Clássicos 
do Espiritismo

por Angélica Reis


Deus na Natureza

Camille Flammarion

(Parte 44)


 

Continuamos o estudo metódico e sequencial do livro Deus na Natureza, de autoria de Camille Flammarion, escrito na segunda metade do século 19, no ano de 1867.


Questões preliminares


A. Sobre a questão do livre-arbítrio, que dizia Samuel Smiles?

Quaisquer que sejam as conclusões teóricas a que cheguem os lógicos na questão do livre-arbítrio, todos sentimos que somos praticamente livres de escolher entre o bem e o mal. Não somos o seixo que, lançado na torrente, apenas pode seguir o curso das águas. Ao contrário, sentimos em nós a força do nadador, que pode escolher a direção convinhável, lutar contra a corrente, ir mais ou menos aonde lhe praza. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

B. Podemos dizer, com Flammarion, que a grandeza do homem está na sua liberdade?

Sim. A liberdade é, aliás, a única coisa que possuímos completamente nossa, e a boa ou má direção que lhe damos, em definitivo, só depende de nós. Nossos hábitos e pendores não são nossos amos, mas servos. É pelo emprego livre da razão que nos fazemos o que somos. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

C. Qual frase dita pelo químico espiritualista Liebig foi criticada por Moleschott?

Disse o eminente pensador Liebig: “O homem tem umas tantas necessidades que se radicam na sua natureza espiritual e não podem ser satisfeitas pelas forças físicas, necessidades que são as diversas condições de suas funções intelectuais”. É claro que Moleschott, notório partidário das ideias materialistas, não gostou de tais palavras, ignorando o fato – universal e amplamente conhecido – de que nem só de pão vive o homem. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)


Texto para leitura


806. Quaisquer que sejam as conclusões teóricas a que cheguem os lógicos na questão do livre-arbítrio – dizia Samuel Smiles –, todos sentimos que somos praticamente livres de escolher entre o bem e o mal. Não somos o seixo que, lançado na torrente, apenas pode seguir o curso das águas. Ao contrário, sentimos em nós a força do nadador, que pode escolher a direção convinhável, lutar contra a corrente, ir mais ou menos aonde lhe praza. Nenhum constrangimento absoluto nos empece a vontade. Sentimos e sabemos, no concernente aos nossos atos, que não somos encandeados por qualquer espécie de magia. Todas as nossas aspirações para o bem e para o belo ficariam paralisadas se pensássemos de modo diverso. Todos os negócios, nossa conduta na vida, regime doméstico, contratos sociais, instituições públicas, tudo, enfim se baseia na noção prática do livre-arbítrio. E sem ele, onde estaria a responsabilidade? De que serviria ensinar, aconselhar, predicar, reprimir, punir? Para que leis, se não houvesse uma crença universal como o próprio fato universal, de que dos homens e de sua determinação depende conformar-se ou não? O homem que melhor evidencia seu valor moral é o que se observa a si mesmo, dirige as suas paixões, vive conforme a regra que se impôs, estuda suas aptidões e suas falhas. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

807. Eis, verdadeiramente, o homem: sua grandeza está na sua liberdade. Não fora livre o homem, não se lhe permitiria ter fome e sede, nem comer nem beber; nem senhorear, em coisa alguma, as tendências do seu corpo. A ordem social não se teria constituído. Mas nós não temos necessidade de prova alguma exterior para afirmar a nossa liberdade. Ninguém melhor o sabe do que a nossa própria consciência. Ela é, aliás, a única coisa que possuímos completamente nossa, e a boa ou má direção que lhe damos, em definitivo, só depende de nós. Nossos hábitos e pendores não são nossos amos, mas servos. Mesmo quando com eles transigimos, a consciência adverte-nos de que poderíamos resistir e que, para vencê-los, não careceríamos de fortaleza superior às nossas possibilidades, se fizéssemos finca-pé. É pelo emprego livre da razão que nos fazemos o que somos. Se ela apenas propende para o sensualismo é que a vontade, forte e demoníaca, subjuga e escraviza a inteligência. Bem dirigida, porém, essa mesma vontade compara-se a uma rainha, tendo por ministros as faculdades intelectuais e presidindo ao maior desenvolvimento compatível com a natureza humana. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

