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por Rogério Coelho

 
Estudo comparado das teorias do progresso: ortodoxa e espírita


A unicidade da existência seria uma aberração, verdadeiro achincalhe às Leis Divinas


“O progresso levará a humanidade a ajustar suas leis às Leis Divinas, fomentando a caridade e a paz consequente.” - 
François C. Liran


Quando encarnado, ainda na época do Império, sob o pseudônimo de “Max”, o Dr. Bezerra de Menezes divulgou os postulados espiritistas com rara sagacidade e peregrina clareza, nas páginas de um jornal que circulava naquela época chamado “O Paiz”, causando fortes dores de cabeça e perplexidade aos adversários do Espiritismo. 

Dentre os inúmeros estudos ali realizados, nos quais o “Médico dos Pobres” pulverizava os anêmicos argumentos da ortodoxia clerical, vamos destacar suas ajustadas ponderações em um estudo comparado entre a unicidade da existência e a pluralidade da existência.

Eis sua insofismável argumentação: “compulsando, nas Antigas Escrituras, o livro de Jó, o livro dos Salmos, o Eclesiástico, Isaías, Jeremias, Ezequiel, Malaquias, e nas Escrituras Neotestamentárias os escritos de Mateus, João e de Paulo, o Apóstolo da Gentilidade, com suas extraordinárias cartas, temos à saciedade provado que tanto o moisaísmo como o Cristianismo encerram em seus ensinos os filamentos (germes) da Doutrina Espírita, quanto à reencarnação.

Não é ocioso relembrar que, não se achando a humanidade, quer no tempo de Moisés, quer mesmo no do Cristo, em condições de suportar mais luz que aquela que, por misericórdia e amor do Pai Celestial, lhe foi dada, seria estultice alguém pretender descobrir nos livros canônicos asseverações tão positivas sobre a palingenesia, como se encontram sobre o que já era tempo de ser revelado. Assim como no domínio da revisão moisaica se encontram delineados os princípios da revelação messiânica, por não ser tempo de apregoá-los, ainda pela mesma razão, num e noutro daqueles períodos, não podemos encontrar senão mal alinhavados os princípios da nova revelação, que está sendo feita atualmente ao mundo pelo Espiritismo.  E, porque, no Velho Testamento, estando previstos os tempos messiânicos, não foi perdoado aos hebreus desconhecerem o Enviado do Senhor, pelo mesmo modo não terá perdão o clero, que desconhece o Consolador, prometido por Jesus, apesar de ser o Seu ensinamento corroborado por todos os sagradosautores que citamos.

A reencarnação, além de ter suas raízes no Velho e no Novo Testamento e, principalmente, neste último, não é repulsivo à razão, não constrange a consciência, não fere, nem de leve, um só dos excelsos atributos da Infinita Perfeição.

A Razão aceita que, sendo perfectíveis como somos, em vez de o desenvolvimento se nos trancar pela morte, depois de um minuto de existência, deixa-nos o direito de desenvolver nossos predicados morais e intelectuais, mediante existências múltiplas, reparadoras e progressivas...

A consciência diz-nos que Deus não seria Pai se, dando mais luz a uns do que a outros, como acontece em relação aos que viveram antes e depois do Cristo; como acontece aos que nascem no meio da civilização ou no meio de tribos selvagens; como acontece, enfim, aos que trazem de nascimento disposições boas ou más para o saber e para o bem, exigir, entretanto, de todos, o mesmo grau de elevação, pelas provas que derem, em tão opostas condições.

E a razão e a consciência, por mais que sondem a doutrina da vida única, não encontrarão nela senão os rigores da justiça de Deus, sem a Sua misericórdia, ao passo que na Doutrina das vidas múltiplas descobrem, imponentes, o amor e a misericórdia do Pai, sem prejuízo da Sua justiça. Uma faz temer, outra faz amar o Pai Celestial!... Por que, então, repele o clero o que exalta a criatura e o Criador, para abraçar o que não convém? Se ao menos pudessem firmar-se em algum ensino positivo da Verdade da vida única, sua teimosia teria fundamento, mas nos Evangelhos e nos livros sagrados há mais referências à pluralidade das existências que à sua unicidade. Onde está, pois, a base sólida em que se firma a Igreja para anatematizar os sectários das vidas múltiplas?

Se ninguém levantasse a dúvida entre esses princípios, a Igreja devia ser a primeira a levantá-la pelo fato de encontrar fundamentos para os princípios nas sagradas letras. Se quisesse ser lógica e ortodoxa, deveria dar mais pela Verdade das referências à reencarnação. Ora, se a Igreja tem mais razão para abraçar o princípio reencarnacionista, com os livros canônicos em mão, estudando-o, sem preconceitos, nem interesses puramente humanos, maior razão tem para aceitá-lo, desde que lhe foi dito por Jesus, que em tempo viria o Espírito de Verdade ensinar aquelas Verdades que Ele não podia ensinar; por não poder a humanidade de Seu tempo suportá-las. Como, então, repelir a alta ideia como uma heresia e excomungar quantos têm a felicidade de abraçá-la?!

A Igreja, por mais santa que seja, não tem o direito de ser cega, de recusar seu testemunho ao que lhe é patente; e ela vê um fenômeno que nem o próprio Cristo produziu: vê arrebentar em todos os pontos da Terra, comunicado por um modo extraordinário, o princípio espírita, que, em poucos anos, já serve de bandeira para milhões de criaturas humanas!

É obra de Satanás!... (bradam os fanáticos). Ora, os livros sagrados provam: satanás é puro mito!

Racional e conscienciosamente a reencarnação se impõe à humanidade, tanto que, se é obra do demônio, só os cegos não verão a sua superioridade sobre a existência única. Quererá o clero que um plano demoníaco seja mais perfeito que o divino? Obcecação!...

Repetiremos sempre: também o sacerdócio hebreu, de boa ou de má-fé, sustentou que a Doutrina e as obras de Jesus eram inspiradas por Satanás!  Estude o clero os caracteres essenciais da Doutrina, que repele sem conhecer, e reconhecerá que só de Deus pode provir um ensinamento tão resplendente de luz e de grandezas morais”.

Em explicação apendida à questão 789 de “O Livro dos Espíritos”, Allan Kardec ensina: “a humanidade progride, por meio dos indivíduos que pouco a pouco se melhoram e instruem... Quando estes preponderam pelo número, tomam a dianteira e arrastam os outros. De tempos a tempos, surgem no seio dela homens de gênio que lhe dão um impulso; vêm depois, como instrumentos de Deus, os que têm autoridade e, nalguns anos, fazem-na adiantar-se. O progresso dos povos também realça a justiça da reencarnação.

Louváveis esforços empregam os homens de bem para conseguir que uma nação se adiante, moral e intelectualmente. Uma vez transformada, a nação será mais ditosa neste mundo e no outro, concebe-se. Mas, durante a sua marcha lenta através dos séculos, milhares de indivíduos morrem todos os dias. Qual a sorte de todos os que sucumbem ao longo do trajeto? Privá-los-á, a sua relativa inferioridade, da felicidade reservada aos que chegam por último? Ou também relativa será a felicidade que lhes cabe? Não é possível que a Justiça Divina haja consagrado semelhante injustiça. Com a pluralidade das existências, é igual para todos o direito à felicidade, porque ninguém fica privado do progresso. Podendo, os que viveram ao tempo da barbaria, voltar, na época da civilização, a viver no seio do mesmo povo, ou de outro, é claro que todos tiram proveito da marcha ascensional.

Outra dificuldade, no entanto, apresenta aqui o sistema da unicidade das existências: segundo esse sistema, a alma é criada no momento em que nasce o ser humano. Então, se um homem é mais adiantado do que outro, é que Deus criou para ele uma alma mais adiantada. Por que esse favor?! Que merecimento tem esse homem, que não viveu mais do que outro, que talvez haja vivido menos, para ser dotado de uma alma superior? Esta, porém, não é a dificuldade principal. Se os homens vivessem um milênio, conceber-se-ia que, nesse período milenar, tivessem tempo de progredir. Mas diariamente morrem criaturas em todas as idades; incessantemente se renovam na face do planeta, de tal sorte que todos os dias aparece uma multidão delas e outra desaparece. Ao cabo de mil anos, já não há naquela nação vestígio de seus antigos habitantes. Contudo, de bárbara, que era, ela se tornou policiada. Que foi o que progrediu? Foram os indivíduos outrora bárbaros? Mas esses morreram há muito tempo. Teriam sido os recém-chegados? Mas, se suas almas foram criadas no momento em que eles nasceram, essas almas não existiam na época da barbaria e forçoso será então se admitir que os esforços que se despendem para civilizar um povo têm o poder, não de melhorar almas imperfeitas, porém de fazer que Deus crie almas mais perfeitas.  (!?)

Comparemos essa teoria do progresso com a que os Espíritos apresentaram: as almas vindas no tempo da civilização tiveram sua infância, como todas as outras, mas já tinham vivido antes e vêm adiantadas por efeito do progresso realizado anteriormente. Vêm atraídas por um meio que lhes é simpático e que se acha em relação com o estado em que atualmente se encontram. De sorte que os cuidados dispensados à civilização de um povo não têm como consequência fazer que, de futuro, se criem almas mais perfeitas; têm, sim, o de atrair as que já progrediram, quer tenham vivido no seio do povo que se figura, ao tempo da sua barbaria, quer venham de outra parte. Aqui se nos depara igualmente a chave do progresso da humanidade inteira. Quando todos os povos estiverem no mesmo nível, no tocante ao sentimento do bem, a Terra será ponto de reunião exclusivamente de bons Espíritos, que viverão fraternalmente unidos.

Os maus, sentindo-se aí repelidos e deslocados, irão procurar, em mundos inferiores, o meio que lhes convém, até que sejam dignos de volver ao nosso, então transformado. Da teoria vulgar ainda resulta que os trabalhos de melhoria social só às gerações presentes e futuras aproveitam, sendo de resultados nulos para as gerações passadas, que cometeram o erro de vir muito cedo e que ficam sendo o que podem ser, sobrecarregadas com o peso de seus atos de barbaria. Segundo a Doutrina dos Espíritos, os progressos ulteriores aproveitam igualmente às gerações passadas, que voltam a viver em melhores condições e podem assim aperfeiçoar-se no foco da civilização”.

Finalmente cumpre-nos adir o seguinte: haverá de chegar o tempo em que as criaturas não acreditarão que existiu quem pregasse e acreditasse na unicidade da existência, esse verdadeiro achincalhe às Leis Divinas, essa aberração que não passa de profundo e superlativo desrespeito ao Pai Criador, infinitamente Justo e Bom que manterá sempre aberta a porta dos remansosos pastos espirituais para todo e qualquer Espírito calceta que queira alforriar-se da ignorância.


 

     
     

O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita