sofrimentos, os quais
passam então a ter um comportamento filosófico
dignificante — instrumentos de valorização da
vida — ao invés de serem castigos à culpa
oculta, jacente no mundo íntimo.
A libertação dessa consciência doentia facilita
o entendimento do mecanismo da responsabilidade
no comportamento que estabelece o lema: a
cada um conforme os seus atos, segundo
ensinou o Terapeuta Galileu. Assim, senhor do
discernimento, o homem descobre que colhe de
acordo com o que semeia, e que tudo quanto lhe
acontece, procede, não tendo caráter castrador
ou punitivo. Sente-se emulado a gerar novos
futuros efeitos, agindo com consciência e
produzindo com equidade. Tal conduta
proporciona-lhe a alegria que provém da
tranquilidade da realização, considerando que
sempre é tempo de reparar, e postergação é-lhe
prejuízo para a economia da sua plenificação.
O homem que se conquista supera os mecanismos de
fuga, de transferência de responsabilidade, de
rejeição e outros, para enfrentar-se sem
acusação, sem justificação, sem perdão.
Descobre a vida e que se encontra vivo, que hoje
é o seu dia, utilizando-o com propriedade e
sabedoria. Não tem passado, nem futuro, neste
tempo intemporal da relatividade terrestre, e a
sua é uma consciência atual, fértil e rica de
aspirações, que busca a integração na Cósmica,
que já desfruta, vivendo-a nas expressões do
amor a tudo e a todos intensamente.
A
conquista de si mesmo é lograda mediante o querer
Jesus afirmou que se poderia fazer tudo
quanto Ele fez, se se quisesse, bastando
empenhar-se e entregar-se à realização. Para
tanto, necessário seria a fé em si mesmo, nos
valores intrínsecos, que seriam desenvolvidos a
partir do momento da opção.
Francisco de Assis, o santo, assim quis e o
conseguiu; apóstolos do bem, da ciência e da fé,
do pensamento e da ação quiseram, e o lograram;
homens e mulheres anônimos entregaram-se aos
ideais que lhes vitalizaram as existências e,
superando-se, autoconquistaram-se.
A conquista de si
mesmo está ao alcance do querer para ser, do esforçar-se para triunfar, do viver para
jamais morrer.”