808. Este pretenso ateísmo científico tomou o encargo de rebaixar e destruir todos os caracteres da grandeza humana. Não pode, contudo, impedir a alma de provar o seu valor, de assomar a matéria, construindo-se de si mesma com os elementos do seu meio e do seu clima. O materialismo não percebe que se a personalidade humana fosse resultado de influências fatalísticas da Natureza, a criança e o selvagem, sob o governo quase exclusivo dessas forças, seriam mais sensatos, mais íntegros que o sábio, o filósofo, o artista. Uma tal consequência destrói, por si só, a teoria dos nossos adversários. Moleschott ri-se inconsideradamente do químico espiritualista Liebig, a propósito desta assertiva do eminente pensador: “O homem tem umas tantas necessidades que se radicam na sua natureza espiritual e não podem ser satisfeitas pelas forças físicas, necessidades que são as diversas condições de suas funções intelectuais.” É claro – responde Moleschott – que estas palavras não têm sentido. Pode a ambição humana imaginar um fim mais orgulhoso que o decorrente de sua própria elevação a necessidades impossíveis de serem providas por forças naturais? (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

809. Certo, o autor de A Circulação da Vida jamais sentiu essas aspirações superiores à natureza física e às forças que a regem. Nunca contemplou o ideal do bem e do belo, jamais exorbitou da esfera das funções corporais, seja da assimilação e desassimilação orgânicas. Se assim é, nós o lastimamos e nos contristamos de saber que há, no mundo pensante, criaturas para as quais o mundo intelectual permanece completamente fechado. Mas, dirijo-me a vós, espíritos pensantes que aqui me ledes, sejais quem fordes, homem ou mulher, criança ou velho, moça ou rapaz: Concordais em que todos os anseios d'alma, todos os requisitórios do coração, todas as aspirações da mente não tendam a fins estranhos e transcendentes às transformações da matéria? Acreditais que no círculo da sensação e do sensualismo se encerrem todas as tendências da nossa personalidade? Se já amastes na aurora da vida, se já sonhastes os sonhos primaveris, se o céu de vossa juventude já vos deixou entrever, ainda que por um instante, uma estrela verdadeiramente celestial em sua auréola atrativa; dizei-me se é possível aceitar, como expressão de realidade, a palavra de Stendhal, quando diz que o amor não é mais que um contacto de duas epidermes? (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

810. Se tendes estudado as obras da Natureza, o céu cujos mundos incontáveis gravitam harmônicos no âmbito da luz e da vida, a Terra, em cuja superfície se conjugam e se desdobram de concerto as manifestações da força vital, a atmosfera, cujas leis periódicas regulam o regime geral; as plantas, ornamento e perfume do solo, base do edifício das existências; os seres vivos, cuja estrutura revela, a cada passo, a maravilhosa adaptação das funções aos órgãos; se tendes estudado as lições grandiosas e o mecanismo geral desta Natureza tão rica e tão fecunda, podereis recusar-vos a saudar do uno de vossa alma a Inteligência suprema com tamanho império manifestada sob o véu da matéria? (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

811. Se, no silêncio eloquente das noites estreladas, vossa alma se deixou arrebatar num voo olímpico a esses focos de vida desconhecida; se já fostes alguma vez levado a perguntar quais possam ser as formas da vida futura, e se já houverdes pressentido que o idealismo de nossas aspirações não se realizou neste mundo, porventura não estremecestes à ideia do infinito e da eternidade que nos aguardam? Se tendes presenciado as obras sublimes de devotamento e caridade, que espalham o bálsamo da consolação nos espíritos sofredores; que levam os proscritos da Terra a esperar uma justiça imanente; que sustentam o passo vacilante dos feridos e que se consagram de corpo e alma ao alívio das misérias terrenas; – dizei-me: não tendes concluído que o sensualismo e o egoísmo indiferente não são tudo o que encerra o coração humano? (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

812. Se sentistes, alguma vez, a magia da música deixando-vos embalar por essas obras-primas, cujos autores ilustres têm pontilhado de encantos a travessia oceânica da vida, dizei-me: – não vos parece que há fases acústicas, harmonias que o ouvido não entendeu e das quais as melodias terrenas não representam mais que um eco amortecido? Se tendes vivido a vida da alma, enfim, essa vida entrecortada de êxtases e angústias, sensível e dominadora ao mesmo tempo; – vida que se conturba com as mágoas do coração e sabe, todavia, calcar a pés os prejuízos vulgares e dominar triunfante os nadas mundanos; se tendes caminhado de fronte erguida, fitando o céu, não compreendestes que a inteligência ultrapassa a matéria, que a alma tem necessidades extracorpóreas e que a nossa dignidade moral não conhece a poeira das praças públicas, onde os saltimbancos divertem as turbas vadias com jogos de Física recreativa? (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

813. Se, qual temos visto, a Ciência do mundo físico perde, na hipótese da inexistência de Deus, a sua base e a sua luz, para resvalar na incapacidade absoluta de explicar razoavelmente a construção do Universo, a ciência do mundo intelectual perde, maiormente, a sua razão de ser. Esvanecem-se o verdadeiro, o belo, o bem. Em que báratros tenebrosos mergulham, então, os velhos princípios da Filosofia, da Estética, da Moral? A meditação das eternas verdades já não passará de um sonho. O sábio, o pensador e o artista estrebucham na treva e no caos? Em vão se pretenderá que a Arte possa colimar outros fins que não sejam a representação de formas agradáveis? Escultura, música, pintura apenas visam deleitar-nos os sentidos? Erro profundo! Qual a beleza que a nossa alma contempla na estatuária, no desenho, na harmonia? Qual a magia que nos atrai através das luzes e sombras dos ensaios perecíveis? Não será a beleza ideal, a verdade misteriosamente oculta, da qual temos sede, procurando vê-la em tudo? Não será o ideal puro, translúcido, soberano, ímã possante, sedutor irresistível de inteligência? (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

814. A Humanidade não se elevou acima das outras espécies terrenas senão por sua constante ascensão para o ideal, para a verdade espiritual. A Arte seria um mito, um engodo, um exercício mecânico, um nada, se não radicasse na beleza suprema. Nisto – nisto sobretudo – é que o homem se afirma por predicados estranhos à matéria e confinantes com a esfera do Infinito. Nisto, sobretudo, é que o homem entra em comunhão com os esplendores infinitos e os fixa, para sempre, em louvores imortais... Tenho diante de mim a poeira vil, a matéria inanimada, um fragmento de argila! (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

815. Minha alma, inspirada, concebeu o tipo visível de uma virtude sobre-humana, a manifestação do heroísmo, do devotamento, do amor, da adoração... Argila! terra colhida nalgum fosso úmido, em ti vou transfundir a inspiração de minha alma... Em ti vai encarnar-se a minha inteligência! Em ti vai manifestar-se e esplender o tipo sublime que o meu espírito contempla! Em ti vão fremir as palpitações do meu pensamento! E enquanto meu despojo miserando, caído em inominável ignomínia, vai sumir-se e afastar-se no tempo e na História, dentro ainda de quarenta séculos, os olhos que te contemplarem em ti verão meu pensamento! Milhões de corações terão palpitado e palpitarão ainda, em uníssono, com o meu... E diante de ti as almas se inclinarão para saudar a virtude divina, que te deu uma auréola imperecível! (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

816. O apanágio mais glorioso da natureza humana não passaria de grosseiro engodo, se prevalecer pudesse a teoria mecânica do Universo. A Verdade, o Bem, o Belo desaparecem nela. Em vão os adversários nos alegam sua conduta exemplar, inatacável. No caso, não se trata das consequências da sua vida pessoal e sim das de sua doutrina. Pois bem: logicamente, sem contradizer-se a si mesmo, não pode o ateísmo constituir-se em moral. “O materialismo – diz judiciosamente Patrício Larroque – para mais nada presta, senão para tirar à vida humana a sua gravidade e o seu valor, dando razão aos seres miseráveis, cuja habilidade consiste em explicar, com a maior segurança possível, as misérias e fraquezas do próximo.” (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.) (Continua no próximo número.)
 


 

     
     

O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita