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por Leonardo Marmo Moreira

 

"O Evangelho segundo o Espiritismo” ou “O Espiritismo segundo o Evangelho”?


A primeira edição da obra “O Evangelho segundo o Espiritismo” (ESE) foi publicada em 1864. Quando foi publicado o ESE, a chamada “Codificação” já possuía “O Livro dos Espíritos” (OLE) e “O Livro dos Médiuns” (OLM) previamente publicados, além de outras obras como “O que é o Espiritismo” (OQE) e várias edições da “Revista Espírita”. Allan Kardec considerava OLE e OLM as duas obras fundamentais da Doutrina Espírita, e sugeria a sequência OQE, OLE, OLM para os neófitos que quisessem conhecer e estudar o Espiritismo. Assim, quando o ESE foi lançado, os princípios básicos da Doutrina Espírita já estavam solidamente apresentados e discutidos. Obviamente, essa sequência específica de publicações não ocorreu por acaso e poderíamos afirmar que ainda temos que refletir sobre o seu significado.

É importante frisar que o OLE e OLM foram livros fundamentalmente revelados, ou seja, seu conteúdo de informações é de origem mediúnica, portanto do Mundo dos Espíritos, cabendo ao gênio Allan Kardec o papel de interlocutor, questionador, organizador e sintetizador desse volume de informações extraordinárias. O processo de elaboração do ESE é significativamente diferente, pois se trata de um livro que contempla muitas reflexões de Allan Kardec, o qual, orientado pelo aprendizado conseguido com o OLE e OLM, discute passagens do Evangelho, elaborando capítulos e enriquecendo-os com mensagens mediúnicas condizentes com o conteúdo do respectivo capítulo nas intituladas “Instruções dos Espíritos”. Logo, Kardec interpreta o Evangelho com base nos princípios elucidados pela Falange do Espírito de Verdade nas obras OLE e OLM, complementando suas análises com textos inéditos focados principalmente em questões morais.

Apesar de nascer como ciência, através da investigação do fenômeno mediúnico, o conteúdo da Codificação apresenta elevada proposta e discussão moral, com profundas implicações em termos de religiosidade, desde a primeira edição de OLE publicada em 18 de abril de 1857. Além disso, Jesus já aparece como modelo e guia da humanidade nessa primeira edição (questão 301 da primeira edição, que, posteriormente, aparecerá como questão 625 da segunda edição). Portanto, sete anos antes da publicação do ESE e literalmente desde o início do Espiritismo.

O ESE não representa uma “ruptura” na construção doutrinária elaborada até sua publicação, mas consiste em um aprofundamento do seu aspecto moral já claramente identificado e discutido nas obras anteriores. Nesse sentido, a necessidade dessa obra tem relação com a excelência do conteúdo moral do Evangelho. Se Jesus é o ser mais perfeito que habitou a Terra, a sua moral deve ser a mais elevada para servir de guia para a espiritualização do homem e, portanto, uma profunda fonte de subsídios para o nosso amadurecimento espiritual. Ademais, nossa busca por moralização sempre esteve predominantemente associada à religião, em comparação com a filosofia e com a Ciência (pelo menos, para a grande maioria das pessoas). No entanto, essa busca por moral e compreensão espiritual da vida sempre foi acompanhada por práticas e crenças supersticiosas, dogmáticas, frequentemente associadas a tradições sem maiores reflexões racionais.

Uma vez consolidadas as bases doutrinárias, seria interessante aprofundar seu aspecto moral e concomitantemente aprofundar uma busca por uma religiosidade mais racional, com especial destaque para os textos evangélicos. Esse trabalho faria com que o tema religioso pudesse ser iluminado por uma visão lúcida, sem tabus, dogmas e visões completamente dissociadas da racionalidade presente na filosofia e na ciência.

Na obra “O Céu e o Inferno” (CI), a realidade espiritual pós-morte e sua relação com a vida moral que “as almas dos homens que viveram no mundo” tiveram é desdobrada. Em “A Gênese” (GEN), vários ditos “milagres” de Jesus são analisados tendo por base a compreensão de uma série de aspectos previamente elucidados pela Doutrina, tais como perispírito, magnetismo, fenômenos mediúnicos, influência do nível moral na qualidade fluídica, lei de causa e efeito etc. Interessantemente, Kardec levanta hipóteses sem fechar uma conclusão para algumas narrativas evangélicas, demonstrando o seu cuidado em relação ao problema da credibilidade de cada texto atribuído aos evangelistas.

Fica evidente que o Espiritismo não nasceu como uma reforma religiosa, mas nasceu como ciência que aborda a questão espiritual e, por conseguinte, de profundas implicações religiosas. Inevitavelmente, essa nova visão sobre a questão espiritual da vida forneceu uma nova perspectiva para práticas religiosas contundentemente distintas de práticas de religiões tradicionais.

É possível pontuar que o estudo do evangelho em uma visão espírita, isto é, tendo uma compreensão prévia dos postulados espíritas, permite que o Evangelho seja entendido de forma mais criteriosa e com implicações práticas mais efetivas em nossa vida moral. Logo, o Evangelho apresenta-se mais profundo e belo porque fica mais compreensível e aplicável, ao contrário do que muitos vivenciam, ou seja, acham que o Evangelho é belo justamente porque não o compreendem.

O estudo do Espiritismo naturalmente contempla o Evangelho, mas não se restringe a ele. O Espiritismo não é um apêndice menor do Evangelho e nem se trata de uma espécie de subordinado hierarquicamente. Algumas tendências nesse sentido não deveriam ser estimuladas, pois submetem e reduzem o estudo doutrinário aos limites dos registros obviamente precários e sintéticos dos textos bíblicos. Essa tendência, uma vez implementada, levaria os estudantes de Espiritismo ao labirinto infindável das polêmicas sobre falíveis textos humanos tidos como sagrados, o que, aliás, é enfatizado por Allan Kardec no início do ESE.

Allan Kardec, que estudou com uma profundidade extraordinária o Evangelho de Jesus, não demonstrou, que se saiba, uma preocupação em elaborar uma “tradução espírita” do Evangelho e muito menos uma hipervalorização de aspectos meramente textuais. Kardec, em nenhuma passagem, sugere que estudemos todos os versículos, porque percebe que muitos deles são bastante duvidosos. Para Kardec, a tradução de Saci tinha uma qualidade satisfatória. Kardec valoriza, mas não hipervaloriza os textos evangélicos, tomando cuidado para não tomar uma passagem que poderia não ser real como fidedigna, vide o capítulo “Moral Estranha” do ESE.

O Espiritismo apresenta um amplo espectro de nuances temáticas que podem ser investigadas por estudiosos com diferentes predileções e tendências em termos de iniciativa de investigação intelectual. No entanto, transformar pesquisas acessórias elaboradas por aficcionados de diferentes matizes em metodologia e/ou programas de estudos sistemáticos é um salto perigoso, pois tende a distorcer a compreensão da Doutrina Espírita como um todo. O tríplice aspecto doutrinário representa um equilíbrio entre as diferentes formas de estudar, favorecendo a identificação de exageros e omissões em nossas estratégias de aprendizado doutrinário.

Um programa que proponha o estudo do Velho Testamento ou do Apocalipse, por exemplo, para confrades que não estudaram o OLE e OLM com profundidade, não parece ser a melhor tática educativa, pelo menos para a grande maioria das pessoas, se nosso compromisso é com o aprendizado doutrinário. A famosa estratégia conhecida como “Comece pelo começo” ainda parece bastante razoável.

Mesmo que o caminho percorrido não tenha seguido essa orientação (“Comece pelo começo”), não se deve perder de vista a noção do todo e dos objetivos a serem atingidos em termos de formação doutrinária, o que muitas vezes não parece ser considerado, levando-se em conta, inclusive, os temas de eventos espíritas, palestras e seminários de vários setores de nosso movimento.

A renovação nas práticas religiosas proposta pelo Espiritismo não consiste em simplesmente eliminar as imagens, rituais e práticas típicas de ambientes religiosos, mas também envolve os temas a serem estudados e a maneira pela qual eles devem ser estudados, para que a cultura e a mentalidade espíritas avancem substancialmente. Analisemos, por conseguinte, nossas vivências em nossa casa espírita e nossas atividades no movimento espírita de uma forma geral.


 

 

     
     

O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita