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por Marcelo Teixeira

Grande Prêmio Nosso Lar

Nosso Lar é, segundo a literatura espírita, o nome de uma colônia espiritual situada nos arredores do Grande Rio. Conforme o livro homônimo – ditado pelo Espírito André Luiz e psicografado pelo médium mineiro Chico Xavier – Nosso Lar paira sobre cidades como Rio de Janeiro, Petrópolis e circunvizinhas.

Desde que passei a ser parte integrante do movimento espírita, ouço muita gente dizer que gostaria de ir para Nosso Lar quando desencarnasse. E também ouço muitos colegas de ideal falarem que, ao fazerem algo de bom, principalmente dentro do centro espírita, ganharam mais um bônus-hora, uma espécie de milhas de cartão de crédito (só que morais), que vamos juntando a fim de garantir um bom lugar na referida colônia espiritual.

Pelo que entendi do livro, ninguém junta bônus-hora aqui para serem utilizados do lado de lá. Mesmo que sejam imateriais. Os bônus-hora fazem parte da dinâmica dos que vivem a rotina de Nosso Lar. É algo de desencarnado para desencarnado. Portanto, de nada adianta fazer o bem aqui com segundas intenções para o lado de lá. Mesmo porque, ao agirmos dessa forma, estamos fazendo algo que muitas religiões fazem. Algo que foge totalmente à proposta do Consolador Prometido: barganha.

É comum os homens – incluindo os espíritas – censurarem religiões que “vendem” lotes no céu a fiéis incautos, gente que faz promessas e oferendas para receber, em troca, vantagens e benefícios etc.

Todavia, julgar que cada bônus-hora teoricamente juntado aqui equivale a mais um tijolinho da nossa futura morada em alguma aprazível alameda de Nosso Lar também é fazer barganha. Como diz meu amigo Vinícius Lara, do movimento espírita mineiro, há espíritas querendo realizar, do outro lado da vida, o sonho da casa própria. Não perceberam que a proposta da Doutrina Espírita vai muito, mas muito além de um mero toma-lá-
dá-cá.

Li certa vez, numa postagem na rede social Facebook, que o mal das religiões tradicionais foi ter adestrado as pessoas a meramente frequentarem o templo. Deveriam, isso sim, ter ensinado os fiéis a praticarem na vida de relação o que é dito nos sermões, preleções, homilias e afins.

A proposta do Espiritismo é essa. Ele dá as coordenadas para termos uma conduta cristã, trabalhando em várias frentes por um mundo onde o amor – traduzido em respeito, justiça social etc. – seja instalado e permaneça. Mas como somos oriundos de movimentos religiosos que simplesmente adestravam as pessoas, muitas vezes praticamos, dentro do centro espírita, sem nos darmos conta, um bem calcado numa relação de troca. Aí, negligenciamos o verdadeiro bem, que se dá quando agimos como cidadãos comprometidos com a construção de um mundo melhor.

De nada adianta declararmo-nos espíritas e não estarmos nem um pouco empenhados em transformar o meio social. Tampouco acharmos que ser espírita se resume a realizar uma gama de tarefas e continuarmos sendo os obtusos de sempre. E muito menos julgarmos que ser espírita é uma espécie de salvoconduto que garantirá uma entrada triunfal em Nosso Lar e congêneres.

Por que somos espíritas, afinal? Porque o pessoal do centro é muito bacana? Porque o estudo é animado? Porque as palestras são ótimas? Porque é sempre bom tomar um passe? Porque as tarefas que exerço me dão destaque? Ou porque, insisto, eu quero ser melhor e contribuir para que o mundo seja também melhor?

Segundo o professor e filósofo budista Eduardo Pinheiro de Souza, também conhecido como Padma Dorje, há, no Brasil (e só no Brasil), pessoas que se dizem budistas só porque praticam meditação. Entretanto, não conhecem os ensinamentos da religião que dizem professar. Se conhecessem, adeririam às propostas de compaixão, empatia ante a dor do próximo, respeito à natureza etc. e teriam o budismo como filosofia de vida. Mas preferem continuar sendo materialistas, competitivos, consumistas e indiferentes às dores sociais. Julgam-se budistas só porque meditam. São, nas palavras do Padma, budistas por uma questão estética e não ética.

Essa consideração vale para qual-quer religião. Inclusive para o Espiritismo. Somos espíritas por uma questão ética ou estética?

Pensando nisso, resolvi elaborar um jogo chamado Grande Prêmio Nosso Lar. Uma brincadeira que remete aos tempos de infância e início de adolescência, na década de 70 do século passado.

À época, a gurizada se divertia muito com jogos de tabuleiro. Entre eles, havia uns que simulavam corridas de carro. Cada competidor escolhia com que carrinho iria “correr”. Era um de cada cor. Geralmente seis. Colocávamos os car-rinhos na “pista” – sempre muito bem traçada pelos fabricantes de brinquedos –, jogávamos o dado e avançávamos casa por casa, conforme o número tirado.

E como era bom quando a gente ficava na frente! Dávamos sorte ao jogarmos o dado e avançávamos rumo à vitória, crentes que nada iria nos impedir. Só que sempre havia casas pintadas de cor diferente. Eram as casas que continham pegadinhas. Dávamos o azar de parar o carrinho nessas casas e deparávamos com punições do tipo:

1)  Óleo na pista. Fique uma vez sem jogar.

2)  Você fez uma ultrapassagem indevida. Volte três casas.

3)  Pausa para reabastecer. Fique duas vezes sem jogar.

4)  Você derrapou na curva. Volte cinco casas.

E lá íamos nós, antes certos da vitória rápida, sendo obrigados a baixar a bola e aprender que ganhar nem sempre é tão fácil.

Os que pensam que estão juntando bônus-hora ao fazerem o bem somente dentro do centro espírita assemelham-se a crianças que vibravam ao tomarem a dianteira nos referidos joguinhos. 

- Oba! Eu canto no coral! Faço palestra! Aplico passe! Faço parte do grupo de teatro espírita! Aplico estudo! Trabalho na biblioteca! Ajudo na distribuição das cestas básicas! Estou ganhando! Eeeeeeehhhhhh! Estou na frente! Disparado o melhor! Estou praticamente com minha casa pronta em Nosso Lar! Meu carrinho vai ser o primeiro! Eeeeeehhhh! Vrummmm!

Só que, de repente, o dado da vida faz com que nosso possante pare numa casa marcada. Aí, temos de ler o que a penalidade especifica e deparamo-nos com as seguintes sentenças:

Você se diz espírita, mas...

1-  Acha que bandido bom é bandido morto. Volte cinco casas.

2-  Foi grosseiríssimo com o garçom só porque a carne não veio do jeito que você pediu. Volte duas casas.

3-  Acha que a crise ambiental que o planeta enfrenta é invencionice. Mesmo porque você adora consumir para ter status. Fique duas vezes sem jogar.

4-  Estaciona em faixa de pedestre, porta de garagem, vaga para cadeirante. Volte seis casas.

5-  Toda vez que fala sobre a moça negra que frequenta o centro espírita, se refere a ela como “Aquela neguinha”. Volte cinco casas.

6-  Acha perfeitamente natural que haja tanta desigualdade e tanta injustiça no planeta. E acha que sempre deve existir gente pobre. Senão, quem fará a faxina da sua casa e para quem você doará cestas básicas no centro? Fique duas vezes sem jogar.  

7-  Quando alguém fala em oportunidades iguais para todos, você acha que isso é coisa de comunista. Fique três vezes sem jogar.

8-  Disse àqueles dois jovens homossexuais que eles não podiam frequentar a mocidade porque poderiam servir de mau exemplo. Aí, despachou os dois. Volte dez casas.

9-  Só vota em candidato demagogo, não comprometido com a melhoria da coletividade. Fique quatro vezes sem jogar.  

10-         Acha que lugar de mulher é em casa, cuidando do lar, do marido, dos filhos e amando o sabão em pó que lava mais branco. Volte ao início.  

Melhor dizendo: volte a estudar Kardec! Enfie a cara nas Obras Básicas e aprenda a contextualizálas ante a realidade que você vive! E tome ciência, de uma vez por todas, que a proposta da Doutrina Espírita não é formar frequentadores de centro espírita empenhados em trocar tarefas pela construção de uma casinha além do horizonte. Mas sim, cidadãos lúcidos, combativos e comprometidos com a melhoria das condições sociais. Caso contrário, conforme Jesus ensina na Parábola do Festim das Bodas, teremos de deixar a festa por não estarmos com a túnica nupcial.

 

 

     
     

O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita