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por Rogério Coelho

 

As funestas consequências da ortodoxia


Allan Kardec pôs-nos sempre de sobreaviso contra o dogmatismo e o espírito de seita


O radicalismo é sempre um caminho tortuoso na relação humana, haja vista o que acontece no Oriente Médio desde todos os tempos até hoje...

Foi em nome da ortodoxia, do fundamentalismo e do fanatismo que o califa Omar mandou destruir a biblioteca de Alexandria provocando a perda total de um valioso acervo cultural. E a justificativa para tal barbárie, conforme reporta Allan Kardec[1], foi o seguinte “raciocínio” do soberano: “se a biblioteca contém só o que está no Alcorão, não precisamos dela, se contém coisa diversa do Alcorão, mais razão temos ainda para destruí-la”.

Aprendemos com Léon Denis[2] que, por todas as razões, “(...) o Espiritismo não dogmatiza; não é uma seita nem uma ortodoxia. É uma filosofia viva, patente a todos os espíritos livres, e que progride por evolução. Não faz imposições de ordem alguma; propõe, e o que propõe apoia-se em fatos de experiência e provas morais; não exclui nenhuma das outras crenças, mas se eleva acima delas e abraça-as numa fórmula mais vasta, numa expressão mais elevada e extensa da verdade.

As Inteligências superiores abrem-nos o caminho, revelam-nos os princípios eternos, que cada um de nós adota e assimila, na medida da sua compreensão, con­soante o grau de desenvolvimento atingido pelas faculda­des de cada um na sucessão das suas vidas.

Em geral, a unidade de doutrina é obtida unicamente à custa da submissão cega e passiva a um conjunto de princípios, de fórmulas fixadas em moldes inflexíveis. É a petrificação do pensamento, o divórcio da Religião e da Ciência, a qual não pode passar sem liberdade e movi­mento. Esta imobilidade, esta inflexibilidade dos dogmas priva a Religião, que a si mesma as impõe, de todos os benefícios do movimento social e da evolução do pensa­mento. Considerando-se como a única crença boa e ver­dadeira, chega ao ponto de proscrever tudo o que está fora dela e empareda-se assim numa tumba para dentro da qual quisera arrastar consigo a vida intelectual e o gênio das raças humanas.

O que o Espiritismo mais toma a peito é evitar as funestas consequências da ortodoxia. A sua revelação é uma exposição livre e sincera de doutrinas, que nada têm de imutáveis, mas que consti­tuem um novo estádio no caminho da Verdade Eterna e Infinita. Cada um tem o direito de analisar-lhe os prin­cípios, que apenas são sancionados pela consciência e pela razão. Mas, adotando-os, deve cada um conformar com eles a sua vida e cumprir as obrigações que deles deri­vam. Quem a eles se esquiva não pode ser considerado como adepto verdadeiro. Allan Kardec sempre nos colocou de sobreaviso contra o dogmatismo e o espírito de seita; recomenda-nos sem cessar, nas suas obras, que não deixemos cristalizar o Espiritismo e evitemos os métodos nefastos, que arrui­naram o espírito religioso.

Nos nossos tempos de discórdias, de lutas políticas e religiosas, em que a Ciência e a ortodoxia estavam em guerra, quiseram demonstrar aos homens de boa vontade, de todas as opiniões, de todos os campos, de todas as crenças, assim como a todos os pensadores verdadeiramente livres e de largo descortino, que há um terreno neutro, o do espiritualismo experimental, onde nos podemos encontrar, dando-nos mutuamente as mãos. Não mais dogmas! Não mais mistérios! Abramos o entendimento a todos os sopros do Espírito, bebamos em todas as fontes do passado e do presente. Digamos que em todas as doutrinas há parcelas da verdade; nenhuma, porém, a encerra completamente, porque a verdade, em sua plenitude, é mais vasta do que o espírito humano. É somente no acordo das boas vontades, dos corações sinceros, dos espíritos livres e desinteressados que se realizarão a harmonia do pensamento e a conquista da maior soma de verdade assimilável para o homem.

Não há antítese entre a Ciência e a verdadeira Religião, mas apenas mal-entendidos. A antítese se dá entre a Ciência e a ortodoxia, o que nos é provado pelas recentes descobertas da Ciência, que nos aproximam sensivelmente das doutrinas sagradas do Oriente e da Gália, no que diz respeito à unidade do mundo e à evolução da vida. Prosseguindo a sua marcha paralela na grande estrada dos séculos, a Ciência e a crença virão forçosamente a encontrar-se um dia, pois que idênticos são ambos os seus alvos, que acabarão por se penetrarem reciprocamente. A Ciência será a análise, a Religião virá a ser a síntese. Nelas unificar-se-ão o mundo dos fatos e o mundo das causas, os dois termos da inteligência humana vincular-se-ão, rasgar-se-á o véu do Invisível; a obra divina aparecerá a todos os olhares em seu majestoso esplendor!”

Com a clareza e lucidez intelectual que caracteriza suas elucubrações, Kardec[3] esclarece-nos da seguinte forma acerca da

ALIANÇA ENTRE A CIÊNCIA E A RELIGIÃO

“A Ciência e a Religião são as duas alavancas da inteligência humana: uma revela as leis do mundo material e a outra as do mundo moral.  Tendo, no entanto, essas leis, o mesmo princípio, que é Deus, não podem contradizer-se. Se fossem a negação uma da outra, uma necessariamente estaria em erro e a outra com a verdade, porquanto Deus não pode pretender a destruição de sua própria obra. A incompatibilidade que se julgou existir entre essas duas ordens de ideias provém apenas de uma observação defeituosa e de excesso de exclusivismo, de um lado e de outro. Daí um conflito que deu origem à incredulidade e à intolerância.

São chegados os tempos em que os ensinamentos do Cristo têm de ser completados; em que o véu intencionalmente lançado sobre algumas partes desse ensino tem de ser levantado; em que a Ciência, deixando de ser exclusivamente materialista, tem de levar em conta o elemento espiritual, e, em que a Religião, deixando de ignorar as leis orgânicas e imutáveis da matéria, como duas forças que são, apoiando-se uma na outra e marchando combinadas, se prestarão mútuo concurso. Então, não mais desmentida pela Ciência, a Religião adquirirá inabalável poder, porque estará de acordo com a razão, já se lhe não podendo mais opor a irresistível lógica dos fatos.

A Ciência e a Religião não puderam, até hoje, entender-se, porque, encarando cada uma as coisas do seu ponto de vista exclusivo, reciprocamente se repeliam. Faltava com que encher o vazio que as separava, um traço de união que as aproximasse. Esse traço de união está no conhecimento das leis que regem o Universo espiritual e suas relações com o mundo corpóreo, leis tão imutáveis quanto as que regem o movimento dos astros e a existência dos seres. Uma vez comprovadas pela experiência essas relações, nova luz se fez: a fé dirigiu-se à razão; esta nada encontrou de ilógico na fé; vencido foi o materialismo. Mas, nisso, como em tudo, há pessoas que ficam atrás, até serem arrastadas pelo movimento geral, que as esmaga, se tentam resistir-lhe, em vez de o acompanharem. É toda uma revolução que neste momento se opera e trabalha os Espíritos. Após uma elaboração que durou mais de dezoito séculos, chega ela à sua plena realização e vai marcar uma nova era na vida da Humanidade. Fáceis são de prever as consequências: acarretará para as relações sociais inevitáveis modificações, às quais ninguém terá força para se opor, porque elas estão nos desígnios de Deus e derivam da lei do progresso, que é lei de Deus”.

 


[1] - KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. 88. ed. Rio [de Janeiro]: FEB, 2006, conclusão, tomo VIII.

[2] - DENIS, Léon. O problema do ser, do destino e da dor. 23. Ed. Rio [de Janeiro]: FEB, 2000, 1ª parte, cap. II, p. 51-53.

[3] - KARDEC, Allan. O Evangelho seg. o Espiritismo. 125. ed. Rio [de Janeiro]: FEB, 2006, cap. I, item 8.


 

 

     
     

O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita