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por Adair Ribeiro, Carlos Seth Bastos e Luciana Farias

 

Carta de Kardec sobre A Gênese: uma análise de fonte primária


Em doze anos à frente da Doutrina Espírita, Allan Kardec colecionou as cartas trocadas com correspondentes na França e no exterior, formando o que ele denominou de "preciosos arquivos para o Espiritismo" [1]. Parte destes arquivos foi preservada e hoje está em acervos, como o do museu Allan Kardec online (AKOL), contendo mais de 2.500 páginas manuscritas, como cartas e documentos da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas [2]. Estes manuscritos, após transcritos e traduzidos via parceria com a Universidade Federal de Juiz de Fora, são divulgados no Portal Allan Kardec. [3].

Outro acervo desta parceria é o de Canuto Abreu, sob a guarda da FEAL, que desde que foi divulgado no projeto Cartas de Kardec, em outubro de 2018, levantou muita expectativa no meio espírita ao anunciar que "Allan Kardec revela os bastidores, a intimidade, a verdadeira história do Espiritismo em 740 manuscritos inéditos que sobreviveram após 150 anos de perseguição". [4]

Manuscritos, por serem fontes primárias, são um dos focos das pesquisas publicadas nas páginas do Allan Kardec Online [5] e do CSI do Espiritismo [6] que, somando-se às consultas a outras fontes, oferecem maior riqueza de detalhes no esforço de construir a história do Espiritismo, respondendo perguntas como: que eventos ocorreram? Onde? Quando? Quem foram os envolvidos?

Dentre os manuscritos pesquisados, destaca-se um rascunho de carta que trata sobre a autorização para tradução em alemão de A Gênese, os milagres e as predições segundo o Espiritismo, uma das obras fundamentais da Doutrina Espírita. Disponibilizado originalmente no site Espírito.org.br [7], como complemento do livro Nem Céu nem Inferno, as Leis da Alma segundo o Espiritismo, o manuscrito conta com a transcrição feita à máquina por Canuto Abreu, porém não há tradução.

No intuito de demonstrarmos os resultados possíveis de serem alcançados e os benefícios do uso desse tipo de fonte de informação na pesquisa espírita, oferecemos aqui uma tradução deste manuscrito, as conexões feitas entre seu conteúdo e outras fontes de informação e as conclusões que extraímos de sua leitura. As letras destacadas na margem esquerda são usadas como referência em nossas considerações:


(A) Paris, 25 de setembro de 1868.

(B) Senhor,

(C) Não estando o senhor Allan Kardec em Paris neste momento, precisei entregar a ele a sua carta, o que impediu que fosse respondida imediatamente, tal qual o senhor teria desejado.

(D) Ademais, como está muito doente, ele mesmo não pôde lhe responder, e por isso ele me encarrega de substituí-lo.

(E) Dado que O Livro dos Espíritos e O Livro dos Médiuns foram traduzidos pelo Sr. Delhez, a obra mais importante a ser traduzida, e aquela que faria, no momento, o maior sucesso na Alemanha, é A Gênese. É também aquela pela qual ele deseja que se comece, e, portanto, ele [Allan Kardec] dá voluntariamente a permissão ao Sr. Bidder, sob a condição da entrega de 50 exemplares.

(F) Essa obra está, neste momento, na reimpressão com correções e acréscimos importantes. É dessa nova edição que ele [Allan Kardec] quer que a tradução seja feita. Consequentemente, ele lhe enviará as folhas à medida que forem impressas; já existe cerca de metade delas.

(G) O Céu e o Inferno vai igualmente ser reimpresso com correções.

(H) Inteiramente pronto, portanto, haveria apenas O Evangelho; mas, repito, é útil, no interesse da coisa, começar por A Gênese, da qual eu posso lhe enviar as primeiras folhas em poucos dias.

(I)  Embora o Sr. A. K. não tenha tido o prazer de conhecer o senhor Bidder, ele está encantado em lhe poder ser útil nessa circunstância, visto que ele se apresenta sob sua recomendação e à do Sr. Conde [Poninski], com quem ele se corresponde.

(J)  Um ponto importante é a exatidão da tradução; ele considera que o senhor e o Sr. [Poninsky] não teriam proposto ao Sr. Bidder se não tivessem certeza de que o trabalho seria realizado convenientemente em relação à fidelidade da reprodução dos pensamentos e à correção do texto em alemão. (Grifos nossos)

(K) Assim que o Sr. Allan Kardec puder, ele terá a honra de lhe escrever; enquanto aguarda, o senhor pode ter como certa a autorização que ele me encarrega de lhe transmitir.

(L) Queira aceitar, eu lhe peço, senhor, a expressão de minhas mais distintas saudações. (Grifos e textos em colchetes nossos.)


No rascunho, na letra inconfundível de Allan Kardec, o mestre responde a uma carta recebida por ele há algum tempo (C), sem a identificação do destinatário (B). O texto foi escrito em terceira pessoa, indicando que a carta seria passada à limpo e efetivamente enviada ao seu destinatário por alguém encarregado pelo mestre (D). Trata-se da escolha da próxima obra da codificação a ser traduzida para o alemão pelo Sr. Bidder, cuja identidade ainda não localizamos. Kardec propõe que seja A Gênese e justifica sua escolha (E).

A carta indica apenas duas obras traduzidas até aquele momento, para o alemão pelo Sr. Constantin Delhez (E), presidente da Sociedade Espírita de Viena [910], das quais localizamos somente a primeira [8]. Destacamos que ele também traduziu O Espiritismo em sua expressão mais simples [11], noticiado na Revista Espírita de junho de 1862 e não citado pela carta.

Kardec relata a nova edição de A Gênese, em reimpressão em setembro de 1868 (A), e de O Céu e o Inferno, a ser reimpressa (F, G). Dentro do processo de publicação, essa reimpressão provavelmente é a "prova" impressa pela tipografia após montar os tipos móveis para revisão pelo autor, visando confirmar que estes refletem o manuscrito original, antes dele autorizar a impressão dos exemplares para venda e a geração das matrizes, se for o caso [1213]. Rousset, funcionário da tipografia, informa ter feito matrizes de A Gênese em 1868, cobradas do Sr. Rivail no final do referido ano, o que implica que a montagem dos tipos móveis foi previamente aprovada [13].

Kardec ponderou que, dentre as obras não traduzidas, o Evangelho seria a única com o texto definitivo (3a edição de 1866) e, mesmo assim, entendeu ser mais útil traduzir antes A Gênese, a partir da edição recém-atualizada (H) e ainda não publicada (F, H). Evidencia-se que o autor considerava aquele um trabalho acabado e, portanto, se dispôs a enviar logo as folhas já impressas.

Kardec não conhecia pessoalmente o senhor Bidder, mas dava crédito a ele por confiar na recomendação do destinatário, que estava intermediando a negociação da tradução, e do senhor Conde Poninski, antigo correspondente (J) [14], cujo retrato encontramos na Biblioteca Estadual da Baviera [15]. Não encontramos a tradução para o alemão realizada pelo Sr. Bidder, o que pode significar que esta negociação não foi finalizada ou não foi cumprida, sem interferir na veracidade das demais informações.

A carta acima analisada, com a investigação complementar das informações presentes nela e o cruzamento com outras informações, demonstram o potencial que o acervo de manuscritos propicia, dentro de uma pesquisa documental, em nos fornecer detalhes sobre os eventos ocorridos e enriquecer a historiografia do Espiritismo.

 

Referências:

1. Aos nossos correspondentes. Revista Espírita de novembro de 1862.

2. DOC. 1

3. DOC. 2

4. DOC. 3

5. DOC. 4

6. DOC. 5

7. DOC. 6

8. Allan Kardec. Das Buch der Geister, nova edição, 1868.

9. DOC. 7

10. DOC. 8

11. Allan Kardec. “Der” Spiritismus in seinem einfachsten Ausdruck, 2a edição, 1864. - DOC. 9.

12. DOC. 10.

13. DOC. 11

14. Suíte de ‘Fictions et insinuations’, Revista Espírita de 15 de dezembro de 1884.

15. DOC. 12

16. DOC. 13


 
 
 

     
     

O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita