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por Marcelo Teixeira

 

Em teu seio, só rubores


A história que irei narrar aconteceu há alguns anos em um centro espírita do RJ. O fato envolveu dois trabalhadores: Petrônio, responsável pelo departamento de divulgação; e Raul, o presidente da instituição.

Petrônio era (e ainda deve ser) um grande fã de cinema. Estava sempre por dentro dos lançamentos, premiações, opinião da crítica especializada etc. E como cinéfilo que se preza, participava de rodas de cultura, que promovem sessões seguidas de debates. Cinema era um assunto que Petrônio dominava. E arrastava, com muito prazer, esposa, filhos e amigos para o seu saudável hobby. Tanto que todos, inclusive o pessoal do centro espírita, vivia pedindo dicas de bons filmes para ele.

Era o ano de 2006. Um dos indicados ao Oscar de melhor produção estrangeira foi “Feliz Natal” (“Joyeux Noël”), uma coprodução entre França, Romênia, Bélgica, Alemanha e Inglaterra. O filme conta a história – verídica – de uma trégua ocorrida no front de batalha da I Guerra Mundial (1914-1918), numa véspera de Natal. Na ocasião, os soldados alemães, franceses e escoceses deixaram suas trincheiras em campos opostos e, juntos, comemoraram a data.

À época do lançamento, Petrônio não assistiu à película no cinema. Foi vê-la meses depois, em DVD, numa sessão de cinéfilos seguida de debate.

Todos os presentes ficaram encantados com a história.  Na tela, um soldado alemão que era também cantor lírico sobe numa pequena elevação e canta uma música natalina. Do lado escocês, um combatente toca uma gaita de fole. De repente, os líderes dos três exércitos conversam entre si e decidem estabelecer uma trégua. Então, todos confraternizam, ceiam, jogam bola, ficam amigos, trocam endereços e marcam visitas para depois que a guerra terminar... E chegam ao luxo de dar o seguinte aviso ao campo oposto: – Recebemos ordens para bombardear a trincheira de vocês. Mas se vocês quiserem, podem se proteger na nossa trincheira.

Inacreditável que isso tenha acontecido em plena Primeira Grande Guerra! Mas aconteceu, virou filme coproduzido por cinco países, fez um baita sucesso, concorreu ao Oscar e estava sendo debatido e elogiado em todo o mundo, inclusive no grupo cinéfilo do qual Petrônio fazia parte. Soldados camaradas protegendo uns aos outros, apesar de estarem em lados opostos. Uma denúncia e tanto à imbecilidade das guerras, promovidas por governantes e seus interesses escusos. E uma clara evidência de que somos muito mais iguais do que pensamos.

À mesma época em que Petrônio assistiu e debateu “Feliz Natal” com os demais apreciadores da sétima arte, a diretoria do centro espírita do qual ele faz parte há mais de 20 anos resolveu montar uma programação especial de fim de ano. Petrônio, como responsável pela divulgação, sugeriu a exibição de “Feliz Natal”, no que foi seguido por alguns companheiros que haviam assistido à obra. Raul, o presidente da instituição, não havia visto o filme, mas seguiu a sugestão dos colaboradores, principalmente Petrônio, que viu na exibição da película no centro espírita um ótimo ensejo para que fossem debatidas questões como fraternidade, amor ao próximo, aceitação de diferenças, hipocrisia de religiões institucionalizadas etc.

No dia marcado para a exibição, Petrônio havia viajado a trabalho para outra cidade. E foi só nesse dia, na parte da manhã, que Raul assistiu ao DVD de “Feliz Natal”. A exibição no centro estava marcada para o fim da tarde.

Petrônio estava almoçando quando o celular tocou. Era Raul, e visivelmente aborrecido. Motivo: havia uma mulher com os seios à mostra no filme e, por isso, a exibição de “Feliz Natal” estava cancelada. Em seu lugar, às pressas, foi colocada uma adocicada produção norte-americana que abordava o amor além da morte.

A surpresa de Petrônio não foi tão grande quanto o alívio por não estar presente no centro e nem na cidade àquele dia. Mesmo assim, o suposto seio de fora o intrigava. Afinal, o elenco da produção era masculino. Que cena era essa que tornava o filme ofensivo ao público de um centro espírita?

Dias depois, Petrônio pegou o filme na locadora e o reviu em casa. A cena que causara a indignação do presidente da instituição mostrava o já citado cantor lírico alemão deitado na cama com a esposa, também cantora. Ambos conversam sobre a gravidade de ele se afastar do ofício e ter de ir para a guerra lutar por uma causa que não lhe pertencia. Em dado momento, a mulher se vira na cama e parte do seio esquerdo fica à mostra. Tudo muito rápido e dentro de um contexto que mostra a intimidade bonita e saudável entre um homem e uma mulher que se amam. E muito antes de a grande mensagem do filme começar a ser mostrada.

Provavelmente, Raul não assistiu à história toda. Ele se ateve à metade esquerda do seio esquerdo da atriz. Foi o suficiente para barrar a película.  

O que terá passado pela cabeça dele? Várias coisas, eu suponho. Ele achou o filme totalmente impróprio devido a um seio parcialmente exposto. Talvez ele tenha ficado com receio da reação dos demais frequentadores da casa ao se depararem com a referida cena. Ou então, achou que o fato faria a plateia ruborizar, a vibração baixar e possibilitar que o centro fosse invadido por hordas de obsessores. Até parece que é assim! Mas como muitos espíritas gostam de subestimar os amigos espirituais, o conservadorismo acaba dando o tom de muitos centros espíritas.

Talvez os presentes não achassem nada demais. No entanto, é sempre mais fácil transferirmos para os outros um incômodo que é nosso. Sim; é isso que fazemos quando indagamos o que os outros irão pensar. Herança de um país colonizado por beatices católicas e que ainda acha imoral qualquer laivo de sexualidade ou erotismo sadios. Uma mentalidade que ainda grassa pelo movimento espírita, pelo visto. 

De qualquer forma, o episódio mostra como boa parte dos espíritas é puritana e conservadora, a ponto de considerar ameaçadora uma cena que é comum entre pessoas que se amam e que foi mostrada com sensibilidade e sutileza em “Feliz Natal”. Um lance que, de tão ligeiro, passa despercebido por quem está interessado em absorver a real mensagem do filme.

Lamentável da parte de Raul julgar que uma cena docemente erótica e rápida seria mais impactante que a lição de humanidade que o filme dá ao mostrar soldados de tropas inimigas se tratando e se cuidando como irmãos em humanidade. Uma mensagem e tanto para ser mostrada e debatida pela turma do centro espírita em tempos de festas natalinas.  

Infelizmente, o tolo conservadorismo cheio de pruridos ainda existente na cabeça de muitos espíritas falou mais forte que a vivência do Natal em sua mais pura essência e em meio a uma guerra que nunca é dos que são recrutados para morrer pela pátria.

É por isso que, muitas vezes, os Petrônios da vida desanimam e se afastam do centro espírita. Aí, são tachados de rebeldes, obsidiados etc. Bastaria apenas haver dirigentes espíritas com cabeça mais arejada para transformar os centros que dirigem em locais mais dinâmicos, abertos e desprovidos de tabus envolvendo o corpo e a sexualidade humana.


 
 

     
     

O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita