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por Ricardo Baesso de Oliveira

 

Comportamento pró-social


O mais revolucionário princípio evolutivo, recentemente assimilado pela Biologia evolucionária, admite a cooperação como elemento presente na evolução humana. Assim, pode-se considerar a existência de duas grandes forças evolutivas contribuindo igualmente na sobrevivência da nossa espécie: a competição, caracterizada pela sobrevivência do mais apto e a cooperação entre os indivíduos da espécie.

Kardec se valeu das expressões instinto do mal instinto do bem[i], antecipando-se aos modernos conceitos da ciência biológica. O Espírito humano traz em sua natureza íntima duas forças antagônicas, construídas pela evolução biológico/espiritual: uma força, que hoje responde por grande parte de seus defeitos, mas que foi essencial na sua sobrevivência e fazia parte do instinto de conservação[ii]. Outra força, que o direciona na construção do bem em si mesmo, que também resulta de um instinto – o instinto humanitário/ cooperativo - que permitiu ao homem primitivo a sobrevivência em um mundo extremamente hostil.

Com o surgimento da cultura humana, há cerca de 50 mil anos, normas culturais foram somando esforços em benefício do desenvolvimento do impulso do bem, denominado pela Psicologia social como comportamento pró-social. As religiões, a escola e diferentes organizações civis foram paulatinamente construindo e reforçando ideias que promovem a solidariedade e o espírito da fraternidade humana.

Três normas sociais, em particular, são consideradas importantes para promover o comportamento de ajuda[iii]: A norma da reciprocidadeprescreve que devemos retribuir os benefícios e favores que recebemos dos outros – a gratidão como uma virtude a ser cultivada. A norma da justiça social promove o sentimento nobre de concorrer para a redução das desigualdades sociais, oferecendo oportunidades iguais a todos e a norma da responsabilidade socialcultiva o pensamento de que devemos ajudar as pessoas que são incapazes de ajudarem a si próprias.

Apesar dos esforços da sociedade contemporânea, bem mais proativa que a do passado, muitos de nós nos mantemos na retaguarda espiritual, cristalizados no impulso predatório da esperteza, da má índole e da exploração alheia, muitas vezes, nos valendo de um hipotético (mas falso) comportamento altruístico que, em verdade, só tem a ver com o nosso próprio interesse.

Considerando com Emmanuel que os grandes sentimentos não povoam a alma de uma só vez[iv], propomos (como um exercício reflexivo) uma escala de variantes relacionadas ao comportamento de ajuda, que parte de uma condição primária onde ele é movido por um sentimento egoísta até o ápice da escala em que se manifesta pelo amor, mais bela conquista das almas nobres.

Primeira variante: o comportamento de ajuda é interesseiro porque visa ao bem próprio: receber de volta depois, ser considerada uma pessoa especial ou levar algum tipo de vantagem material. Os biólogos evolucionistas denominam esse tipo de ação de altruísmo recíproco. La Rochefoucauld, moralista francês do século XVII, citado por R. Simon, escreveu: Muitas vezes, teríamos vergonha de nossas melhores ações se o mundo conhecesse o que as motivou.[v]

Kardec, comentando tal atitude, escreveu que o interesse pessoal é o sinal mais característico de imperfeição moral. Frequentemente, as qualidades morais são como, num objeto de cobre, a douradura que não resiste à pedra de toque. Pode um homem possuir qualidades reais, que levem o mundo a considerá-lo homem de bem. Mas, essas qualidades, conquanto assinalem um progresso, nem sempre suportam certas provas e às vezes basta que se fira a corda do interesse pessoal para que o fundo fique a descoberto. O verdadeiro desinteresse é coisa ainda tão rara na Terra que, quando se patenteia, todos o admiram como se fora um fenômeno. O apego às coisas materiais constitui sinal notório de inferioridade, porque, quanto mais se aferrar aos bens deste mundo, tanto menos compreende o homem o seu destino. Pelo desinteresse, ao contrário, demonstra que encara de um ponto mais elevado o futuro.[vi]

Segunda variante: o ato de dar tem como objetivo vantagens espirituais: a conquista do reino dos céus, uma acolhida feliz no pós-morte, um carma positivo para o futuro, ou livrar-se de um sentimento de culpa e desembaraçar-nos de quantos se nos apresentam em penúria, cujas condições nos alfinetam a consciência. Ainda se caracteriza por interesse pessoal, mas denota um sentimento um pouco mais avançado, pois se identifica com valores espirituais.

Colocou Kardec que não merece aprovação aquele que faz o bem esperando que lhe seja levado em conta na outra vida e que lá venha a ser melhor a sua situação O bem deve ser feito caritativamente, isto é, com desinteresse. Aquele que faz o bem, sem ideia preconcebida, pelo só prazer de ser agradável a Deus e ao seu próximo que sofre, já se acha num certo grau de progresso, que lhe permitirá alcançar a felicidade muito mais depressa do que seu irmão que, mais positivo, faz o bem por cálculo e não impelido pelo ardor natural do seu coração.[vii]

Terceira variante: o comportamento altruístico é movido pela compaixão. Sentir piedade do que sofre e colocar-se no lugar dele; movido por esse sentimento nobre, socorrê-lo. Alguns denominam essa reação de altruísmo empático. Trata-se de um belo sentimento, mas, segundo André Conte-Sponville[viii], não traduz a sublimidade da virtude, pois está a reboque da infelicidade alheia, ou seja, ele se manifesta diante do sofrimento de outro e não naturalmente por todos os seres, independentemente de sua condição de cuidado presente.

Quarta variante: agir solidariamente por dever. Difere do sentimento de compaixão, pois não depende dele. O comportamento de ajuda se dá pela consciência do dever, porque se acredita que é o certo a ser feito. Segundo Emmanuel[ix]o dever define a submissão que nos cabe a certos princípios estabelecidos como leis pela Sabedoria Divina, para o desenvolvimento de nossas faculdades

Assim, pode-se simbolizar o dever no pensamento de Emmanuel como sendo a faixa de ação no bem que o Supremo Senhor nos traça à responsabilidade, para a sustentação da ordem e da evolução em Sua Obra Divina, no encalço de nosso próprio aperfeiçoamento. Aquele que age pelo dever demonstra boa vontade, amadurecimento e desejo sincero de se tornar uma pessoa melhor, mas, ainda assim, tem o que avançar espiritualmente para se identificar com o serviço espontâneo do amor. Apesar de nobre, o dever, de acordo com Immanuel Kant, é uma coerção tendo em vista um fim que não é desejado de bom grado[x], portanto, se vale de obrigações morais, regras estabelecidas sobre como se deve agir certamente.

Quinta variante: servir por amor. Segundo Emmanuel, a abnegação começa onde termina o dever.[xi] Para o homem verdadeiramente generoso, o dom ou a beneficência cessarão de ser coerções e, portanto, deveres. Comenta Sponville que o amor não se comanda e não poderia, em consequência, ser um dever. Virtude e dever são duas coisas diferentes (o dever é uma coerção; a virtude, uma liberdade), ambas necessárias, solidárias uma da outra. Quanto mais somos generosos, lembra o pensador francês, menos a beneficência aparece como dever, isto é, como coerção. O dever é uma coerção, um jugo, enquanto o amor é uma espontaneidade alegreO que fazemos por coerção, não fazemos por amor. Isso se inverte: o que fazemos por amor não fazemos por coerção, nem, portanto, por dever. Quando o amor existe, para que o dever?

Só necessitamos de obrigações morais em falta de amor, e é por isso que temos tanta necessidade de moral! O dever nos constrange a fazer aquilo que o amor, se estivesse presente, bastaria para suscitar, sem coerção. O homem virtuoso não precisa mais agir como se o fosse. O amor nos liberta do dever; dispensa-o. Somente quem ama não precisa mais agir como se amasse. Trata-se, então, de um servir espontâneo e gratuito, sem motivo, sem interesse, até mesmo sem justificação. Só precisamos de moral em falta de amor.

Kardec a tal respeito comentou que toda virtude tem seu mérito próprio, porque todas indicam progresso na senda do bem. Há virtude sempre que há resistência voluntária ao arrastamento dos maus pendores. A sublimidade da virtude, porém, está no sacrifício do interesse pessoal, pelo bem do próximo, sem pensamento oculto. A mais meritória de todas as virtudes é a que assenta na mais desinteressada caridade.[xii]

E ainda Kardec: há pessoas que fazem o bem espontaneamente, sem que precisem vencer quaisquer sentimentos que lhes sejam opostos. Outras se veem na contingência de lutar contra a natureza que lhes é própria. Só não têm que lutar aqueles em quem já há progresso realizado. Esses lutaram outrora e triunfaram. Por isso é que os bons sentimentos nenhum esforço lhes custa e suas ações lhes parecem simplíssimas. O bem se lhes tornou um hábito. O sentimento do bem é espontâneo. [xiii]

Alternamos em nossos atos diários reações dos diferentes níveis, mas, conscientes dos esforços que devemos empreender na construção de uma personalidade mais bela, nobre e justa, quanto mais o bem estiver identificado em nós, sem segundas intenções, mais próximos estaremos da verdadeira virtude, conforme nos lembra o benfeitor André Luiz, nas seguintes palavras:

Normalmente o impulso de quem beneficia a alguém inclui o troco da gratidão. Servir, contudo, no câmbio espírita que revive o exemplo de Jesus, o Mestre e Servidor, não espera o menor laivo de agradecimento. Apenas nesse molde aproximar-nos-emos da Providência Divina, através do Amor Que Ama Sem Nome, compreendendo, por fim, que a felicidade é servir e passar.[xiv]       

 


[i] O Livro dos Espíritos, item 993.

[ii] Obras Póstumas e A Gênese, cap. 3

[iii] Psicologia social: Rodrigues, Assmar e Jablonski

 

[iv] Paulo e Estêvão.

[v] Homens maus fazem o que homens bons sonham - R. Simon

 

[vi] O Livro dos Espíritos, item 895

[vii] O Livro dos Espíritos, item 897

[viii] Pequeno tratado das grandes virtudes, cap. 18

[ix] Pensamento e vida, cap. 21

[x] Pequeno tratado das grandes virtudes, Sponville - Nota, pag. 356

[xi] Pensamento e vida, cap. 17

[xii] O Livro dos Espíritos, item 893

[xiii] O Livro dos Espíritos, item 896

[xiv] Sol nas almas, cap.16.


 


 

 

     
     

O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita