Clássicos
do Espiritismo

por Angélica Reis

Deus na Natureza

Camille Flammarion

(Parte 18)


Continuamos o estudo metódico e sequencial do livro Deus na Natureza, de autoria de Camille Flammarion, escrito na segunda metade do século 19, no ano de 1867.


Questões preliminares



A. Como Bichat definia a vida?

Segundo Bichat, a vida é um conjunto de funções que resistem à morte. De fato, é a coordenação das funções orgânicas que constituem o ser vivente. E que será essa coordenação, senão um sistema de forças destinadas a movimentar a máquina animada? Deste ponto de vista, o que a tudo sobreleva é a ideia dinâmica. Banida ela, o que nos fica é nada mais que um cadáver. (Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida.)

B. A vida é um turbilhão contínuo, como pensava Cuvier?

Se da descrição do órgão apropriado ao seu funcionamento e desse conceito de forças particulares remontarmos ao conjunto do seu e à sua conservação, desde o começo ao fim da vida, concluiremos, sim, com Cuvier, que “a vida é um turbilhão contínuo, cuja diretiva, por mais complexa que seja, permanece constante, tal como a espécie de moléculas que consigo arrasta, mas não as moléculas individuais em si mesmas”. (Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida.)

C. Como pôde o carvalho enorme sair da ínfima semente caída ao solo?

A mesma pergunta pode ser feita com relação às diferentes plantas que nasceram e cresceram na mesma terra, sob o mesmo sol e a mesma chuva, ou seja, nas mesmíssimas condições. Ora, o germe orgânico não reside somente na estrutura anatômica, mas também, e sobretudo, em uma força especial que se encarrega, sem enganos possíveis, da organização do ser, de modo a não dar a um cavalo uma cabeça de carneiro, nem a um coelho pés de pato! (Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida.)


Texto para leitura


369. Os materialistas objetam, enfim, que a força a que nos referimos não existe, porque “força sem substrato material é ideia abstrata, desprovida de senso”. Ora, não vemos necessidade de admitir que não exista uma força típica, ou que essa força seja extrínseca à matéria, porque os negativistas incidem, aqui, no mesmo erro de quando se trata da existência de Deus, que declaram só possível de conceber fora do mundo. É sempre o mesmo princípio que está em jogo. Ademais, seria fácil demonstrar que todos os conhecimentos humanos se reduzem, última ratio, à noção da força e da extensão; poderíamos invocar o testemunho da Matemática, da Física, da Química, da História Natural em seus três reinos: Mineralogia, Botânica, Zoologia; a ciência do homem: Psicologia, Estética, Moral, Teologia natural, Filosofia; ciências que, todas, iriam esbarrar no mesmo nó substancial, isto é, a força e a extensão. Não cabe, entretanto, fazer aqui um dicionário. Baste-nos considerar do ponto de vista da vida esta dupla questão e notar, igualmente, o predomínio da força sobre a extensão. (Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida.)

370. Bichat definia a vida como conjunto de funções que resistem à morte. Sem tomarmos puerilmente, ao pé da letra, essa definição, perguntamos: qual a primeira imagem que nos oferece o exame da estrutura de um vegetal ou de um animal? Certo, é a coordenação das funções orgânicas que constituem o ser vivente. E que será essa coordenação, senão um sistema de forças destinadas a movimentar a máquina animada? Deste ponto de vista, o que a tudo sobreleva é a ideia dinâmica. Banida ela, o que nos fica é nada mais que um cadáver. (Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida.)

371. Se da descrição do órgão apropriado ao seu funcionamento e desse conceito de forças particulares remontarmos ao conjunto do seu e à sua conservação, desde o começo ao fim da vida, concluiremos com Cuvier que “a vida é um turbilhão contínuo, cuja diretiva, por mais complexa que seja, permanece constante, tal como a espécie de moléculas que consigo arrasta, mas não as moléculas individuais em si mesmas”. (Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida.)

372. Aqui, há ainda que reconhecer a presença da força, que, através da incessante mutação dos corpos, lhes assegura e conserva a identidade da forma. Ela – essa força – é pois a característica principal de todo organismo. E frisamos estas palavras de Cuvier: “as moléculas individuais circulam perpetuamente, mas a espécie permanece sempre idêntica”. Essa permanência devemo-la à força. Que sucederia, por exemplo, se apenas a forma se salvaguardasse e nenhuma direção virtual presidisse à eleição das moléculas químicas? Teríamos, a breve trecho, o mais heterogêneo dos corpos imagináveis, ainda que guardando a perfeição da sua formação. (Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida.)

373. Passando do indivíduo à espécie, ainda aí notamos o predomínio necessário da força. Se cada indivíduo se mantém vivo, é graças à sua dinâmica íntima. Se as espécies vegetais ou animais permanecem, é graças à força inicial que, só ela, pode caracterizar a identidade da espécie, transmissível à descendência e existente em estado latente, ou sensível, no óvulo vegetal como no óvulo animal. (Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida.)

374. Como pôde o carvalho enorme sair da ínfima bolota caída ao solo? Como se fez carvalho, ao lado da fava que expeliu a faia; da batata, que engendrou o pinheiro; da amêndoa, que se fez tumba do pilriteiro desdobrando-se em bagas escarlates; ou ainda, ao lado do grão de trigo e de aveia, na mesma terra, com o mesmo sol e a mesma chuva; em suma: nas mesmíssimas condições? (Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida.)

375. Ora, com certeza, o germe orgânico não reside somente na estrutura anatômica, mas também, e sobretudo, em uma força especial que se encarrega, sem enganos possíveis, da organização do ser, de modo a não dar a um cavalo uma cabeça de carneiro, nem a um coelho pés de pato! (Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida.)

376. Afirmando tão apaixonadamente a inexistência de uma força especial nos seres vivos e que a vida mais não é que o resultado da presença simultânea das moléculas constitutivas do animal ou vegetal, justo seria procurassem, os arautos de tão audaciosas afirmativas, comprová-las experimentalmente, ainda que modestamente. Improvisai um único, e o mais ínfimo ser vivo, e... nós nos renderemos. (Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida.)

377. Vejamos: temos à mão uma garrafa com carbonato de amoníaco, cloreto de potassa, fosfato de soda, cal, magnésia, ferro, ácido sulfúrico e sílica. Sois vós mesmos a confessá-lo[i] que nesse frasco está contido o princípio vital, completo, de plantas e animais. Fazei, portanto, uma plantinha, um só bichinho... Como assim? Calai-vos? (Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida.)

378. Apelai para a vossa memória e ouvi a cena maravilhosa do eterno Mefistófeles a dialogar com o alquimista. Wagner, atento ao forno:


“O sino tangeu, percussão formidável! Abalou as paredes negras, ferrugentas. Oh! a incerteza desta expectativa tão solene não pode prolongar-se muito. As trevas como que se desfazem, estou a ver no fundo da lente algo que reduz[ii] como carbono vivo, ou, melhor, como esplêndido diamante, a clarear de mil facetas a escuridão ambiente. Agora, uma luz pura, branquíssima. Bem, desta vez espero que não escapara... ah! maldição, quem bate assim à porta, justamente...

Mefistófeles: (entrando) – Que há?

Wagner: (baixinho) – Está-se fabricando um homem...

Mefistófeles: – Um homem? Mas, que amoroso casal meteste aí nessa chaminé?

Wagner: – Ora, valha-me Deus! Essa velha fórmula de procriar já foi, há muito, reconhecida um simples gracejo. O foco sutil de onde brotava a vida, a força suave que de si exalava, e tomava e dava, destinada a formar-se por si mesma, alimentando-se a princípio das substâncias circunvizinhas e, a seguir, de substâncias estranhas, tudo isso caducou e perdeu o seu prestígio. Se o animal ainda lhe encontra prazer, ao homem convém, por dotado de mais nobres qualidades, uma origem mais pura e mais alta. (Voltando-se para a fornalha) Quanto brilho! veja... Dora em diante, é lícito esperar que, se de cem matérias, e por mistura – pois tudo depende da mistura – conseguimos com facilidade compor a massa humana, aprisioná-la num alambique, e a obra se completará em silêncio. (Voltando-se de novo para a fornalha) É o que está sucedendo: a mesma clareia-se e mais convicto me deixa, a cada instante. Tentamos, judiciosamente, experimentar o que se chamava – mistérios da Natureza – e o que ela produzia outrora, organizando, fazemo-lo hoje cristalizando.

Mefistófeles: – A experiência vem com a idade e a quem quer que tenha vivido bastante, nada ocorre de novo, na Terra. Por mim, confesso que nas minhas viagens encontrei, bastas vezes, muita gente cristalizada...

Wagner: (que não tirara o olho da sua lente) – A coisa está crescendo, brilhando, fervendo... Um instante mais e a obra estará consumada. Não há ideal grandioso que à primeira vista não pareça insensato; contudo, doravante, queremos sobrancear o acaso e dessarte, futuramente, um pensador não deixará de fabricar um cérebro pensante... (Contemplando a redoma embevecido) O cristal retine, vibra; comove-o uma força encantadora, ele como que se perturba e se aclara, o sucesso não tarda. Já estou a ver a forma elegante de um homenzinho gesticulando... Que mais desejar? Que pode o mundo querer de melhor? Eis o mistério a desnudar-se! Atenção! Esse timbre se articula, vozeia, fala!

Homúnculo: (de dentro da redoma, para Wagner) – Bom dia, papai! então sempre era verdade, hein? Toma-me, aconchega-me ao teu seio com ternura, mas, olha, não me apertes muito, senão... quebras o vidro. Isso é a propriedade das coisas: ao que é natural, só o Universo pode bastar; mas o artificial, ao contrário, reclama o limitado. (Voltando-se para Mefistófeles) Tu aqui? Velhaco... Mas, ainda bem que o momento é azado e graças dou porque boa estrela te trouxe a nós. Já que estou no mundo, quero agir e meter desde logo mãos à obra. Hábil és tu para me desbravar o caminho.

Wagner: – Uma palavra ainda... Até aqui, muitas vezes me vi indeciso, quando moços e velhos me vêm cumular de problemas. Ninguém, por exemplo, ainda compreendeu como a alma e o corpo, tão intimamente conjugados e ajustados entre si, a ponto de os julgarmos para sempre inseparáveis, vivem em luta sem tréguas e chegam a envenenar a própria existência... e depois...

Mefistófeles: – Alto lá! Eu antes quisera saber a razão por que o homem e a mulher não se entendem. Esta é uma questão que te há de custar a resolver. Isso é o que vale tentar e o petiz deseja fazê-lo...“ (Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida.)


379. Voltai, porém, a página do libreto. Vamos ao 1º ato, é Fausto, é a velha e nova Ciência quem fala: Como tudo se movimenta para o trabalho universal! Como operam e cooperam as atividades todas, umas pelas outras! Como sobem e descem as forças, a permutar de mão em mão seus vasos de ouro, a tocá-los com as suas asas que exalam, nesse vaivém, do céu à Terra, uma como bênção de universal harmonia! “Estupendo espetáculo! Mas... ó tortura! nada mais que espetáculo! Onde apreender-te, ó Natureza! Ó fontes de toda a vida! que abranjeis e nutris céus e terras, onde estais? Para vós se voltam os seios desnutridos, correis aos borbotões, inundais o mundo, enquanto em vão me consumo.” (Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida.)

380. Sim. Em vão vos consumis, tentando reivindicar para o homem a obra do Criador. Com todo o vasto conhecimento da matéria e das suas propriedades, não conseguistes engendrar sequer um cogumelo. (Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida.)

381. O que não podemos, pode a Natureza, visto que ela ainda é mais hábil que nós. Mas, então, que fazeis da inteligência, uma vez que, por outro lado, presumis não haver espírito na Natureza? Mas vamos adiante. Demais – acrescentais argutamente –, se ainda não produzimos seres vivos por processos químicos, temos, todavia, produzido matérias como, por exemplo, o ácido característico da urina, e o óleo essencial da mostarda (éter alilsulfociânico), o que muito nos lisonjeia. (Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida.)


 

[i]     Circulation de la Vie, T. 2º, carta 15º.

[ii]    A ideia de enclausurar Espíritos em frascos é muito comum na feitiçaria medieval. O Papa Benedito IX expeliu sete Espíritos de um açucareiro.

 

 

     
     

O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita