A travessia do tempo
Há fábulas que tocam mais nossos corações que textos
compactos. Dormem nas camadas da memória espiritual da
Humanidade, atravessam desertos de silêncio e ressurgem
quando a sede de sentido pede uma nova fonte. Existe uma
fábula muito especial que embalou os antigos mestres
sufis e que transformamos em poema. É uma dessas
narrativas que não pertencem a um povo, mas à alma
universal. Nela, o curso de um regato torna-se o espelho
do destino humano, que busca a plenitude e teme
dissolver-se naquilo que o transcende.
O pequeno arroio simboliza o espírito em marcha, nascido
das montanhas da Vida, avançando por vales e provações,
até deparar-se com o deserto das transformações finais.
É nesse ponto que a razão se exaure e apenas a confiança
pode prosseguir. O ensinamento é claro: nenhum ser
alcança a eternidade conservando-se imóvel em suas
margens antigas. É preciso deixar-se elevar pelo vento
divino – o sopro que transmuta a matéria em essência, a
forma em consciência, o rio em nuvem.
Há, porém, uma resistência ancestral em nós: o medo de
perder o nome, a forma, o “eu” limitado. O regato, como
cada alma humana, quer preservar sua identidade,
esquecendo que a verdadeira identidade é fluida, não
fixa; é essência, não aparência. Assim, o deserto –
imagem da prova e da revelação – fala com a voz da
sabedoria eterna: “Serás, sem o seres, e é este o
sentido” (diz um dos versos). É a tradução poética da
lei da reencarnação: morrer para renascer, mudar para
permanecer, evoluir para reencontrar-se.
Essa parábola dialoga com o pensamento espírita de
maneira magistral. Allan Kardec nos ensinou que o
espírito progride por metamorfoses sucessivas, e o conto
sufi, em linguagem simbólica, ilustra com felicidade
essa mesma lei. O que o vento faz com o regato, Deus
realiza com a alma: Ele a conduz pelas atmosferas da
experiência, até que desça novamente, em nova paisagem,
para continuar o aprendizado. Assim, a fábula das areias
não é apenas uma história antiga: é a própria viagem da
consciência humana rumo ao Infinito.
A FÁBULA DAS AREIAS
Provindo da fonte, em longínquas montanhas,
Pequeno regato, cantante e esperto,
Havendo passado por terras estranhas,
Alcança as areias, por fim, do deserto.
E assim como havia vencido sem peias
A mil obstáculos, não quis parar nelas;
Entrando em contato, porém, com as areias,
Sentiu suas águas sorvidas por elas.
Olhando o regato a extensão arenosa,
Sabia que ir além dela é o destino.
Mas como? Foi quando uma voz misteriosa
Falou-lhe, da areia, num tom sibilino:
– “O vento atravessa o deserto até o fim;
Da mesma maneira tu podes fazê-lo.”
Retruca o regato não ser bem assim,
Pois quando investia, embora com zelo,
De encontro às areias, era absorvido;
Que o vento podia voar e, por isso,
Cruzava o areal, não importa o sentido.
Responde o deserto ao regato insubmisso:
– “Não podes fazê-lo abrindo caminho
De forma normal, e parar é um perigo:
Te tornas um charco ocioso e daninho...
Permite que o vento te leve consigo!
– “Mas como é que pode se dar esse fato?”
– “Deixando-te ser absorvido no vento...”
Não era aceitável a ideia ao regato:
Em tempo nenhum lhe ocorrera esse evento!
Deixar que seu nome e seu ser senciente
Se percam num lance audacioso e incerto,
Talvez sem jamais os haver novamente?
Sereno, porém, acrescenta o deserto:
– “O vento executa essa nova função:
Ele ergue um arroio em total fluidez,
Transporta-o através da arenosa extensão
E o deixa cair como chuva outra vez
Na encosta oriental de alterosa montanha,
E ali ele volta a ser novo regato.”
– “E eu posso saber se tão grande façanha
Deveras será correlata ao relato?”
– “É assim; se não creres, se falta-te apoio,
Serás lamaçal, um regato falido.”
– “Serei outra vez o mesmíssimo arroio?”
– “Serás, sem o seres, e é este o sentido:
“A parte essencial é levada e, distante,
De novo se torna em graciosa corrente;
Desejas ficar tal qual és neste instante,
Porque desconheces teu ser transcendente.”
Ouvindo tal coisa, lhe vêm pensamentos,
Uns ecos longínquos de tempos transatos,
Nos quais se sentia nas asas dos ventos,
Pairando, aerizado, entre nimbos e estratos...
Então o regato, sentindo-se bem,
Ergueu seu vapor e, nos braços da aragem,
Deixou-se levar pelo azul, muito além,
Caindo suave em nova paisagem.
E o novo riacho, auscultando a essência
Do ser, concluiu – pois a dúvida o ajudou,
Gravando os detalhes daquela experiência:
– “Agora eu já sei na verdade quem sou.”
Estava aprendendo... As areias, por via
Das dúvidas, diziam saber toda a manha,
Pois viam tal fato ocorrer todo dia,
Porque se estendiam do rio à montanha.
Tal é o salto quântico, a etérea avenida...
Por isso se diz que já se encontra escrito
Na areia o caminho do curso da vida,
Que leva a criatura a seu Lar, no Infinito.
*
Nota do autor: versificação de um antigo
conto sufi.
Mário Frigéri é poeta, escritor, autor e
youtuber com a mente e o coração voltados para o
esplendor do Evangelho e da Doutrina Espírita.
Campinas/SP.
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