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Crônicas e Artigos

Ano 10 - N° 468 - 5 de Junho de 2016

IVOMAR SCHÜLER DA COSTA
ivomarcosta@gmail.com
Curitiba, PR (Brasil)

 


Modéstia e ostentação:
análise de um parágrafo 
 

A virtude da modéstia é tratada diretamente no capítulo XIII de O Evangelho segundo o Espiritismo. Além da citação dos versículos, existem sete itens da lavra de Kardec. O item no qual ele dá início à sua análise é o de número 3. Este item inicial tem uma enorme importância, porque é onde ele demarca o tema e o problema a ser analisado. Dentro dele, Kardec começa com um parágrafo altamente sintético, onde introduz o objeto do estudo. O primeiro parágrafo é essencial para entender todos os textos restantes, dele e dos Espíritos, assim como o sentido mais profundo da questão colocada. O coautor da Doutrina Espírita, como exímio escritor que era, redigiu uma pequena e didática síntese inicial, porém muito esclarecedora:
 

“Em fazer o bem sem ostentação há grande mérito; ainda mais meritório é ocultar a mão que dá; constitui marca incontestável de grande superioridade moral, porquanto, para encarar as coisas de mais alto do que o faz o vulgo, mister se torna abstrair da vida presente e identificar-se com a vida futura; numa palavra, colocar-se acima da humanidade, para renunciar à satisfação que advém do testemunho dos homens e esperar a aprovação de Deus. Aquele que prefere ao de Deus o sufrágio dos homens prova que mais fé deposita nestes do que na divindade e que mais valor dá à vida presente do que à futura. Se diz o contrário, procede como se não cresse no que diz” [1].

O parágrafo é baseado em três contraposições principais, na forma de termos antitéticos, que são: modéstia/ostentação, vida presente/vida futura e aprovação humana/aprovação divina. Estas antíteses são conexionadas por um movimento de passagem, no qual, ao se alcançar uma ter-se-á alcançado as outras duas. Assim, quem entendeu a “vida futura” procura praticar a modéstia e por isso busca apenas a “aprovação divina”.

A tese de Kardec é que a modéstia é uma manifestação de superioridade moral, e por decorrência, a ostentação é o seu inverso. O problema principal para o qual o parágrafo aponta é a necessidade da transformação das perspectivas humanas a respeito da vida para que a modéstia seja valorizada, em vez da ostentação. Quer dizer, pode-se entender o conceito de “vida futura” e sua antítese, porém, realizar a mudança de perspectiva, exige uma renovação pessoal.

Antes de entrarmos na análise das posições antitéticas e do movimento de passagem, façamos uma exploração dos principais termos utilizados.

A maioria dos dicionários diz que “ostentação” é o ato ou efeito de ostentar, ou seja, é “trombetear” ou fazer alarde, fazer barulho para chamar a atenção, é pompa, é aparato, é luxo, é vanglória, é magnificência, é exaltação; enfim, ostentar é colocar algo em evidência, com o objetivo de que seja visto por outras pessoas. A não ostentação significa que não se faz alarde ou não se coloca em evidência alguma coisa, embora possa ser vista. Apesar de os termos “não ostentar” e “ocultar” à primeira vista apresentarem conotação semelhante, não são idênticos. Este significa encobrir, tapar, não deixa ver, esconder, sonegar, calar, disfarçar, simular, não revelar. Nele há uma intenção nítida de impedir que algo seja visto, enquanto aquele significa que algo não é escondido, mas também não é exposto ostensivamente. Quem oculta algo certamente não o está ostentando, contudo, a não ostentação de algo não quer dizer que esteja sendo ocultado.

O termo “modéstia”, embora não tenha sido utilizado no parágrafo, inequivocamente é o antônimo de ostentação. O “não ostentar”, bem como o “ocultar a mão que dá”, referem-se, portanto, à modéstia.

Superior é algo que está mais elevado, mais acima, algo de excelente qualidade. Superioridade é a qualidade de algo excelente, algo que atingiu o mais alto nível ou padrão de acordo com um determinado referencial. Superioridade moral é, portanto, a qualidade de quem atingiu o mais alto nível espiritual. Se ocultar a mão que dá é marca incontestável de grande superioridade moral, então, a virtude da modéstia é moralmente superior à ostentação do bem que se faz e, contrariamente, ostentar é marca de inferioridade moral.

Existem termos cujo significado somente é entendido em correlação com outros termos. Por exemplo: pai e filho. Alguém só é pai porque gerou um filho, e alguém só é filho porque foi gerado por um pai. Seria inexplicável logicamente a situação de alguém que fosse pai sem ter um filho. No caso em que aqui tratamos a situação é idêntica aos termos abstrato e concreto. A abstração somente pode ser realizada a partir de algo concreto, de forma que ambos os termos são correlativos.

O termo “concreto” tem sua origem no latim “concretus”, que significa misturado, fundido, composto, combinado, juntado. O concreto de que aqui se trata não é necessariamente a coisa física, corpórea, sólida. A concretude pode ser identificada mesmo no espírito, que não é matéria, pois nele estão inerentes a inteligência, o pensamento, e outras faculdades; isto é, a inteligência está de tal maneira misturada com o espírito que é impossível imaginá-lo sem ela.

Já, “abstração” é termo latino “abstractus” ou “abstrahere”, cujos significados são: retirado, “retirado de”, extraído, isolado, distante. Em lógica, abstrair é o ato de isolar mentalmente as propriedades ou relações de um objeto, da sua essência, para considerar em separado estes elementos que são dados concretamente na realidade. É um desligar-se da realidade concreta para alcançar uma realidade abstrata. Por exemplo, o conceito de cavalo é uma abstração, pois somente considera o que é comum a todos os cavalos, reais, corpóreos. Quando se percebe certa virtude em uma pessoa, e pensa-se somente nesta virtude, sem considerar os aspectos essenciais da pessoa, isto é, o conjunto de traços que compõem e determinam esta pessoa, estar-se-á abstraindo.

Adicionalmente ao seu significado etimológico original, o termo “abstrair” carrega consigo fortes cargas semânticas derivadas de concepções filosóficas variadas, que foram desenvolvidas no decorrer dos tempos. No parágrafo em questão avultam os significados dos termos abstrato e concreto, embora este não tenha sido citado pelo codificador. Concreto, no contexto do parágrafo, seria um sinônimo daquilo que é percebido pelos sentidos, diretamente observado, algo que seria, assim, passageiro, transitório; já, abstrato seria sinônimo de tudo que é permanente, duradouro, imperecível. Da abstração surgem os conceitos, que sintetizam numa unidade a diversidade dos seres[2].

Cabe aqui outro esclarecimento. O termo conceito tem também origem latina: vem de “capio” e de “ceptum”, e quando unidos ao termo “cum” (com) formam o cumceptum, ou “conceito”, o que é captado, apreendido junto. Assim, conceito é a apreensão simples, a primeira operação do Espírito, é o ato pelo qual este capta, cognitivamente, alguma coisa. Mas de onde ele capta? O Espírito capta o que é genérico, o que é comum nos objetos de uma determinada classe e o traduz como um conteúdo. Neste estão implícitas as notas comuns a todos os objetos da classe objeto da atenção. O Espírito realiza a abstração para formar o conceito somente daquilo que há de comum com os outros objetos, quer dizer, somente é abstraída uma determinada propriedade que os outros objetos também possuem para inserir numa classe o conceito, enquanto outras são colocadas de lado. Por exemplo, ao dizer-se que o “carro x” é um automóvel, se leva em conta que ele é possuidor de certos atributos que o colocam na classe dos automóveis, ou seja, dos objetos que têm a capacidade de se automoverem, pois têm uma fonte interna de movimento. Neste caso não podemos afirmar, por exemplo, que uma carroça seja um automóvel, porque a sua fonte de movimento, seu motor, é externa, dependente de um animal, o cavalo.

Os termos “concreto” e “conceito” não foram utilizados por Kardec no parágrafo estudado, no entanto, a compreensão deste ficaria prejudicada caso não os esclareçamos, porquanto fazem parte da rede semântica dos termos que procuramos explicitar.

Identificação é o processo de encontrar pontos de igualdade entre pelo menos dois objetos; é também reconhecer alguma coisa como pertencendo à determinada classe. No que tange ao plano existencial do ser humano, a identificação remete à questão de determinar quem somos? Quem sou eu? E, quem é o outro? Outros significados para o termo, embora incomuns, no plano psicológico, seriam o de assimilação e o de integração. Haverá identificação quando, por exemplo, um indivíduo assimila determinada ideia; o individuo está integrado numa ideia quando a compreende completamente e passa a agir a partir dela.

Vida presente e vida futura são dois conceitos muito utilizados por Kardec e de suprema importância para entender todo o significado moral da necessidade da modéstia. Na verdade são dois termos-chave. Para Kardec, “Vida Futura” é a vida após a morte, e “Vida Presente” é a vida na matéria, vida corpórea.

O conceito de “Vida Futura”, segundo Kardec, é o eixo sobre o qual giram os ensinos de Jesus. Este conceito está firmemente assentado como princípio cardeal, na seguinte passagem:


Por essas palavras Jesus claramente se refere à vida futura, que ele apresenta, em todas as circunstâncias, como a meta a que a Humanidade irá ter e como devendo constituir objeto das maiores preocupações do homem na Terra. Todas as suas máximas se reportam a esse grande princípio. Com efeito, sem a vida futura nenhuma razão de ser teria a maior parte dos seus preceitos morais, donde vem que os que não creem na vida futura, imaginando que ele apenas falava na vida presente, não os compreendem, ou os consideram pueris.

Esse dogma pode, portanto, ser tido como o eixo do ensino do Cristo, [...]. É que ele tem de ser o ponto de mira de todos os homens; só ele justifica as anomalias da vida terrena e se mostra de acordo com a justiça de Deus.[3] (Todos os grifos são nossos.)

Podemos ver nesta citação que a “vida presente” é a “vida terrena”, a vida do homem enquanto está encarnado, na Terra. Em outros momentos Kardec se refere à terrena também como “vida corpórea”. Contudo, a vida futura é o alvo (ponto de mira) para o qual os homens devem dirigir suas atenções.

A importância do conceito “vida futura” reside na sua posição de “grande princípio”, ou seja, o princípio-eixo, em torno do qual todos os outros se movimentam. É o princípio com os quais os ensinos de Jesus estão vinculados, pois sem ele todos os preceitos morais exarados pelo Mestre não teriam sentido. É este o motivo pelo qual Kardec afirma que a vida futura tem de ser o alvo das atenções dos homens enquanto entes encarnados. Somente com o entendimento deste princípio é que os preceitos morais se tornam claros. Evidente, desse modo, que o entendimento do preceito moral da modéstia não teria sentido sem o perfeito entendimento do conceito de “vida futura”.

Substancialmente consideradas, Kardec deixa transparecer que há uma tensão entre a “vida terrena” e a “vida futura”, tensão resultante da atribuição de valor positivo a uma e não a outra. Isso decorre, em parte, de que na vida terrena temos a predominância da transitoriedade de quase tudo, da fugacidade, da impermanência, enquanto na vida futura prepondera a permanência. Portanto, dar atenção à vida terrena será valorizar o transitório, ao passo que dirigir e fixar a atenção à vida futura será valorizar o que é permanente. Como a vida permanente é somente a futura, e onde nossa consciência se desnuda completamente, olhar atentamente para ela, e compreendê-la, desde a vida presente, faz com que mudemos nossa maneira de agir. Todavia, isso requer ingentes esforços.

A última antítese é a que envolve o agente da aprovação, se são os homens ou a divindade. Testemunho é a declaração de uma testemunha. Quando Kardec utiliza o termo “Testemunho dos homens” refere-se à aprovação social dada a um ato de bondade executado por uma pessoa qualquer. Este termo contrapõe-se ao de “Aprovação de Deus”. De uma maneira simplificada, podemos afirmar que a aprovação divina corresponde à aprovação, pela consciência moral do homem, dos atos praticados. Apesar de parecer menos importante, esta distinção desempenha uma função relevante, porquanto estão implícitos nestes termos a questão do lugar dos nossos valores. Dependendo de quem esperamos aprovação aos nossos atos, manifestamos nossa visão da vida, e por decorrência, nossa posição na escala moral.

A satisfação moral é uma consequência dos atos morais que praticamos. Queremos sempre encontrar satisfação neles. Na verdade, esperamos pela satisfação como um resultado imediato dos atos supostamente bons que praticamos. A questão que a envolve é que a aprovação social é quase imediata, mas nem sempre reconhece o verdadeiro mérito, enquanto a aprovação divina pode tardar além da nossa vontade de esperar, porém está sempre vinculada ao mérito verdadeiro. No caso da aprovação divina há um hiato de tempo entre o ato e a satisfação plena. Nossa imperfeição torna-nos ansiosos pela aprovação da sociedade, o que nos leva à ostentação da beneficência praticada, enquanto a satisfação plena somente será alcançada quando chegarmos à vida futura. Com nossa consciência livre das restrições da matéria poderemos analisar com mais rigor o quanto nossos atos foram bons ou não, e usufruir com mais vigor a satisfação decorrente da realização do bem.

Explicados cada um dos termos antitéticos, daremos continuidade em outra oportunidade à análise deste parágrafo, explicitando os movimentos internos dos conceitos.   


 

[1] Kardec, Allan. O Evangelho segundo o Espiritismo. Cap. XIII. Fazer o bem sem ostentação – item 3. p. 220. Ed. 100. Tradutor: Guillon Ribeiro. FEB. Brasília, DF.

[2] Muito mais teríamos a dizer sobre este tema. Seria interessante que outros estudiosos pesquisassem os diversos significados dos termos concreto e abstrato e deslindassem a carga semântica que cada filosofia lhes atribui. Por exemplo, Platão “aumentava” a realidade da entidade abstraída, enquanto Aristóteles a “diminuía”. Na filosofia tomista distingue-se entre abstração total e abstração formal. Segundo Ferrater Mora, os escolásticos atuais distinguem três graus da abstração formal. A par do sentido em que Kardec os utiliza, sabemos que no sentido cristão tradicional a abstração estaria relacionada ao desprezo pela “carne”, ou seja, pelo corpo físico e pelos seus sentidos. Será que no Espiritismo o significado seria igual? O presente artigo não comporta tal estudo.

[3] Kardec, Allan. O Evangelho segundo o Espiritismo. Cap. II. Meu reino não é deste mundo.  A vida futura – item 2. p. 67. Ed. 100. Tradutor: Guillon Ribeiro. FEB. Brasília, DF.



 


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