Clássicos 
do Espiritismo

por Angélica Reis

Deus na Natureza

Camille Flammarion

(Parte 54)


Continuamos o estudo metódico e sequencial do livro Deus na Natureza, de autoria de Camille Flammarion, escrito na segunda metade do século 19, no ano de1867.


Questões preliminares


A. Existe diferença marcante entre instinto e inteligência?

Sim. Chama-se instinto ao conjunto das diretivas que impelem o ser, fazendo-o obedecer a uma necessidade constante. O instinto é inato, atua à revelia da instrução, invariavelmente, e não realiza progresso algum. É em tudo a antítese da inteligência, que é fruto da reflexão, da compreensão, da ação do pensamento. Os animais possuem ambas as faculdades. Com a inteligência, pensam, refletem, compreendem, decidem, recordam, adquirem experiência, amam, odeiam, julgam, por processos análogos aos da inteligência humana; com a outra – o instinto – operam obedecendo a uma impulsão íntima, sem apreensão, sem conhecimento, inconscientes do motivo e do resultado de seus atos. (Deus na Natureza – Quarta Parte.Plano da Natureza – Instinto e Inteligência.)

B. A inteligência dos animais é um fato cientificamente comprovado?

Claro. São vários os exemplos colhidos por cientistas como Buffon. Eis o que ele relatou a respeito de um orangotango ainda novo, por ele observado: – “Vi-o apresentar a mão para conduzir as pessoas que o visitavam e passear com elas como se estivesse convencido do seu papel; vi-o sentar-se à mesa, tomar o guardanapo, limpar os lábios, utilizar-se da colher e do garfo, encher o copo e tocá-lo noutro, quando a isso convidado; vi-o buscar uma chávena, deitar-lhe o açúcar e o chá, aguardando que este esfriasse para então bebê-lo. Tudo isso, sem outra instigação que a palavra e a mímica do seu dono e, algumas vezes, por si mesmo. Não molestava a quem quer que fosse; mostrava-se mesmo circunspecto e na atitude de quem pedisse carinho, etc.” (Deus na Natureza – Quarta Parte. Plano da Natureza – Instinto e Inteligência.)

C. Os fatos sugerem que exista nos animais um princípio imaterial análogo ao dos homens?

Sim. Nos relatos apresentados nesta obra colhem-se argumentos muito fortes nesse sentido. Agassiz, que, mais que ninguém, exalta as faculdades intelectuais dos animais, escreveu: “O desenvolvimento das paixões é tão extenso no animal quanto no homem, e eu me encontraria seriamente embaraçado para lhes apreender diferenças específicas, naturais, ainda que as haja, e grandes, no graduamento das manifestações e na forma de expressão. Ao demais, a gradação das faculdades morais entre os animais e o homem é tão imperceptível, que, recusar aos primeiros um certo sentimento de responsabilidade e consciência fora, certo, exagerar a diferença”. Segundo Flammarion, a maior parte dos argumentos filosóficos em prol da imortalidade do homem aplica-se, igualmente, à indestrutibilidade desse princípio nos outros seres vivos. (Deus na Natureza – Quarta Parte. Plano da Natureza – Instinto e Inteligência.)


Texto para leitura


948. Se os seres fossem de ferro ou de mármore, haveria críticos que com isso se contentariam. E, contudo, que sucederia? Qualquer mudança de clima, de temperatura, de ambiente, de alimentação, seria uma parada mortal para essas espécies inflexíveis. O junco verga, enquanto que o carvalho é derrancado pelo aquilão. Longe, pois, de ver ausência de pensamento e desígnio nessa flexibilidade maravilhosa do organismo vivo, nessa faculdade imperecível de tirar o melhor partido das circunstâncias mais incômodas, vencer obstáculos e plantar, a despeito de tudo, o estandarte da vida no solo mais sáfaro e mais ingrato, o que reconhecemos é o depoimento irrecusável da causa onipotente, que, a partir dos primeiros tempos, houve por bem que os mundos se embalassem harmonicamente na amplidão do infinito e fossem envolvidos em carícias da vida. A inteligência criadora e ordenadora, que denominamos Deus, permanece, portanto, como lei primordial e eterna, força intrínseca, universal, constituindo a unidade viva do mundo. Toda dificuldade desaparece, substituindo-se a ideia de plano geral à de causalidade humana. Órgãos e funções, espécies e indivíduos, é tudo conduzido na mesma direção. (Deus na Natureza – Quarta Parte. Plano da Natureza - Construção dos Seres Vivos.)

949. Instinto e Inteligência – A construção lenta e progressiva dos seres e a formação das espécies duradouras estabelecem a presença permanente da causa criadora e proclamam, eloquentemente, a sua sabedoria e inteligência. Se deixarmos, agora, de lado a organização do indivíduo, para estudarmos a da família, penetraremos nos mistérios do instinto e, ainda aí, encontraremos o plano do Criador brilhantemente caracterizado. Muito se há discutido sobre a alma animal, depois que Descartes, Leibnitz e, a seguir, Reaniur se deram ao trabalho de observar in natura, diretamente, a vida e costumes dos animais. É, sobretudo, pela observação direta que nos podemos instruir acerca da preciosa faculdade das espécies vivas, que lhes assegura a conservação, e basta constatar os sinais evidentes dessa lei universal, para lhe aferir o valor, sob o ponto de vista dos desígnios da Criação.(Deus na Natureza – Quarta Parte.Plano da Natureza – Instinto e Inteligência.)

950. Antes de tudo, convém distinguir inteligência e instinto. Os animais possuem uma e outro como faculdades bem distintas. Com a primeira pensam, refletem, compreendem, decidem, recordam, adquirem experiência, amam, odeiam, julgam, por processos análogos aos da inteligência humana; com a segunda, operam obedecendo a uma impulsão íntima, sem apreensão, sem conhecimento, inconscientes do motivo e do resultado de seus atos. Fixemos alguns exemplos, para melhor definir esses caracteres. (Deus na Natureza – Quarta Parte. Plano da Natureza – Instinto e Inteligência.)

951. Buffon disse a respeito de um orangotango ainda novo, por ele observado: – “Vi-o apresentar a mão para conduzir as pessoas que o visitavam e passear com elas como se estivesse convencido do seu papel; vi-o sentar-se à mesa, tomar o guardanapo, limpar os lábios, utilizar-se da colher e do garfo, encher o copo e tocá-lo noutro, quando a isso convidado; vi-o buscar uma chávena, deitar-lhe o açúcar e o chá, aguardando que este esfriasse para então bebê-lo. Tudo isso, sem outra instigação que a palavra e a mímica do seu dono e, algumas vezes, por si mesmo. Não molestava a quem quer que fosse; mostrava-se mesmo circunspecto e na atitude de quem pedisse carinho, etc.” (Deus na Natureza – Quarta Parte. Plano da Natureza – Instinto e Inteligência.)

952. O Sr. Flourens diz que havia no Jardim Zoológico um orangotango notável pela inteligência: meigo, amante de carícias, principalmente das crianças, com elas brincava procurando imitar quanto via. Assim é que sabia manejar a chave do seu compartimento, enfiando-a na fechadura e abrindo a porta. Se acontecia pendurarem a chave na chaminé, lá trepava por meio de uma corda presa ao teto e que lhe servia comumente de balanço. Certa feita, deram na corda um nó, para fazê-la mais curta, e ele o desatou imediatamente. Tal como o de Buffon, não revelava a impaciência e petulância próprias da espécie, antes tinha um ar tristonho, passos lentos e gestos comedidos. (Deus na Natureza – Quarta Parte. Plano da Natureza – Instinto e Inteligência.)

953. O professor foi visitá-lo um dia, acompanhado por um ilustre ancião, que era também um observador sagaz e profundo. Um traje algo esquisito, os passos lentos e vacilantes, o busto arqueado do visitante, logo despertaram a atenção do símio. Prestou-se ele, complacente, a tudo o que se lhe exigiu, mas, de olho sempre atento no objeto de sua curiosidade. Quando iam retirar-se, ele mais se aproximou do novo visitante, tomou-lhe delicada e maliciosamente a bengala e, fingindo apoiar-se nela, curvado e vagaroso, deu uma volta ao compartimento, como procurando imitar o visitante. Depois, de si mesmo restituiu-lhe a bengala. Evidente que ele também sabia observar... (Deus na Natureza – Quarta Parte. Plano da Natureza – Instinto e Inteligência.)

954. Cuvier, por sua vez, observou fatos não menos curiosos. Seu orangotango se divertia trepando nas árvores e nelas permanecendo encarapitado. Um dia, fizeram menção de lá o buscarem e ele logo se pôs a sacudir a árvore, assim procedendo sempre que tentavam apanhá-lo. “De qualquer modo – diz Cuvier – que consideremos esse ato, não será possível negá-lo como resultante de uma combinação de ideias, para reconhecer que o animal possui a faculdade de generalizar”. De fato, o orangotango mais de uma feita tivera medo com o abalo violento dos corpos, em que se houvera apoiado, o que o levou a concluir que esse mesmo temor atingiria a outrem, ou – por melhor dizer com Cuvier – “de uma circunstância particular ele fazia uma regra geral”. (Deus na Natureza – Quarta Parte. Plano da Natureza – Instinto e Inteligência.)

955. Flourens cita o exemplo de um curioso indício de inteligência, observado no Jardim Zoológico. Julgado excessivo o número de ursos lá existentes, ficou resolvida a eliminação de dois exemplares. O veneno seria o ácido prússico, ministrado em pequenos bolos. À vista dos bolos, os animais se ergueram nas patas traseiras, abrindo a boca, na qual conseguiram atirar alguns bolos. Entretanto, logo rejeitaram o manjar e puseram-se em fuga. Dir-se-ia que não seriam mais tentados a tocar na iguaria e, contudo, ei-los a empurrar com as patas os bolos para dentro do tanque e, depois de muito revolverem a água, iam comendo os bolos, à medida que o veneno se evaporava. Em o fazerem assim, impunemente demonstraram uma sagacidade que lhes granjeou a revogação da sentença. (Deus na Natureza – Quarta Parte. Plano da Natureza – Instinto e Inteligência.)

956. Buffon escreveu belas páginas sobre a inteligência do cão, mas não lhe interpretou o alto valor. Há, nos fastos da espécie canina, exemplos de inteligência, habilidade raciocínio, julgamento, e também de afeição, devotamento, bondade e reconhecimento, dignos de serem apontados como modelo a uma grande parte do gênero humano. Poder-se-ia, pois, escrever uma série de volumes e nem assim se esgotaria o acervo de fatos comprobatórios da inteligência animal, notadamente do cão. (Deus na Natureza – Quarta Parte. Plano da Natureza – Instinto e Inteligência.)

957. Eis um exemplo interessante de uma deliberação de andorinha, contado pelo autor de Força e Matéria. Um casal de andorinhas tinha começado a construir o ninho na cumeeira da casa. Um dia, entra por lá um bando de companheiras e travam longa discussão com as posseiras do ninho. Reunidas no forro da casa e não longe do ninho disputado, fizeram uma algazarra infernal. Depois de algum tempo, enquanto algumas andorinhas se destacavam para inspecionar o ninho, dissolveu-se a assembleia e o resultado foi o casal abandonar o ninho começado, entrando logo a construir outro em lugar quiçá mais adequado. (Deus na Natureza – Quarta Parte. Plano da Natureza – Instinto e Inteligência.)

958. Um fato ainda mais notável veio à baila recentemente. Nos arredores de uma granja de Weddendorg, perto de Magdebourg, as cegonhas, após sério debate, julgaram uma companheira adúltera. Mataram-na a bicadas e lançaram-na fora do ninho[i](Deus na Natureza – Quarta Parte. Plano da Natureza – Instinto e Inteligência.)

959. Agassiz, mais que ninguém, exalta as faculdades intelectuais dos animais. Depois de mostrar as dificuldades que ainda não permitem estabelecer uma comparação científica entre instintos e faculdades humanas e animais, emite ele as seguintes ideias: – “O desenvolvimento das paixões é tão extenso no animal quanto no homem, e eu me encontraria seriamente embaraçado para lhes apreender diferenças específicas, naturais, ainda que as haja, e grandes, no graduamento das manifestações e na forma de expressão. Ao demais, a gradação das faculdades morais entre os animais e o homem é tão imperceptível, que, recusar aos primeiros um certo sentimento de responsabilidade e consciência fora, certo, exagerar a diferença. Além disso, há neles, limitadas às suas respectivas capacidades, individualidades tão definidas como no homem. Os criadores de cavalos, os guardadores de animais, pastores, etc., aí estão para confirmá-lo”. (Deus na Natureza – Quarta Parte. Plano da Natureza – Instinto e Inteligência.)

960. Temos aí, nos relatos citados, argumento dos mais fortes a favor da existência de um princípio imaterial em todos os animais análogo ao que, por excelência e faculdades superiores, coloca o homem em plano eminente. A maior parte dos argumentos filosóficos em prol da imortalidade do homem aplica-se, igualmente, à indestrutibilidade desse princípio nos outros seres vivos[ii](Deus na Natureza – Quarta Parte. Plano da Natureza – Instinto e Inteligência.)

961. Quem se atreveria hoje a pôr em dúvida a inteligência animal? Só um tímido espírito de sistema, temeroso das consequências dessa verdade, em relação a umas tantas crenças, pode fechar os olhos à evidência. A nós, cumpria-nos constatar, antes de tudo, essa verdade, a fim de mais livremente podermos falar do instinto e derrocar a argumentação dos que presumem que o instinto não existe. Há, certamente, uma grande diferença entre atos instintivos e atos racionais. Não que esses dois caracteres da força viva se encontrem isolados (nada o está na Natureza), mas por não se encontrarem na mesma graduação e não se poderem confundir. Não devemos insistir, maiormente aqui, a respeito dos fatos de ordem intelectual. Vamos, porém, compará-los aos fatos inerentes ao domínio do instinto e que revelam existir uma providência universal presidindo à vida em geral e que não explicam de modo algum, pela instrução, o raciocínio ou o julgamento nos animais em que se deparam. (Deus na Natureza – Quarta Parte. Plano da Natureza – Instinto e Inteligência.)

962. Chama-se instinto ao conjunto das diretivas que impelem o animal, obedecendo a uma necessidade constante. O instinto é inato, atua à revelia da instrução, invariavelmente, e não realiza progresso algum. É em tudo a antítese da inteligência. Tanto mais notáveis são os fenômenos do instinto quanto mais se afirmam inteiramente involuntários. “Não podemos fazer uma ideia nítida do instinto – dizia Georges Cuvier – senão admitindo que os animais sejam submetidos a imagens ou sensações inatas constantes, que os obrigam a proceder como levados por sensações acidentais. É uma espécie de sonho ou visão que os persegue incessante e, em tudo que se reporta ao instinto, podemos julgar os animais assim uma espécie de sonâmbulos.” (Deus na Natureza – Quarta Parte. Plano da Natureza – Instinto e Inteligência.) (Continua no próximo número.)


 

[i] Temos numerosos documentos comprobatórios da inteligência dos animais. Aqui, porém, não nos podemos alongar no assunto. Ao exemplo precedente, acrescentemos que a dar crédito a uns tantos barqueiros ingleses, chamados “panters”, os patos selvagens fazem reuniões parlamentares e votam. Estes, como todos os animais, têm expressões próprias para traduzir alegria, dor, fome, amor, medo, ciúme etc. Esses termos variam, conforme as espécies. Antes da revoada matinal, uma discussão muito viva se empenha durante dez a vinte minutos, e só depois de assente uma resolução é que se opera a debandada. Conta-se, também, que uma ave, tombada num choque, apelou a seu modo para uma outra, que, procurando aleitá-la, ficou a seu lado por uma hora mais ou menos, até que a outra morresse. Segundo E. W. Gruner, os gansos têm inflexões e tonalidades vocais muito variadas. O cão alegre late de modo mui diverso de quando está raivoso. A linguagem mímica e sônica dos insetos (abelhas, formigas, escaravelhos etc.), por meio das antenas e movimentos de asas, é, como sabemos, muito rica e variada. Não iremos ao extremo de os traduzir em francês com Dupont de Nemours, mas a verdade é que se não pode negar que os animais se permutem as suas impressões. Eles têm mesmo, sobre nós, o privilégio de compreender nossas palavras, ao passo que nós não compreendemos as suas. Mais: compreendem-se em qualquer latitude, ao passo que um francês não compreende um alemão, nem um chinês.

[ii]  Contribuitions to the Natural History of the United States of North America volume 1 – 1ª parte.



 

     
     

O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita