Clássicos 
do Espiritismo

por Angélica Reis

 
Deus na Natureza

Camille Flammarion

(Parte 51)

 

Continuamos o estudo metódico e sequencial do livro Deus na Natureza, de autoria de Camille Flammarion, escrito na segunda metade do século 19, no ano de1867.


Questões preliminares


A. Há no sistema apresentado por Darwin uma certa reserva favorável à ideia de Deus?

Sim. Isso está bem visível em sua obra, embora o fato não agradasse aos materialistas radicais. A reação de sua tradutora francesa, senhorita Clemência Royer, comprova-o com a censura que fez a Darwin pelo fato de se deixar levar pela ideia de um Ser supremo. “O Sr. Darwin não me parece bastante corajoso” – disse ela no prefácio de sua tradução. Ela não tolerava que se pudesse tomar Deus a sério, ridiculizava os teólatras, sapateava sobre os destroços do teísmo e fulminava os defensores de uma Entidade suprema. (Deus na Natureza – Quarta Parte. Plano da Natureza - Construção dos Seres Vivos.)

B. Segundo os mestres, a ação constante de Deus vale para explicar tanto a origem como a sucessividade das coisas?

Sim. Ao pensar dos mestres, não há solução de continuidade na obra da Criação; seus discípulos, porém, pretendem ultrapassar os mestres e desnaturam as teorias de que se dizem defensores. Vale a propósito lembrar o que disse o autor da teoria da unidade de plano, Geoffroy Saint-Hilaire. O sábio fisiologista afirmou bem alto que via na sucessão das espécies “uma das mais gloriosas manifestações da Potência criadora, tanto quanto um motivo de maior admiração, de reconhecimento e de amor”. (Deus na Natureza – Quarta Parte. Plano da Natureza - Construção dos Seres Vivos.)

C. Ainda que admitamos que os homens, os animais, os seres e as plantas se tenham formado pela ação de uma força natural, em que isso prova que Deus não existe?

Flammarion entende que nada disso provaria a inexistência de Deus, mas sim, a contrário, que Deus existe. Qual a origem de tal força? Em verdade, diz Flammarion, o que se dá é que, em vez de Deus se nos revelar como pedreiro, ele se nos revela como arquiteto – o grande arquiteto do Universo, cujas leis, tão sábias, devemos à sua sabedoria e genialidade. Com efeito, é preciso cerrar preconcebidamente os olhos para que se não veja nessa força íntima da Natureza o efeito de um pensamento inteligente. É preciso ser cego para desprezar o indício evidente de uma causa poderosa e eterna. (Deus na Natureza – Quarta Parte. Plano da Natureza - Construção dos Seres Vivos.)


Texto para leitura


903. Darwin não tem razão de julgar que a origem do órgão visual importa tão pouco quanto a da própria vida, e nós gostaríamos de saber se, para ele, essa origem elementar oferece alguma semelhança com a sensibilidade do iodo à luz, verificada na chapa fotográfica. Mas, visto que ele se cala, vamos admitir provisoriamente a possibilidade do fato, e ouçamos o desenvolvimento da teoria do progresso:

“Entre os vertebrados vivos não encontramos grande variedade de olhos; nos articulados, porém, podemos acompanhar toda uma série, partindo do simples nervo ótico, recoberto de camada pigmentar e formando, às vezes, uma espécie de pupila, embora sempre desprovido de lente ou qualquer mecanismo ótico. Depois desse olho rudimentar, capaz apenas de só diferençar a luz da obscuridade, deparam-se-nos duas séries paralelas de órgãos visuais, cada vez mais perfeitos, entre as quais, Muller diz haver diferenças fundamentais: – a dos olhos chamados simples, providos de lente e córnea, e a dos complexos, que excluem os raios convergentes de todo o campo visual, exceto o pincel luminoso, que chega à retina seguindo uma linha perpendicular ao seu plano.” (Deus na Natureza – Quarta Parte. Plano da Natureza - Construção dos Seres Vivos.)

904. O grande advogado da seleção natural pensa que, admitindo originariamente nos primeiros organismos a existência de um nervo sensível à luz, poder-se-á admitir que a Natureza, em virtude dessa lei organizadora do progresso, chega insensivelmente aos aparelhos óticos, sejam cônicos, sejam lenticulares, perfeitos. (Deus na Natureza – Quarta Parte. Plano da Natureza - Construção dos Seres Vivos.)

905. Os seres favorecidos com esse nervo maravilhoso dele se utilizaram e o aperfeiçoaram em benefício próprio. “Se refletirmos – diz ele –, na variedade de graus que apresenta a estrutura ocular dos nossos crustáceos e nos lembrarmos do número de espécies extintas, não vejo dificuldade alguma e, sobretudo, uma dificuldade maior que a relativa a outro órgão em admitir que a seleção natural haja transformado um aparelho simples, apenas constituído de um nervo ótico pigmentado e revestido de membrana transparente, num instrumento tão perfeito qual o podem possuir quaisquer representantes da grande família dos articulados.” (Deus na Natureza – Quarta Parte. Plano da Natureza - Construção dos Seres Vivos.)

906. Parece muito natural comparar o órgão visual a um telescópio. Ora, sabemos nós que este instrumento tem sido sucessivamente aperfeiçoado graças a esforços perseverantes de inteligências humanas, de ordem superior, e assim inferimos a formação do olho mediante análogo processo. “Será uma indução muito presunçosa?” – pergunta ele com alguma razão. Que direito temos de afirmar que o Criador opera com o concurso das mesmas faculdades intelectuais do homem? (Deus na Natureza – Quarta Parte. Plano da Natureza - Construção dos Seres Vivos.)

907. Nada obstante a advertência, Darwin prossegue aplicando à obra divina as ideias afloradas em seu cérebro. Eis como expõe ele a formação lenta, nas espécies vivas, do instrumento ótico que nos faz ver. É uma hipótese sem maldade preconcebida:

“Precisamos figurar um nervo sensível à luz, colocado atrás de espessa camada de tecidos transparentes, contendo espaços cheios de fluidos; depois, aí poremos que cada parte dessa camada transparente muda contínua e lentamente, de densidade, de maneira a separar-se em camadas parciais, diferentes em densidade e espessura, colocadas a distâncias variáveis entre si e cujas duplas superfícies mudam lentamente de forma. Além disso, é preciso admitir exista um poder inteligente e esse poder inteligente é a seleção natural, constantemente alertada de toda e qualquer alteração acidental das camadas transparentes, a fim de escolher, solícitas, aquelas que por circunstâncias diversas podem, de algum modo e em grau qualquer, favorecer a produção de imagens mais nítidas. Podemos ainda supor que esse instrumento foi multiplicado por um milhão, em cada um desses estados de perfectibilidade, e que cada uma dessas formas se perpetuasse, até que se lhe apresentasse ensejo de melhora, permitindo o quase imediato abandono e destruição da antiga.

“Nos seres vivos, a variabilidade produzirá as ligeiras modificações do instrumento natural, a descendência multiplicá-la-á ao infinito, assim modificada, e a seleção natural escolherá, com infalível habilidade, cada novo aperfeiçoamento realizado. Que este processo continue operante por milhões e milhões de anos e, em cada ano, influindo sobre milhões de indivíduos de todas as espécies, já não será impossível acreditar possa constituir-se assim um aparelho de ótica viva, com requisitos superiores aos de nossa manufatura, ou seja, com a superioridade característica das obras divinas em relação às humanas.” (Deus na Natureza – Quarta Parte. Plano da Natureza - Construção dos Seres Vivos.)

908. Os observadores podem assinalar no sistema darwiniano uma certa reserva favorável a Deus, mas essa reserva não quadra aos materialistas radicais. Até a sua tradutora francesa, senhorita Clemência Royer, censura-o com veemência, por desviar-se em tão bela rota e ainda se deixar levar pela ideia de um Ser supremo. “O Sr. Darwin não me parece bastante corajoso – diz ela no seu prefácio. – Será por prudência que não vai ao fim do seu sistema, detendo-se a meio da cadeia das respectivas consequências? Quando espíritos ardorosos, senão mais lógicos, formularam consequências extremas, o mundo dos puritanos, escandalizado com a tese de que o planeta não descendia em linha reta da coxa de algum deus, protestou em altos brados”.  Essa moça, ao menos, vai até o fim; não tolera que ainda se possa tomar Deus a sério, ridiculiza igualmente os teólatras, sapateia sobre os destroços do teísmo e fulmina os defensores de uma Entidade suprema. Vira a cara a todo e qualquer sintoma de ideia religiosa e abre os braços aos declamadores alemães. (Deus na Natureza – Quarta Parte. Plano da Natureza - Construção dos Seres Vivos.)

909. Só há um pequeno defeito de lógica nesses exímios pensadores, qual o de ser essa presumida, rigorosa lógica, soberanamente ilógica, ainda mais quando os fatos e teorias consignados pelos darwinistas não comportam as consequências ridículas que lhes atribuem. E o mais curioso em tudo isto é que esses espíritos fortes – atordoados com a sua exaltação – não percebem a lacuna, que persistem em manter, entre as premissas e conclusões do seu raciocínio. Sua maneira de falar compara-se a uma rota traçada em altiplano e seccionada a meio do seu curso por um abismo profundo, qual os que soem separar bruscamente duas galerias. As extremidades da rota não estariam mal feitas nem mal traçadas, mas, infelizmente, não se pode caminhar de ponta a ponta, de vez que o abismo as isola irremediavelmente. E isso porque lançar aí uma ponte é mais difícil do que parece. (Deus na Natureza – Quarta Parte. Plano da Natureza - Construção dos Seres Vivos.)

910. Ao pensar dos mestres, não há solução de continuidade e a ação puramente constante de Deus vale para explicar tanto a origem como a sucessividade das coisas: os discípulos, porém, pretendem ultrapassar os mestres e desnaturam as teorias de que se dizem defensores. Pobres defensores! Temos já visto como raciocinam os experimentadores. Vamos registrar a opinião do autor da teoria da unidade de plano, Geoffroy Saint-Hilaire. Ao invés de pender para as negações que hoje nos opõem, o sábio fisiologista se julga no dever de afirmar bem alto que, antes, vê na sucessão das espécies “uma das mais gloriosas manifestações da Potência criadora, tanto quanto um motivo de maior admiração, de reconhecimento e de amor”[ii]. (Deus na Natureza – Quarta Parte. Plano da Natureza - Construção dos Seres Vivos.)

911. Digamo-lo com firmeza: mesmo admitindo, sem reservas, todos os fatos invocados pelos materialistas; mesmo perfilando-nos ao lado de Darwin, Owen, Lamarck, Saint-Hilaire e, sobretudo, com estes (porque há sempre gente mais realista do que o rei), para supor que os olhos, os sentidos, os homens, os animais, seres e plantas vivos, em suma, se tenham formado pela ação permanente de uma força natural, nem por isso se provaria a inexistência de Deus, mas, ao invés, que Deus existe. Na realidade, o que se dá é que, em vez de se nos revelar como pedreiro, ele se nos antolha como arquiteto. E com isto, cremos, nada perde, nem muito, nem pouco. (Deus na Natureza – Quarta Parte. Plano da Natureza - Construção dos Seres Vivos.)

912. Em nosso estudo geral da Força e da Matéria acompanhamos essa metamorfose da ideia de Deus. Do ponto de vista da destinação dos seres e das coisas, a ideia correlativa sofre a mesma progressão; longe de enfraquecer a antiga beleza do plano criador, ela o desenvolve e reforça grandemente. Se, em vez de uma mão a construir o protótipo de cada espécie animal e vegetal, admitirmos uma força íntima, aplicada à matéria, isso em nada afeta a ideia de uma inteligência criadora e da finalidade da Criação. Porque, na verdade, é preciso cerrar preconcebidamente os olhos, para que se não veja nessa força íntima da Natureza o efeito de um pensamento inteligente. É preciso ser cego para desprezar o índice evidente de uma causa poderosa e eterna. (Deus na Natureza – Quarta Parte. Plano da Natureza - Construção dos Seres Vivos.)

913. Pretender que a Natureza se forme de si mesma e progrida instintivamente, numa direção constante para resultados cada vez mais perfeitos, é confessar em parte que ela se encaminha a esse ideal devido a uma causa inteligente. Como poderia a matéria inerte ter tido a ideia de se enformar sucessivamente como vegetal, como animal, como homem, engendrando todos esses órgãos que constituem o ser vivente e conservam a vida através dos séculos? Como construir esses aparelhos mediante os quais o ser vivo se comunica permanentemente com as causas que o não constituem? Por que capricho do acaso esses órgãos se teriam gradativa e lentamente formado para essa comunicação dos sentidos, ligados ao cérebro pensante, que, só ele, conhece e julga? Como explicar a técnica perfeita dessas construções? Por que completos e não falhos, esses aparelhos, em sua grande maioria? Como, em sua integridade, por geração, se perpetuam esses organismos vivos? Por que a Criação composta de gêneros, de espécies, de família? Por que pode o espírito humano estabelecer classificação baseada no conjunto dos seres? Como reconhecemos em tudo isso uma ordem geral? Por que a Natureza não representa um caos de monstruosidades? (Deus na Natureza – Quarta Parte. Plano da Natureza - Construção dos Seres Vivos.)

914. A todas estas perguntas respondem-nos com a lei de seleção natural. Explicam todos os problemas repetindo que a Natureza é arrastada a um progresso incessante, que despreza o mau pelo bom e tende sempre a realizar formas mais perfeitas. Mas, em suma, que é que vem a ser essa tendência, esse progresso instintivo, essa necessidade de engrandecimento, senão o ato de uma força universal dirigindo o mundo para o ideal? Que significa essa marcha simultânea de todos os seres para a perfeição, senão a revelação eloquente de uma causa, que sabe onde e como conduz o carro, sem que a matéria servil pudesse jamais opor-lhe o mínimo obstáculo? (Deus na Natureza – Quarta Parte. Plano da Natureza - Construção dos Seres Vivos.) (Continua no próximo número.)


 

[i]     Principes de Philosophie Zoologique.

[ii]    Principes de Philosophie Zoologique.



 

     
     

O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita