Artigos

por Marcelo Henrique Pereira

 

Reformar ou transformar? Reforma íntima ou transformação espiritual?


Alguns conceitos são entronizados e se enraízam de tal modo em Filosofias que é difícil, depois, retirá-los ou entendê-los na sua real essência. No caso do Espiritismo, eles surgem a partir de alguma declaração – seja de um encarnado, médium ou dirigente, seja de um desencarnado – e vão ficando, ficando... Passam a ser retórica tradicional e, não raro, viram “figurinha fácil” no álbum das condutas humanas.

Falemos, pois, de uma delas: a decantada reforma íntima. Onde surgiu? Quem foi o primeiro a mencionar? Em que contexto foi dito? Qual era o alcance? Que objetivos se tinha? Qual a relação deste conceito com o Espiritismo?

Perguntas... Faltam respostas. Lógicas. Mas há cogitações e ponderações para entender o porquê desta cristalização de um conceito, aparentemente díspar e dissociado da real proposta espiritista.

O que é reformar? Valemo-nos do léxico, do vocabulário contido nos dicionários de língua portuguesa: “dar melhor forma a; corrigir; emendar” ou “reconstituir a antiga forma de; reconstruir”. Reforma, por sua vez, o substantivo que deriva do verbo (ação) originário, é “ação ou efeito de reformar”; “mudança introduzida em algo para fins de aprimoramento e obtenção de melhores resultados”.

E o que é reforma íntima? Não vamos encontrar essa locução, essa expressão conjugada, nos dicionários do vernáculo. Ela é uma construção filosófico-religiosa e está comumente presente em textos tidos como espíritas. Seu significado? Em um dos muitos sites espíritas, encontramos: “processo contínuo de autoconhecimento da nossa intimidade espiritual, modelando-nos progressivamente na vivência evangélica, em todos os sentidos da nossa existência. É a transformação do homem velho, carregado de tendências e erros seculares, no homem novo, atuante” (nossos os destaques, tendo como fonte o site KardecRioPreto.com.br).

Vale dizer, ainda, que essa locução (reforma íntima) não se acha grafada em nenhuma das obras assinadas por Kardec. O único trecho, em todo o conjunto espírita em que há referência ao termo “reforma”, no sentido que se tenta atribuir ao mesmo, com a composição “reforma íntima”, acha-se contido na dissertação inserta na Revue Spirite, de julho de 1866, sob o título “Do projeto de caixa geral de socorro e outras instituições para os espíritas”, em que Rivail analisa uma dissertação assinada pelo Espírito Marie G.

Vamos ao texto:

O Espiritismo é uma crença filosófica, e basta simpatizar com os princípios fundamentais da doutrina para ser espírita. [...]

Entre os espíritas reais, aqueles que constituem o verdadeiro corpo dos adeptos, há certas distinções a fazer. Na primeira linha há que colocar os adeptos de coração, animados de fé sincera, que compreendem o objetivo e o alcance da doutrina e aceitam todas as consequências para si mesmos; seu devotamento é a toda prova e sem segundas intenções; os interesses da causa, que são os da Humanidade, são sagrados para eles, e eles jamais os sacrificarão a uma questão de amor-próprio ou de interesse pessoal. Para eles, o lado moral não é uma simples teoria; eles esforçam-se por pregar pelo exemplo; não só têm a coragem de sua opinião, mas consideram-na uma glória, e, conforme a necessidade, sabem pagar com sua pessoa. 

Vêm a seguir os que aceitam a ideia como filosofia, porque ela lhes satisfaz a visão, mas cuja fibra moral não é suficientemente tocada para compreenderem as obrigações que a doutrina impõe aos que a adotam. O homem velho está sempre ali, e a reforma de si mesmo lhes parece tarefa muito pesada. Mas como não estão menos firmemente convencidos, entre eles encontram-se propagadores e zelosos defensores. 

[...] O Espiritismo não tem o privilégio de transformar subitamente a Humanidade, e se a gente pode admirar-se de uma coisa, é do número de reformasque ele já operou em tão pouco tempo. Ao passo que nuns, onde encontra o terreno preparado, ele entra, por assim dizer, de uma vez, noutros só penetra gota a gota, conforme a resistência que encontra no caráter e nos hábitos. 

[...] As ideias espíritas devem, infalivelmente, apressar a reformade todos os abusos, porque, melhor que outras, elas penetram os homens com o sentimento do dever; por toda parte onde elas penetrarem, os abusos cairão e o progresso se efetivará. [...] A julgar o futuro pelo presente, podemos afirmar que o Espiritismo terá levado à reforma de muitas coisas muito antes que os espíritas tenham podido acabar o primeiro estabelecimento do gênero desse de que falamos, se algum dia o empreendessem, mesmo que todos tivessem que dar um cêntimo por semana”.

Deste modo, como se viu, antes, Kardec fala da “reforma de si mesmo” dirigida aos adeptos espiritistas que se maravilham ante os conceitos, mas ainda não conseguem efetivar a transformação pessoal, permanecendo no quadrante de “homem velho”, impedindo o novo, o que vem depois, o que se transforma, de atuar e influir, preponderando. E é ele, o Espiritismo, segundo estatui o Codificador, o responsável pelas reformas (sociais) a partir de suas ideias, influindo decisivamente no progresso da Humanidade.

Contudo, por ser majorativamente religioso, em nosso país, o Espiritismo apresenta uma carga emocional bastante definida e notória que o faz assumir roteiros, rotinas e (até) rituais correlacionados a movimentos que se vinculam a igrejas ou seitas. Tem-se, assim, uma legião de crentes (ou fiéis) que se reúnem em torno da filosofia e que frequentam instituições que se parecem com ambientes religiosos. Vale dizer que religião é bem diferente de religiosidade, pois esta é um sentimento inerente a cada ser, e está associado às suas convicções íntimas – o que, para a Doutrina Espírita, alcança tempos imemoriais que vão sedimentando a chamada “bagagem” encarnatória de cada individualidade. Em suma, o conjunto de experiências e a forma (o mais racional possível) de entendimento acerca das questões transcendentais ou espirituais. E a religiosidade é um componente extremamente salutar na caminhada espiritual de todos nós!

Vê-se, assim, que no texto acima transcrito, a questão religiosa é ponto fundamental (“vivência evangélica”) tomando-se por “evangelho” o conjunto de feitos e ditos atribuídos a Jesus de Nazaré, a partir do registro daqueles que se dispuseram a contar um pouco do que ouviam a respeito daquele homem, já que nenhum deles conviveu diretamente e na mesma época do Rabi. E, neste particular, ainda, convém lembrar que, de uma infinidade de evangelhos escritos, foram reconhecidos (pela Igreja) como “aceitos e válidos”, apenas os canônicos, em número de quatro, como se sabe, permanecendo todos os demais no ostracismo ou na marginalidade, ainda que, nos dias atuais, se busque resgatar informações neles contidas, para permitir a ampliação do entendimento e do espectro do sublime personagem.

Vivência evangélica, então, pode ser interpretada como a repetição dos atos do Homem de Nazaré ou, também, e mais marcantemente, um conjunto de atitudes que são referendadas pelas igrejas, como sendo recomendáveis, dentro de mandamentos, sacramentos ou orientações ético-morais daquelas filosofias. Normas de conduta, em síntese. E não seria isso, certamente, a proposta contida na Doutrina Espírita.

Voltando ao texto selecionado, que nos trouxe o conceito corrente de “reforma íntima”, em sua segunda parte, tem-se um termo que agrada muito mais e que, em essência, parece coincidir com a proposta genuinamente espírita, tendo como referência os trabalhos de Allan Kardec (1857-1869) e os escritos de sua lavra em conjunto com as informações obtidas dos Espíritos Superiores. Este termo é TRANSFORMAÇÃO.

Transformar, segundo os dicionaristas, é “fazer tomar ou tomar nova feição ou caráter; alterar(-se), modificar(-se)” ou “fazer passar ou passar de um estado ou condição a outro; converter(-se), transfigurar(-se). Já transformação é “qualquer alteração no estado de um sistema”.

Tal transformação é exatamente o que visa a Educação Espírita, ou a instrução espiritual-espiritista a partir da análise racional da vida (espiritual) sob o prisma da Doutrina dos Espíritas. Kardec mesmo acentua esse caráter em vários pontos de sua obra, ao afirmar que a obra do Espiritismo é (uma) obra de EDUCAÇÃO. Com a educação, que perpassa teoria e prática, entendimento e atitude, o ser passa a transformar-se, a modificar seus caracteres e condutas e materializa o contido em uma das Leis Espirituais (transcritas na terceira parte de “O Livro dos Espíritos”), que é a LEI DE PROGRESSO. A transformação (do Espírito) é o progresso.

Para os mais próximos, em cenários materiais (instituições espíritas) e virtuais (grupos de conversação e debate na internet) costumo dizer que não aprecio a expressão “reforma íntima” porque, para mim, reformar pressupõe destruir o que havia antes. Tomemos um pequeno exemplo. Um determinado proprietário de um imóvel deseja reformá-lo. Pode ser uma casa, uma loja, um edifício. A edificação tem um formato, uma estrutura, uma aparência exterior, uma subdivisão interna. E há a vontade manifesta de alterar esses elementos. Passa-se, então, a substituir janelas e portas, derrubar paredes, extrair o piso, trocar o telhado etc. Muita destruição por toda a parte, para receber uma “nova forma”. Destrói-se, aniquila-se, extingue-se o “velho” para dar lugar ao “novo”.

Em termos espirituais não há “destruição” do ser. Ele permanece íntegro. Ele é. Ele tem e mantém sua própria essência fundamental – a condição de SER ESPÍRITO, imortal. Nas idas e vindas, no conjunto das experiências, ele não “se destrói”, nem “é destruído”. Mas, modificado, transformado, ampliado (em sua consciência). Ele progride. E o faz a partir da TRANSFORMAÇÃO (espiritual).

Poderia ser uma “mera” questão de semântica. Mas não é. O conjunto de elementos que impregnam o conceito de “reforma íntima” repetem muitos chavões de culturas e abordagens não espíritas, pertencentes a ideologias religiosas em que há a “obrigação” de seguir certas prescrições, sob pena de... É a cultura do temor, do medo e da culpa. É como se se dissesse: “reforme-se, senão...”. “Sua situação ficará muito pior se você não se reformar”. E por aí vai...

Consigno a proposta espírita como um ato de transformação, genuíno, racional, espiritual, transcendente. O ser se transforma PORQUE QUER, porque MERECE e PODE BUSCAR uma condição melhor, porque TRABALHA por superar-se (“reconhece-se o verdadeiro espírita pelos esforços que faz em domar suas más inclinações”, na transcrição do conceito lato sensu de espíritas, também egresso da obra kardeciana). Não é bem melhor ter em mente que a transformação é um processo natural do que forjar uma reforma que, em muitas situações, soa apenas no âmbito da aparência? Reflitamos...

 



 

     
     

O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita