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por José Estênio Gomes Negreiros

 

Jesus e seu apóstolo Pedro na visão de um sertanejo nordestino


Gerardo Mendes de Farias era seu nome, mas ficou mais conhecido no círculo dos seus íntimos como Tio Aldo, como assim o chamavam seus sobrinhos lá na fazenda Santa Úrsula, município de Ipu, CE, lugar de suas origens. Quando chegou ao nosso convívio ficou conhecido como Tiau.

Chegou à minha terra natal, a fazenda Pereiros, de propriedade dos meus avós paternos e seus herdeiros, no município de Hidrolândia, CE, lá no começo dos anos 1940, vindo por influência de minha mãe, ipuense da terra onde nasceu a mitológica Iracema, personagem criada pelo romancista cabeça chata José de Alencar. Ocorre que minha genitora tinha um irmão casado com uma irmã do nosso Gerardo Mendes. Logo que ela se casou com meu pai em 1942 e veio morar no sertão, o nosso Tiau acompanhou-a, a seu pedido, talvez para ter junto dela uma pessoa conhecida e de sua confiança, num meio de pessoas estranhas. Tiau casou-se já balzaquiano, teve filhos com sua querida Maria e viveu conosco ou próximo a nós até o fim dos seus dias, creio que na década de 1990.

Era de estatura mediana e se destacava por ser albino, ou gazo, forma mais conhecida no sertão nordestino. Seus olhos, sempre semicerrados, eram como duas tochas azuis irrequietas, talvez em consequência da luz ambiente. Diz a literatura médica que “No caso de pessoas com albinismo, a íris acaba deixando a luz passar, atingindo diretamente a retina. Desta forma, a luz dispersa-se no olho, resultando em uma sensação desconfortável ou dolorida em função da claridade (também conhecida como  Fotofobia).”

Violonista razoável, sempre acompanhava as belas canções que minha mãe cantava e que atenuavam a solidão e o silêncio ensurdecedor que envolviam as longas e monótonas noites do nosso sertão.

Era comum nos ermos agrestes no Nordeste brasileiro, nos tempos em que as residências eram alumiadas pela luz de lamparinas e faróis alimentados por querosene, dormir-se cedo, sobretudo por cansaço físico em virtude das pesadas lidas do dia a dia. Era no ínterim entre o pós-janta e a hora em que o corpo pedia o conforto da rede, que o Tiau exercia outro peculiar atributo seu, qual seja o de exímio contador de histórias do “era uma vez”, também conhecidas por “histórias de Trancoso” (¹).

Adultos e crianças silenciavam quando ele começava a desfiar os seus relatos, quase sempre falando de reis, rainhas, príncipes e princesas que habitavam reinos longínquos, em países imaginários, com seus personagens representados por figuras de heróis e heroínas, vilões e vilãs, em tramas de amor, atos de bravuras, perfídias e mortes. Para não deixar que os seus ouvintes adormecessem ao embalo da sua voz pausada e bonita — um verdadeiro sonífero —, entre um lance e outro das aventuras que narrava, ele despertava os circunstantes, chamando alto o nome do dorminhoco para um detalhe do conto. Contava também histórias de assombração, de visagens. A essas o medo despertava o sono e todos ouviam com muita atenção. A escuridão, o vento que soprava à noite e o canto monótono e que se dizia agourento do pássaro noturno conhecido como “mãe da Lua”, que reboava pela mataria seca e silenciosa, aumentava o pavor na meninada.

Nem mesmo Jesus-Cristo e o Seu seguidor Simão Pedro escapavam da criatividade literária verbal do nosso Roberto Carlos Ramos (O Contador de Histórias) (²) da Santa Úrsula.

Trazendo Jesus e o Seu principal apóstolo para o cenário e os costumes tipicamente cearenses, ele contava a história seguinte (aspas minhas):
“No tempo em que Jesus andava pelo mundo acompanhado de São Pedro, numa boca de noite eles chegaram, mortos de fome e de cansaço pela longa caminhada do dia, numa pequena casa de um casal que ficava na beira da estrada que levava a um pequeno vilarejo no interior do Ceará, para aonde se dirigiam os dois pregadores da palavra de Deus. Ocorre que o dono da casa era um homem muito rude e ignorante e acima de tudo descrente na existência do Criador do Mundo. À custa de muita insistência de São Pedro ele consentiu que os dois se arranchassem, embora enfatizando que nada tinha para lhes dar de comer.

Os dois caminhantes aceitaram de bom grado a caridade do proprietário e armaram suas redes de dormir na pequena sala da frente do casebre. A rede de Jesus foi atada no espaço que ficava defronte à porta de entrada, enquanto Pedro estendeu a Sua no meio da salinha e próximo da entrada do corredor que demandava ao interior do casebre.

Os dois logo caíram num sono solto, embora suas barrigas roncassem de tanta fome, e lá pelo meio da noite ambos despertaram, já plenamente refeitos do cansaço, e começaram a rezar em voz baixa. No entanto, o pesado silêncio que reinava no ambiente fazia com que suas palavras soassem mais alto, logo despertando o dono da casa. Zangado, pediu que os dois se calassem, mas eles continuaram orando mais baixo ainda se esforçando para não incomodar o seu hospedeiro. Bruto que era, o homem deu de garra de um relho cru com o quê açoitou Pedro por debaixo da rede, repetindo a ação duas vezes seguidas.

Jesus e Pedro fizeram silêncio por um bom tempo esperando que o anfitrião de novo adormecesse e então Jesus disse a Pedro:

— Pedro, você já apanhou muito, vamos trocar de rede que eu apanharei por você.

O homem acordou de novo, pegou o relho e disse consigo mesmo:

— Esse desgraçado aqui (referindo-se a Jesus) já apanhou muito. Agora é a vez do outro.

Dirigindo-se à rede de Jesus ora ocupada por Pedro, deu-lhe uma outra surra e depois mais duas! Azar do pobre Simão. Levou cinco surras e Jesus nenhuma.

Silenciosamente os dois desarmaram os seus leitos e saíram sorrateiramente fugindo daquele infiel malvado e descrente em Deus, seguindo em busca de outras paragens onde houvessem ouvintes dispostos a ouvir Sua preciosa e divina palavra que há quase dois mil anos ecoa mundo afora”.
Ávidos por outros contos e enquanto o sono não chegava, algum dos ouvintes do nosso contador de histórias exclamava:

—Entrou no bico do pato saiu no bico do pinto, o senhor rei mandou dizer que nos contasse mais cinco!

Foi assim que Gerardo Mendes, o Tiau, com sua imaginação fértil e suas fantásticas histórias de “Era uma vez...” foi capaz de colocar Jesus e Pedro no cenário das terras ardentes, secas e ensolaradas dos sertões cearenses.

 

(¹) Trancoso é um dos vilarejos mais antigos do Brasil e foi fundado pelos jesuítas em 1583. Apesar da sua longa existência, o lugar se manteve praticamente isolado do resto do mundo, sem eletricidade, sem estradas ou qualquer outra infraestrutura, até 1970, quando um grupo de hippies ali chegou, se apaixonou pelo lugar e resolveu ali ficar. (Dicionário Infopédia da Língua Portuguesa)


(²) Para acessar, clique aqui



 

     
     

O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita