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por Sandro Drumond Brandão

 

Caridade para com os criminosos e a legitimação social da violência


Ensinam os Espíritos que o mal é sempre o mal, qualquer que seja a posição do homem[1]. É dizer que o mal não perde a sua qualidade mesmo nas hipóteses em que sua prática seja necessária. O que é mutável é o grau de sua reprovabilidade, sendo a responsabilização do homem mensurada pela extensão de sua informação.

Como assevera Kardec[2]:

“Quem quer que conheça os preceitos do Cristo e não os pratique, é certamente culpado;

(...)

Aquele, portanto, que não aproveita essas máximas para melhorar-se, que as admira como coisas interessantes e curiosas, sem que lhe toquem o coração, que não se torna nem menos vão, nem menos orgulhoso, nem menos egoísta, nem menos apegado aos bens materiais, nem melhor para seu próximo, mais culpado é, porque mais meios tem de conhecer a verdade.”

Dentre as exortações evangélicas chamamos a atenção para a recomendação de não nos opormos ao mal que, se deseja nos tomar a túnica, devemos dar-lhe também o manto[3].

O Nazareno nos convida a embainhar a espada diante da malevolência do outro, não sob a ótica da covardia (a estender o pescoço ao ofensor) como imaginaria o orgulhoso, mas a condenar a vingança, pois, não se deve pagar o mal com o mal.

Neste contexto, nos parece que a sociedade contemporânea com relação aos criminosos tem adotado atitude diversa da informada pela moral cristã, ao legitimar a violência como resposta justa da vítima e do Estado contra o infrator.

A sugestão social, em um cenário de medo construído principalmente pela mídia, que fomenta o imaginário coletivo a respeito do que deve ser visto como crime; quem é o criminoso e a solução que deve ser tomada, é a declaração de guerra à criminalidade tendo o Estado, a vítima e seu grupo como solucionadores do problema.

Sob este entendimento o criminoso sofre do Estado e da sociedade, com a benção da população, cruel processo de despersonalização e objetificação, através da mitigação de direitos e liberdades, reafirmando que os fins justificam os meios.

O réprobo, ser histórico, produto e produtor no cenário sociocultural, tem a sua individualidade negligenciada pelo aparelho estatal e pelo organismo coletivo, que o reposicionam nas margens das relações, restringindo-lhes os acessos às trocas sociais fundamentais para a sua reforma e progresso.

Michel Misse, festejado pesquisador e estudioso da área de crime e violência no Brasil, a esse respeito afirmou:

“Em todas as instâncias de apuração dos “autos de resistência” notou-se um consenso sobre a legitimidade de se matar “bandidos”, estando o problema dos autos de resistência” na morte dos chamados “inocentes”. Há um senso comum generalizado, não apenas entre policiais, mas entre atores das demais instituições do Sistema de Justiça Criminal e na opinião pública como um todo, de que matar um criminoso não constitui crime, pois se acredita que eles “merecem” morrer. A crença na impunidade vinculada ao fantasma da violência urbana e ao descrédito na capacidade punitiva do Estado, fundamenta o apoio de significativa parcela da população à prática do extermínio de criminosos, expresso no lema “bandido bom é bandido morto”. (MISSE et al. 2011, p. 115)”

A assertiva bandido bom é bandido morto representa a atitude da sociedade contemporânea em relação ao delinquente a lhe revelar verdadeira repudia e, por conseguinte, legitimar um tratamento degradante e inferiorizado a ele dispensado.

O professor Guilherme de Souza Nucci, jurista brasileiro, assevera que[4]:

“(...) o longo dos anos, pudemos perceber que a referida frase é um grito de desprezo de uns em relação a outros, em atitude puramente maniqueísta, demonstrativa de que os bons são os honestos e não cometem crimes; os maus são os bandidos da sociedade, autores de delitos dos mais diversos tipos. Há um interesse – consciente ou inconsciente – para separar a sociedade em grupos, em turmas, em comunidades estanques ou nichos estratificados. Eis o mal da discriminação, que provoca a segregação.”

A sociedade ainda não se depurou da barbárie, eis que a vingança[5], sob a roupagem de proteção e higienização de seus quadros, é autorizada como reação justificada à conduta criminosa.

Em muitas ocasiões se vê pessoas comuns e supostamente bem-intencionadas, cometendo crimes mais bárbaros do que os praticados pelos criminosos que desejavam punir. Ocorrências como o vigilantismo e o linchamento surgem como instrumento de um justiçamento popular.

José de Souza Martins, estudando casos de linchamento no Brasil, reforça a selvageria humana ao indicar que em muitas ocasiões o propósito dos linchadores é mais do que matar o linchado (sua vítima) [6].

Trata-se de impor ao criminoso expiação e suplício reais ou, no caso do que já está morto, expiação e suplício simbólicos, como é próprio dos ritos de vingança e sacrifício. E, além disso, eliminá-lo simbolicamente como pessoa.

Essas práticas indicam que estamos em face de rituais de exclusão ou desincorporação e dessocialização de pessoas que, pelo crime cometido, revelaram-se incompatíveis com o gênero humano, como se tivessem exposto, por meio dele, que nelas prevalece a condição de não-humanas. As mutilações e queimas de corpos praticadas nesses casos são desfigurações que reduzem o corpo da vítima a um corpo destituído de características propriamente humanas. São, portanto, rituais de desumanização daqueles cuja conduta é socialmente imprópria.

Eis a lógica contemporânea: Criminoso é quem comete o crime primeiro. Aquele que se vinga é a vítima criminosa, que será sempre vítima, pois, sua resposta (delito/vingança) é “culpa” do primeiro autor, que é mais malfazejo do que ela, sua “vítima” (nunca ofensor)[7].

É moralmente defeso advogar em defesa da violência contra o infrator penal sob a orientação ideológica de que bandido bom é bandido morto, mesmo porque “(...) se amais os que vos amam, que recompensa tendes?”[8].

Nós espíritas não podemos olvidar que por detrás de todos os ensinos de Jesus há um princípio geral, segundo o qual devemos proceder para com os outros como queiramos que os outros procedam conosco. Da mesma forma se dá com o tema caridade para com os criminosos tratado no Evangelho Segundo o Espiritismo pelo Espírito de Isabel de França[9]:

“Completa fraternidade deve existir entre os verdadeiros seguidores da sua doutrina. Deveis amar os desgraçados, os criminosos, como criaturas, que são, de Deus, às quais o perdão e a misericórdia serão concedidos, se se arrependerem, como também a vós, pelas faltas que cometeis contra sua Lei. Considerai que sois mais repreensíveis, mais culpados do que aqueles a quem negardes perdão e comiseração, pois, as mais das vezes, eles não conhecem Deus como o conheceis, e muito menos lhes será pedido do que a vós.”

De nossa natureza gregária e de nossa atribuição comum de auxiliar o progresso um do outro, surge sublime dívida de amor que nos conduz ao exercício da humildade acolhedora e da compreensão inclusiva. Estas virtudes deverão direcionar o tratamento a ser dispensado aos criminosos, filhos de nosso Pai e instrumentos de Seu ensino ministrado a todos nós.

Acautelemos o coração das reproduções hodiernas do segregacionismo farisaico, que não tolerava o amor do Cristo pelos publicanos e as pessoas de má vida, figuras marginalizadas na sociedade da época.

Ajamos com o criminoso recordando que há muitas condutas do homem que, apesar de passarem ao largo de suas leis, são verdadeiros crimes perante as de Deus.

Referências bibliográficas:

DIAS, Haroldo Dutra (Trad.), 1971- O novo testamento, tradução de Haroldo Dutra Dias. – 1. ed. – 11. imp. – Brasília: FEB, 2020.

KARDEC Allan. O Evangelho segundo o Espiritismo. Trad. Guillon Ribeiro. Brasília: FEB, 2018.

KARDEC Allan. O livro dos espíritos. Trad. Guillon Ribeiro. Brasília: FEB, 2013.


 

[1] KARDEC Allan. O livro dos espíritos. Trad. Guillon Ribeiro. Brasília: FEB, 2013. P. 301.

[2] KARDEC Allan. O Evangelho segundo o Espiritismo. Trad. Guillon Ribeiro. Brasília: FEB, 2018. P. 249.

[3] Mt, 5:39-40.

[4] LINK-1 - Acesso 16.02.2024.

[5] “Vingar-se é, bem o sabeis, tão contrário àquela prescrição do Cristo: “Perdoai aos vossos inimigos”, que aquele que se nega a perdoar não somente não é espírita como também não é cristão. A vingança é uma inspiração tanto mais funesta, quanto tem por companheiras assíduas a falsidade e a baixeza.” Júlio Olivier. (Paris, 1862.) – KARDEC Allan. O Evangelho segundo o Espiritismo. Trad. Guillon Ribeiro. Brasília: FEB, 2018. P. 171

[6] LINK-2 Acesso: 16.02.24

[7] Aqui recordamos de interessante assertiva do então professor e diretor da Faculdade de Filosofia, da Universidade Federal de Goiás (UFG), Adriano Correia: “para evitar a barbárie, é melhor a gente correr o risco de inocentar um criminoso do que o risco de culpar de morte um inocente”. LINK-3

[8] Mt 5:46

[9] KARDEC Allan. O Evangelho segundo o Espiritismo. Trad. Guillon Ribeiro. Brasília: FEB, 2018. P. 162


 

     
     

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 Revista Semanal de Divulgação Espírita