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por Anselmo Ferreira Vasconcelos

 

Espiritismo e responsabilidade social corporativa: explorando algumas convergências


Já não é mais nenhuma novidade o fato de que vivemos num tempo no qual as organizações exercem considerável influência em nossas vidas. De fato, dificilmente conseguimos algo realizar sem a elas recorrer tal a abrangência, penetração na sociedade e, sobretudo, poder que desfrutam. Há, por sinal, muitas empresas transnacionais que têm mais valor econômico do que o PIB de muitas nações no planeta. De maneira muito competente, cumpre reconhecer, elas preenchem com avidez os espaços não explorados pelo poder público, fundamentalmente estimuladas pela sua irrefreável capacidade de empreender e abundância de recursos. Aliás, o Estado pode muito fazer na atual estrutura de governança do mundo, mas as empresas poder fazer ainda mais. Afinal, sem elas não teríamos bens essenciais à continuidade da vida humana.

Mais ainda, elas têm notável capacidade de processar insumos de variada natureza convertendo-os em produtos ou serviços basilares. Mas as empresas – o raciocínio é igualmente válido para toda e qualquer instituição – também têm defeitos e imperfeições, assim como todos nós seres humanos que as dirigimos. Não há nenhuma dúvida que espelham os valores acalentados pelos seus decisores e gestores. Se estes forem virtuosos, é provável que elas também o sejam, mas se eles não forem, é praticamente certo que elas demonstrem uma faceta obscura.

Um dos avanços mais expressivos no corrente século é a preocupação das empresas em adotar as ideias delineadas pelo conceito de responsabilidade social corporativa. Esse moderno conceito empresarial é, muitas vezes, utilizado como sinônimo de empreendimento social, cidadania corporativa, sustentabilidade, desenvolvimento sustentável, gestão dos stakeholders (grupos com os quais as organizações interagem tais como empregados, acionistas, comunidades, governo e fornecedores)ética corporativa e assim por diante.[1] A ideia central é que as empresas avancem além dos seus deveres e obrigações discricionárias com os seus acionistas, incorporando outras preocupações e dimensões na condução das suas atividades. Desse modo, espera-se a adoção de um comportamento socialmente responsável por meio das decisões e ações tomadas quer por indivíduos, quer por organizações, na direção de aumentar o bem-estar social (ou seja, fazer o bem) ou para evitar prejuízos à sociedade.

Ao perseguir esses objetivos – que vão além da exclusiva preocupação com obtenção de lucro para os acionistas, missão precípua das empresas, conforme outrora defendido pelo célebre economista americano Milton Friedman (1912-2006) – não tão prosaicos, digamos assim, os gestores empresariais cooperam a serviço do bem comum, que é o que se espera avidamente nesse século. Para a realização dessa tarefa, portanto, necessário se faz considerar as interdependências, assim como as demandas não raro conflitantes dos diversos stakeholders.[2]

Assim sendo, chegamos ao estágio no qual as atividades inerentes ao conceito de responsabilidade social corporativa englobam legítimas demandas sociais, que permeiam um terreno comum entre as necessidades empresariais e as públicas. Um exemplo saliente é a busca de sustentabilidade para contemplar os direitos humanos preconizado pelo Pacto Global da ONU.[3] 

Portanto, tal assunto ganhou enorme relevância considerando o amadurecimento e aperfeiçoamento dos processos de gestão empresariais, bem como a crescente destruição da natureza e o depauperamento dos seus finitos recursos. Posto isto, é sempre pertinente frisar que a implacável exploração do meio ambiente por meio de ações extrativistas, o envenenamento dos rios e oceanos e as atividades alicerçadas no intenso uso do carbono geraram graves mudanças climáticas, que nos cobram agora um alto preço. E as soluções para remediar tão nefasto quadro não são simples e os seus impactos demorados. Entretanto, não se pode mais cruzar os braços nem se omitir diante das inúmeras evidências da ação inconsequente dos seres humanos, que, em síntese, envenenaram o mundo. Dentro desse contexto assustador, ações corporativas responsáveis são essenciais para que o mal já causado seja pelo menos mitigado.

Recordemos, a propósito, que a Terra abriga não apenas seres encarnados, mas bilhões de Espíritos desencarnados aguardando a hora de voltar ao ambiente material para dar prosseguimento ao seu autoaperfeiçoamento. Há inegavelmente aí um componente de natureza espiritual – esteja ele ancorado em princípios religiosos ou não - que os cientistas de mentalidade mais aberta estão começando a contemplar.[4] Por exemplo, para o pesquisador Andrew J. Hoffman, da Universidade de Michigan, quando as pessoas ouvem os apelos oriundos das igrejas, mesquitas, sinagogas ou templos estimulando-as a pensar na mudança climática, assim como a proteger o meio ambiente, há uma conexão com o seu âmago porque estão vivas.[5]

Com efeito, as religiões podem fazer muito no sentido de alertar as pessoas para as suas inúmeras responsabilidades, inclusive as relativas às dimensões ora analisadas. O Espiritismo, por sua vez, na função de Consolador Prometido, tem total lastro na moral cristã, que recomenda, nada mais nada menos, do que a desafiadora busca da perfeição.  

Nesse sentido, o Espírito Emmanuel adverte, com propriedade, para o fato de que “Muitos escutam a palavra do Cristo, entretanto, muito poucos são os que colocam a lição nos ouvidos”. A elevada entidade ainda observa que “Os círculos doutrinários do Cristianismo estão repletos de aprendizes que ... Comparecem às atividades espirituais, sintonizando a mente com todas as inquietações inferiores, menos com o Espírito do Cristo. Dobram joelhos, repetem fórmulas verbalistas, concentram-se em si mesmos, todavia, no fundo, atuam em esfera distante do serviço justo”.[6]

Não obstante as falhas e deficiências humanas, chegamos a um novo tempo: a era da transição, como nos informam os missionários de Deus. Desse modo, esse é o momento de aferição de valores e motivações – até porque a nossa Casa Maior, a Terra, está seriamente ameaçada devido a nossa incúria. As consequências deploráveis dos nossos excessos são visíveis por toda a parte. É, portanto, imperativo mudar no sentido de se agir com mais responsabilidade em todas as esferas da vida.

Ecoando o pensamento de Kardec, “Hoje, a humanidade está madura para lançar o olhar a alturas que nunca tentou divisar, a fim de nutrir-se de ideias mais amplas e compreender o que antes não compreendia”.[7] Estendendo o seu raciocínio, o Codificador acrescenta que: “À medida que os homens se instruem acerca das coisas espirituais, menos valor dão às coisas materiais. Depois, necessário é que se reformem as instituições humanas que o entretêm e excitam. Isso depende da educação”.[8] Kardec igualmente elucida que é missão dos Espíritos encarnados (questão 573 d’O Livro dos Espíritos):


“... instruir os homens, em lhes auxiliar o progresso; em lhes melhorar as instituições, por meios diretos e materiais. As missões, porém, são mais ou menos gerais e importantes. O que cultiva a terra desempenha tão nobre missão, como o que governa, ou o que instrui. Tudo na Natureza se encadeia. Ao mesmo tempo que o Espírito se depura pela encarnação, concorre, dessa forma, para a execução dos desígnios da Providência. Cada um tem neste mundo a sua missão, porque todos podem ter alguma utilidade”.[9]


Posto isto, o Espiritismo preceitua que o indivíduo é o grande agente das mudanças. Ou seja, só o homem espiritualizado pode desempenhar um papel mais consentâneo com a ideia de evolução, reformando as instituições e ajudando os seus irmãos no rumo do progresso generalizado. O indivíduo que guarda os ensinamentos do Cristo como diretriz de vida comporta-se adequadamente, pois não deseja para si o que também não deseja para os outros. Allan Kardec explorou magistralmente essa ideia ao delinear o perfil do “homem de bem”. Entre outros aspectos, ele enfatizou que:


“O verdadeiro homem de bem é o que cumpre a lei de justiça, de amor e de caridade, na sua maior pureza. Se ele interroga a consciência sobre seus próprios atos, a si mesmo perguntará se violou essa lei, se não praticou o mal, se fez todo o bem que podia, se desprezou voluntariamente alguma ocasião de ser útil, se ninguém tem qualquer queixa dele; enfim, se fez a outrem tudo o que desejara lhe fizessem.

“[...]

“Encontra satisfação nos benefícios que espalha, nos serviços que presta, no fazer ditosos os outros, nas lágrimas que enxuga, nas consolações que prodigaliza aos aflitos. Seu primeiro impulso é para pensar nos outros, antes de pensar em si, é para cuidar dos interesses dos outros antes do seu próprio interesse. [...].

“O homem de bem é bom, humano e benevolente para com todos, sem distinção de raças, nem de crenças, porque em todos os homens vê irmãos seus.

“[...]

“Estuda suas próprias imperfeições e trabalha incessantemente em combatê-las. Todos os esforços emprega para poder dizer, no dia seguinte, que alguma coisa traz em si de melhor do que na véspera.

“[...]

“Se a ordem social colocou sob o seu mando outros homens, trata-os com bondade e benevolência, porque são seus iguais perante Deus; usa da sua autoridade para lhes levantar o moral e não para os esmagar com o seu orgulho. Evita tudo quanto lhes possa tornar mais penosa a posição subalterna em que se encontram.

“[...]”.


Em suma, Kardec definiu as características básicas de um indivíduo com alto grau de consciência e responsabilidade. Seria óbvio supor que é exatamente desse tipo de ser humano que necessitamos operando as instituições, organizações, assim como estabelecendo os rumos das nossas sociedades, enfim. Aliás, Jesus Cristo foi muito preciso ao definir que se conhece a árvore pelo fruto. Mais especificamente, “Assim, toda a árvore boa produz bons frutos, e toda a árvore má produz frutos maus. Não pode a árvore boa dar maus frutos; nem a árvore má dar frutos bons. Toda a árvore que não dá bom fruto corta-se e lança-se no fogo. Portanto, pelos seus frutos os conhecereis” (Mateus 7: 17-20). Em outras palavras, podemos identificar o caráter das pessoas (a árvore) através das suas obras, feitos e opiniões (seus frutos).

Analogamente, podemos determinar a inclinação de uma empresa pelos valores organizacionais que ela defende, assim como pelas suas práticas e ações concretas. A guisa de exemplo, cabe lembrar os tristes e lamentáveis acontecimentos recentes ocorridos em Mariana e Brumadinho, no estado de Minas Gerais, protagonizados por duas importantes mineradoras, e que culminaram com mortes, destruição do patrimônio privado, sem falar dos danos causados à natureza e ao meio ambiente. Ambas empresas tinham perfeita ciência dos riscos que as suas operações estavam correndo, e, mesmo assim, decidiram seguir em frente desprezando os sensatos alertas. Infelizmente, episódios semelhantes têm ocorrido em outras partes do mundo com organizações de outros setores. Em tais casos, o bem-estar humano, é duro admitir, tem pouco ou mesmo nenhuma prioridade. O mais paradoxal é que, não raro, são empresas que possuem programas de responsabilidade social e sustentabilidade, entre outras certificações, mas implementados de maneira instrumental, isto é, sem a solidez e comprometimento necessários. Usam-nos para lustrar a sua imagem e reputação de empresa séria, mas, na prática, desprezam as medidas indispensáveis agindo com irresponsabilidade.

Dado, assim, o amplo papel representado pelas instituições, como acima aludido, torna-se vital, então, que passem por urgentes transformações em seus modus operandi. É fundamental que abracem seriamente a responsabilidade social de bem servir a humanidade, bem como contribuir para algo maior, sem abdicar dos seus legítimos interesses empresariais. As organizações humanas precisam incorporar outro ethos, ou seja, o espiritual. Como parte integrante da obra divina necessitam de intensa lapidação moral para bem executar a sua missão de atender às necessidades humanas.

A relevância do tema comporta ainda recordar outro extraordinário ensinamento de Jesus: “Nem todo aquele que me diz: Senhor, Senhor! entrará no reino dos céus, mas apenas aquele que faz a vontade de meu Pai, que está nos céus” (Mateus 7:21). A clara e expressa vontade de Deus é que sejamos seres melhores e mais fraternos. Amar a Deus e ao próximo são mandamentos celestiais que não deixam qualquer dúvida a respeito. Desse modo, os transgressores das leis e os executivos negligentes ou criminosos não devem esperar no além-túmulo por benefícios aos quais não fizeram jus. Todos nós daremos contas de nossa administração perante a espiritualidade cedo ou tarde como vaticinou Jesus. No mesmo diapasão, outra eminente entidade espiritual também alerta: “[...] Todos somos senhores de nossas criações e, ao mesmo tempo, delas escravos infortunados ou felizes tutelados. Pedimos e obteremos, mas pagaremos por todas as aquisições. A responsabilidade é princípio divino a que ninguém poderá fugir”.[10] Para o nosso próprio bem, oxalá que nos apresentemos do lado de lá no momento oportuno carregando um bom capital espiritual.

Por fim, vale ressaltar que a concepção de responsabilidade social corporativa se assenta plenamente nos postulados espíritas de busca incessante da evolução, aliás, como qualquer outro conceito, teoria ou prática que vise o bem-estar humano, o aperfeiçoamento das instituições e a preservação do planeta.

 

Notas bibliográficas:

1. Richter, U.H. (2010). Liberal thought in reasoning on CSRJournal of Business Ethics, 97(4), 625–649.

2. Crilly, D., Schneider, S.C. and Zollo, M. (2008). Psychological antecedents to socially responsible behavior. European Management Review, 5(3), 175–190.

3. Fyke, J.P., Feldner, S.B., & May, S.K. (2016). Discourses about righting the business←→ society relationship. Business and Society Review, 121(2), 217-224.

4. Hogan, L.S. (2000). A framework for the practical application of spirituality at work” in Biberman, J. & Whitty, M. D. (Eds.), Work and spirit: a reader of new spiritual paradigms for organizations (pp. 55-76). Chicago: University of Scranton Press; Heaton, D.P., Schmidt-Wilk, J., & Travis, F. (2004). Constructs, methods, and measures for researching spirituality in organizations. Journal of Organizational Change Management, 17(1), 62-82.

5. Hoffman, A.J. (2021). Management As a Calling: Leading Business, Serving Society. Stanford, CA: Stanford University Press, p. 116.

6. Xavier, F.C. (Pelo Espírito Emmanuel). (1977). Vinha de Luz. 4ª edição. Rio de Janeiro, RJ: FEB, p. 153.

7. Kardec, A. (2013). A Gênese. 53ª edição. Brasília, DF: FEB, p. 366.

8. Kardec, A. (2013). O Livro dos Espíritos. 93ª edição. Brasília, DF: FEB,  p. 404.

9. Idem, p. 275.

10. Xavier, F.C. (Pelo Espírito André Luiz). (1980). Entre a Terra e o Céu. 7ª edição. Rio de Janeiro, RJ: FEB, p. 12.  
 

 

 

     
     

O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita