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por Mário Frigéri

 

A travessia do tempo


Há fábulas que tocam mais nossos corações que textos compactos. Dormem nas camadas da memória espiritual da Humanidade, atravessam desertos de silêncio e ressurgem quando a sede de sentido pede uma nova fonte. Existe uma fábula muito especial que embalou os antigos mestres sufis e que transformamos em poema. É uma dessas narrativas que não pertencem a um povo, mas à alma universal. Nela, o curso de um regato torna-se o espelho do destino humano, que busca a plenitude e teme dissolver-se naquilo que o transcende.

O pequeno arroio simboliza o espírito em marcha, nascido das montanhas da Vida, avançando por vales e provações, até deparar-se com o deserto das transformações finais. É nesse ponto que a razão se exaure e apenas a confiança pode prosseguir. O ensinamento é claro: nenhum ser alcança a eternidade conservando-se imóvel em suas margens antigas. É preciso deixar-se elevar pelo vento divino – o sopro que transmuta a matéria em essência, a forma em consciência, o rio em nuvem.

Há, porém, uma resistência ancestral em nós: o medo de perder o nome, a forma, o “eu” limitado. O regato, como cada alma humana, quer preservar sua identidade, esquecendo que a verdadeira identidade é fluida, não fixa; é essência, não aparência. Assim, o deserto – imagem da prova e da revelação – fala com a voz da sabedoria eterna: “Serás, sem o seres, e é este o sentido”  (diz um dos versos). É a tradução poética da lei da reencarnação: morrer para renascer, mudar para permanecer, evoluir para reencontrar-se.

Essa parábola dialoga com o pensamento espírita de maneira magistral. Allan Kardec nos ensinou que o espírito progride por metamorfoses sucessivas, e o conto sufi, em linguagem simbólica, ilustra com felicidade essa mesma lei. O que o vento faz com o regato, Deus realiza com a alma: Ele a conduz pelas atmosferas da experiência, até que desça novamente, em nova paisagem, para continuar o aprendizado. Assim, a fábula das areias não é apenas uma história antiga: é a própria viagem da consciência humana rumo ao Infinito.


A FÁBULA DAS AREIAS

 

Provindo da fonte, em longínquas montanhas,

Pequeno regato, cantante e esperto,

Havendo passado por terras estranhas,

Alcança as areias, por fim, do deserto.

 

E assim como havia vencido sem peias

A mil obstáculos, não quis parar nelas;

Entrando em contato, porém, com as areias,

Sentiu suas águas sorvidas por elas.

 

Olhando o regato a extensão arenosa,

Sabia que ir além dela é o destino.

Mas como? Foi quando uma voz misteriosa

Falou-lhe, da areia, num tom sibilino:

 

– “O vento atravessa o deserto até o fim;

Da mesma maneira tu podes fazê-lo.”

Retruca o regato não ser bem assim,

Pois quando investia, embora com zelo,

 

De encontro às areias, era absorvido;

Que o vento podia voar e, por isso,

Cruzava o areal, não importa o sentido.

Responde o deserto ao regato insubmisso:

 

– “Não podes fazê-lo abrindo caminho

De forma normal, e parar é um perigo:

Te tornas um charco ocioso e daninho...

Permite que o vento te leve consigo!


– “Mas como é que pode se dar esse fato?”

– “Deixando-te ser absorvido no vento...”

Não era aceitável a ideia ao regato:

Em tempo nenhum lhe ocorrera esse evento!

 

Deixar que seu nome e seu ser senciente

Se percam num lance audacioso e incerto,

Talvez sem jamais os haver novamente?

Sereno, porém, acrescenta o deserto:

 

– “O vento executa essa nova função:

Ele ergue um arroio em total fluidez,

Transporta-o através da arenosa extensão

E o deixa cair como chuva outra vez

 

Na encosta oriental de alterosa montanha,

E ali ele volta a ser novo regato.”

– “E eu posso saber se tão grande façanha

Deveras será correlata ao relato?”

 

– “É assim; se não creres, se falta-te apoio,

Serás lamaçal, um regato falido.”

– “Serei outra vez o mesmíssimo arroio?”

– “Serás, sem o seres, e é este o sentido:

 

“A parte essencial é levada e, distante,

De novo se torna em graciosa corrente;

Desejas ficar tal qual és neste instante,

Porque desconheces teu ser transcendente.”

 

Ouvindo tal coisa, lhe vêm pensamentos,

Uns ecos longínquos de tempos transatos,

Nos quais se sentia nas asas dos ventos,

Pairando, aerizado, entre nimbos e estratos...

 

Então o regato, sentindo-se bem,

Ergueu seu vapor e, nos braços da aragem,

Deixou-se levar pelo azul, muito além,

Caindo suave em nova paisagem. 


E o novo riacho, auscultando a essência

Do ser, concluiu – pois a dúvida o ajudou,

Gravando os detalhes daquela experiência:

– “Agora eu já sei na verdade quem sou.”

 

Estava aprendendo... As areias, por via

Das dúvidas, diziam saber toda a manha,

Pois viam tal fato ocorrer todo dia,

Porque se estendiam do rio à montanha.

 

Tal é o salto quântico, a etérea avenida...

Por isso se diz que já se encontra escrito

Na areia o caminho do curso da vida,

Que leva a criatura a seu Lar, no Infinito.


*

 

Nota do autor: versificação de um antigo conto sufi.

 

Mário Frigéri é poeta, escritor, autor e youtuber com a mente e o coração voltados para o esplendor do Evangelho e da Doutrina Espírita. Campinas/SP.


 
 

     
     

O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita