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por Marcelo Teixeira

 

Nós: os filhos do homem

Na rua onde moro, há uma casa em reformas. Uma casa, aliás, que já vinha precisando de uma ajeitada faz tempo. Na verdade, é uma guaribada que ela está levando: está sendo pintada (entre outros pequenos reparos) para ser alugada. Espaçoso, com uma boa entrada de garagem e uma residência menor aos fundos, o imóvel, se de fato fosse passar pela reforma que imagino – daquelas dos programas de TV por assinatura –, ficaria um espetáculo! Mas não é o caso.

Passando em frente à casa numa manhã, puxei conversa com Milton, o pedreiro que dava um trato na fachada. Papeei com ele sobre o trabalho que estava sendo feito. Ele disse que a casa ficaria no jeito para ser alugada e que era especialista em reformar casas. Foi então que fiz duas perguntas que sempre quis fazer a um pedreiro: “E a sua casa? Você tem casa própria?” A resposta foi negativa. Milton, como grande parte da população socialmente menos favorecida, mora de aluguel.

Aprofundei a conversa e questionei se ele gostaria de ter uma residência para chamar de sua e, é claro, ele disse sim, com o olhar cheio de sonhos. Daí, prestei mais atenção ao homem que conversava comigo, tão grandioso em sua simplicidade de gente honesta e batalhadora. Negro (como boa parte de seus colegas de ofício relegados a uma espécie de racismo profissional que os confina a funções braçais) e com apenas dois dentes, Milton é o retrato do brasileiro que, apesar dos pesares, não deixa a peteca cair e vai levando a vida como pode, embora ela se apresente extremamente árdua.

Perguntei se ele era casado e se a mulher trabalhava para ajudar nas despesas. A resposta me entristeceu: a esposa é cadeirante e ele cuida dela. Prossegui dizendo que viver de aluguel não é fácil. E disse por experiência própria, pois meus pais, antes de construírem a casa onde resido, moraram em casa alugada por um bom tempo. Milton, então, observou que não é nada fácil pôr a cabeça no travesseiro todos os dias pensando se haverá ou não dinheiro para pagar o próximo aluguel.

Saí chateado daquela conversa e morrendo de vontade de ser milionário para dar a Milton uma casa de presente num local de fácil acesso e também lhe proporcionar um implante dentário top de linha para que ele tivesse o ensejo de sorrir e que o sorriso externasse a alegria interior de finalmente morar no próprio teto. Entristece-me sobremaneira a forma precária em que grande parte da população brasileira vive.

Esse episódio me fez lembrar uma música que jamais ouvi gravada, mas que minha tia idosa, que mora comigo, sempre cantarola e sobre a qual volta e meia conversamos. Chama-se “O pedreiro Waldemar”, foi composta por Wilson Batista e Roberto Martins e imortalizada na voz do sambista Blecaute (1919-1983):
 

“Você conhece o pedreiro Waldemar?
Não conhece?
Mas eu vou lhe apresentar
De madrugada toma o trem da Circular
Faz tanta casa e não tem casa pra morar
Leva marmita embrulhada no jornal
Se tem almoço, nem sempre tem jantar
O Waldemar, que é mestre no ofício
Constrói um edifício
E depois não pode entrar”.

 

Essa canção – na verdade, uma marchinha de carnaval – é bem o retrato da mentalidade escravagista que infelizmente ainda grassa pelo país. E também é a fiel expressão de como o capitalismo selvagem no qual ainda vivemos tira o sossego da gente. Afinal, somos reféns de banqueiros, juros escorchantes, financiamentos, parcelamentos, baixos salários, trabalho incerto, boletos, tributos, parcas condições de saúde e educação, lazer quase nulo e, no caso do assunto em questão, muitas pessoas sem condições de ter a tão sonhada casa própria. E muitas vezes, quando conseguem ter um teto, será num local de difícil acesso e sujeito a deslizamentos e enchentes, como é tão comum em terras brasileiras.

Já pensaram o que é, para os pedreiros, construírem casas e apartamentos nos quais nunca irão morar? E quando digo construir, falo em fazer a fundação, erguer paredes, emboçar, pintar, colocar pisos e revestimentos... Tudo isso para que outras pessoas – brancas, em sua maioria – habitem as novas moradas com todo o conforto. Enquanto isso, Waldemar e seus colegas voltarão para as casinhas humildes e provavelmente alugadas. E dormirão inquietos, preocupados com aluguel, conta de luz e afins, já que, como é costumeiro nesse tipo de função, trabalham por temporada.
Fica difícil recostar a cabeça no travesseiro e dormir tranquilo. E isso, infelizmente, não é prerrogativa dos Miltons e Waldemares. Muitos dos habitantes do Brasil estão sujeito às idas e vindas do capitalismo e suas garras, que deixam todos na incerteza de ter trabalho digno e remunerado, comida na mesa e contas em dia. Isso sem falar na sanha do mercado financeiro, que empresta dinheiro a juros abusivos e toma de volta tudo e mais um pouco caso não consigamos saldar o financiamento da casa ou o empréstimo.

Tudo isso traz à tona do meu pensamento uma frase de Jesus que está no Evangelho de Mateus. É um dito no qual sempre penso quando reflito sobre este mundo socialmente injusto: “As raposas têm suas tocas e as aves do céu têm seus ninhos, mas o Filho do homem não tem onde repousar a cabeça”.

Jesus vivia peregrinando pelas cidades. Por isso, não tinha morada fixa. Sempre se hospedava em casa de amigos. Diferentemente das raposas e das aves, que têm seus covis e ninhos, Jesus não tinha onde repousar a cabeça. Essa afirmação é uma resposta ao que diz um escriba, homem especializado no estudo da Lei de Moisés. Aparentemente empolgado com a mensagem de vida eterna trazida pelo Cristo, o escriba havia dito ao Rabi que o seguiria aonde quer que ele fosse. Jesus, então, ressalta que a vida material dele era incerta; ele dependia da boa vontade alheia para ter onde se alimentar e repousar.

Mas como, à época do Cristo, o povo judeu vivia sob o jugo de Roma, que lhe impingia pesadas cargas tributárias, Jesus provavelmente aproveitou a situação para jogar uma indireta e afirmar que todas as pessoas são filhas do homem, tal qual ele, e, por essa razão, têm direito a ter uma vida materialmente estável, sem exploração, cobranças injustas que enriquecem os poderosos e tornam a população cada vez mais pobre. Uma vida na qual todos possam ter o ensejo de descobrir os talentos que possuem e colocá-los, com satisfação, a serviço do bem comum, enriquecendo a todos de qualidade de vida material e emocional.

Para fundamentar o que digo e também para trazer esperança ao meu coração sedento de justiça social, abro O Livro dos Espíritos, de Allan Kardec e vou direto ao capítulo 11 da terceira parte. Ele se chama ‘Lei de justiça, amor e caridade’. Logo na questão que abre o tema (873), Kardec indaga se “O sentimento de justiça está em a natureza ou é resultado de ideias adquiridas”. Os benfeitores espirituais são rápidos na resposta: “Está de tal modo em a natureza, que vos revoltais à simples ideia de uma injustiça”.

Talvez tenha sido por isso que o fato de Milton não ter casa própria e nem uma dentição completa e sadia me angustiou. Acho extremamente injusto um homem viver construindo e reformando casas alheias e ele mesmo não ter condições de ter a sua própria casa e nem de se cuidar. É esse o senso de justiça que deve ser tão natural a todos os homens.

Mais adiante, na questão 876, Kardec pergunta qual seria a base da justiça, de acordo com os critérios da lei natural, ou seja, a lei de Deus. Resposta: “Disse o Cristo: Queira cada um para os outros o que quereríeis para si mesmo”.

Segundo o relatório “Desigualdade S.A”, publicado em 2024 pela Oxford Committee for Famine Relief (Oxfam) – tradução: Comitê de Oxford para o Alívio da Fome –, os extremamente ricos criaram um poder monopolista muito grande. Tudo em nome de lucros cada vez mais exorbitantes, o que aumenta exponencialmente as desigualdades sociais e vai tornar ainda mais difícil a vida dos menos favorecidos. Isso significa que pessoas como Milton tendem a ter uma vida cada vez mais pautada em sacrifícios.

Para reverter esse quadro de ganância, egoísmo e desamor, urge nos esforçarmos para construir uma sociedade cada vez menos competitiva, consumista e acumuladora. Precisamos de um mundo mais colaborativo e equilibrado para que Milton, Waldemar, eu, você e todos os filhos e filhas do homem tenham onde deitar a cabeça. É isso que Jesus afirma quando declara que devemos querer para os outros o que queremos para nós próprios. Afinal, o mundo e suas benesses são de todos, e não de uma minoria endinheirada.

Bibliografia:

1. KARDEC, Allan – O Livro dos Espíritos – 60ª edição, 1984, Federação Espírita Brasileira (FEB), Brasília, DF.

2. OXFAM – Desigualdade S.A. – Como o poder corporativo divide nosso mundo e a necessidade de uma nova era de ação pública. Disponível em: www.oxfam.org.br


 
 

     
     

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 Revista Semanal de Divulgação Espírita