Internacional
por Jorge Gomes

Ano 17 - N° 849 - 12 de Novembro de 2023

 

 

Alfred Russel Wallace: investigador da mediunidade


O ano de 2023 acolheu diversas atividades que relembraram Alfred Russel Wallace um pouco por todo o mundo. Estava em causa celebrar o 200.º aniversário do seu nascimento, que teve lugar em Usk, no País de Gales, a 8 de janeiro de 1823.

Russel Walace foi um notável naturalista, antropólogo, geógrafo e investigador dos fenómenos mediúnicos.

Numa breve síntese biográfica, deve ser

dito que nasceu numa família numerosa e, como não tinha património material, vivia do seu trabalho. O pai desencarnou e, ainda jovem, vai auxiliar o irmão mais velho num importante contrato de cartografia dos terrenos rurais. Mais tarde é professor na cidade de Leicester, seguindo-se aos 25 anos de idade uma viagem à Amazónia (1848-1852) já na condição de coletor de espécimes para museus de história natural, universidades e colecionadores privados. Este trabalho não resultou bem, simplesmente porque o navio em que regressava sofreu um incêndio e naufragou, perdendo-se praticamente todo o material recolhido. Esteve à deriva uma dezena de dias, mas acabou por ser salvo. Anos mais tarde escreve um livro muito interessante sobre esta viagem à Amazónia.

Entre 1854 e 1862 Russel Wallace desenvolve a mesma atividade no chamado arquipélago malaio, hoje a região tropical da Indonésia, onde permanece 8 anos. É nesta fase da vida que involuntariamente se torna co-autor, com Charles Darwin, da corajosa Teoria da Origem das Espécies.

De regresso à Grã-Bretanha, aos 42 anos de idade descobre a veracidade dos fenómenos mediúnicos, tornando-se um importante investigador e autor de vários livros, até que desencarna a 7 de novembro de 1913, em Broadstone, igualmente no Reino Unido.

 

Oito anos na Ásia tropical e o ensaio enviado a Darwin

A viagem de trabalho ao “Arquipélago Malaio”, palavras constantes do título do livro que escreveu a esse respeito, teve também em vista recolher espécimes de seres vivos exóticos para um intermediário vender coleções na Europa a universidades, museus e outros interessados.

Nesse período, coletou mais de 125660 espécimes – insetos, répteis, anfíbios, aves, mamíferos – e visitou cerca de 25 mil ilhas. Revelou à ciência oficial 5 mil novas espécies de seres vivos e deu nome a 295 espécies de escaravelhos  (70), borboletas (120) e aves (105).

Precursor das Regiões Biogeográficas articuladas com a evolução das espécies, deu a conhecer a chamada “linha de Wallace” no arquipélago malaio. Wallace estranhava isto: em ilhas não muito distantes entre si, de um lado via macacos, do outro observava apenas cangurus arborícolas, antecipando uma correlação da evolução biológica com a geologia no capítulo da deriva de placas.

É nessa fase que quase morre de malária, altura em que, num estado alterado de consciência, intui a teoria da origem das espécies. Em fevereiro de 1858, passada a crise, escreve em Ternate (atuais Molucas) uma carta a Charles Darwin (Grã-Bretanha, 1809/1882) com um ensaio. Expunha as suas ideias, longe de saber que Darwin já trabalhava nessa teoria há mais de uma dúzia de anos. Não havia nem avião nem internet, é óbvio, por isso a carta vai de navio, até que chega às ilhas britânicas. O carteiro terá entregado a missiva de Russel Wallace a Darwin em 18 de junho de 1858.

Darwin ter-se-á sentido chocado ao lê-la. Abalado, não quer vir a ser acusado de plágio, por apresentar em breve a sua teoria. É um homem honrado – trabalhava estas mesmas ideias há 18 anos. Darwin recorda a carta que enviou alguns anos antes ao professor Asa Gray dos EUA (Boston), em que referia parte desta teoria, e que demonstrava o trabalho entretanto já realizado.

Ainda assim, não era suficiente. Nada melhor do que aconselhar-se com amigos próximos. Um deles seria um conhecido geólogo, Charles Lyell, e um botânico, Joseph Hooker, que foi diretor dos Reais Jardins Botânicos de Kew, em Londres, património da humanidade, classificado mais tarde pela UNESCO. A conclusão resultante terá sido esta: Darwin redigiria nos dias imediatos um ensaio sobre a sua teoria para ombrear com a de Russel Wallace, devendo ambos os textos ser lidos na Sociedade Lineana. Isso aconteceu com brevidade, em 1 de julho, com os seguintes títulos: R. Wallace: “On the Tendency of Varieties to depart indefinitely from the Original Type, Ternate”, fevereiro de 1858; C. Darwin: “The Variation of Organic Beings under Domestication and in their Natural State”, junho de 1858.

Darwin, uma vez que Wallace estava na Ásia, preferiu não estar igualmente presente durante a leitura dos ensaios, que ficaram em acta. Depois destes factos sai a público a 1.ª edição do mais famoso livro de Darwin, “A origem das espécies”, em 24 de novembro de 1859.

 

Sem amuos nem questiúnculas

Como se relacionariam Wallace e Darwin?

Já vi quem defendesse que Darwin teria pisado Wallace ao ganhar protagonismo na história como autor da teoria da origem das espécies, mas os factos apontam noutro sentido. Publicado o livro “On the Origin of Species by Means of Natural Selection”, Darwin viria a dizer: “Russel Wallace não podia ter feito um resumo mais exato. Há palavras ali escritas que agora estão presentes no cabeçalho de capítulos do meu livro”. Por sua vez, Russel Wallace escreve uma dedicatória expressiva na sua crónica de viagem ao arquipélago malaio que se lê ainda hoje: “Dedico este livro a C. Darwin, autor de "A origem das espécies”, não só pela estima e amizade que lhe tenho mas também para exprimir a minha profunda admiração pela sua genialidade e os seus trabalhos”.

Repetidas vezes, Russel Wallace saía em defesa, pela palavra e pela escrita, em defesa de Darwin quando as ideias que ambos partilhavam eram contestadas.

A verdade é que Wallace preferia que a publicação de tão polémico livro fosse assinada por Darwin, por várias razões: Darwin tinha um estatuto mais amplo no campo científico que poderia proteger melhor as novas ideias; também ninguém conseguiria desempregar Darwin face ao património que possuía, ao contrário de Russel Wallace, que vivia do seu trabalho.

A questão de na história Wallace ter passado para segundo plano tem mais a ver com a sua coragem e frontalidade quando, uma vez descoberta a autenticidade dos fenómenos mediúnicos, estando presente em diversas sociedades científicas, não hesitar em dizer aos cientistas instalados que a ciência não pode virar a cara a essa realidade e tem de a investigar, nunca ignorá-la. A campanha começou aí e, curiosamente, quem o defende hoje em dia, possuído pelo preconceito materialista, continua a esconder do público essa vertente indissociável que acompanhou Russel Wallace, libertadora, até ao final da sua passagem terrena.

 

A empatia de Russel Wallace

Ao lermos a crónica de viagem ao arquipélago malaio conseguimos perceber que Russel Wallace teria de ser uma pessoa muito empática. Um dos factos mais significativos prende-se com a capacidade que teve de conseguir, junto de uma tribo que se engalanava nas festas com lindas penas de aves-do-paraíso, que lhe explicassem como conseguia obtê-las. Não é de estranhar. Na floresta tropical, a vida passa-se sobretudo na copa de árvores altíssimas, onde o Sol e a água espalham mais biodiversidade do que no solo sombrio. Como conseguiriam os nativos caçar essas aves? Wallace explica no livro como lhe revelaram esse peculiar segredo tribal.

Também em Inglaterra, anos depois das viagens e já espiritualista, Russel Wallace passava uma fase em que não conseguia arranjar trabalho. Darwin, sabendo disso, preocupava-se. Pediu à rainha Vitória uma bolsa de sobrevivência para Russel Wallace face aos relevantes serviços prestados à ciência, em várias áreas, desde a história natural à antropologia. O pedido foi negado. Tentou juntar mais personalidades que apoiassem a pretensão, mas não conseguia. Por sua vez, a dada altura Russel Wallace tinha ainda umas amostras de plantas da Ásia tropical que lhe levantavam dúvidas. Pensou então visitar o diretor de Kew Gardens, Joseph Hooker. Hooker era filho de botânicos que estudaram plantas da Índia e da cordilheira do Himalaia. O talentoso botânico inglês não conhecia pessoalmente Russel Wallace, mas ficou a conhecê-lo nessa oportunidade. A conversa entre ambos terá sido inteligente e empática, a ponto de desfazer preconceitos. Entre Hooker e Darwin surgiu uma nova petição entregue à rainha para que fosse atribuída uma bolsa de sobrevivência a Russel Wallace. Por fim, isso foi conseguido.

 

As traduções e um médico espírita português

Assim que foi publicada a 1.ª edição de “A origem das espécies”, de Darwin, na Inglaterra, em 24 de novembro de 1859, os jornais terão começado a comentá-la, em vários países. As ideias eram revolucionárias na área do que hoje se conhece por biologia, mas impactavam nos preconceitos de profissionais da religião e até de alguns cientistas estagnados. Mas as editoras começaram a publicar a obra, vendo aí uma oportunidade comercial. A França não demorou: 1862. É de supor que Kardec terá entendido a teoria e isso levantou uma boa parte das questões nesta matéria que não estiveram presentes na 1.ª edição de “O Livro dos Espíritos”, mas sim nas posteriores (2.ª edição, 1860).* Espanha também já teria publicado uma tradução por volta de 1877 ou 1880.

E Portugal? Só no século seguinte, depois da revolução da republicana, que depõe a monarquia (1910). Nessa altura foi necessária a tradução da obra. A tarefa acabou por ser atribuída a um médico portuense, que era espírita, Joaquim Dá Mesquita Paul (Guimarães, 16-3-1875/V. N. Gaia, 12-5-1946), para que a 1.ª edição portuguesa fosse publicada, por fim, em 1913, pela Livraria Lello e Irmão, da cidade do Porto.

Dá Mesquita Paul foi o associado n.º 1 da Sociedade Portuense de Investigações Psíquicas (VASCONCELOS, Manuela. Grandes Vultos do Movimento Espírita Português. Ed. FEP.), um centro espírita de dimensão considerável, que funcionou na Rua Álvares Cabral, proprietário da revista “Além”, na cidade do Porto, até que a ditadura fascista na década de 1950 encerrou tudo e se apropriou do edifício, entregando o património a instituições da religião oficial salazarista, prédio que hoje ainda mantém a mesma fachada e onde funciona uma oficina de impressão gráfica. Durante anos sucessivos, Dá Mesquita Paul foi presidente de Direção e da Assembleia Geral, com uma participação ativa.

 

Russel Wallace e a mediunidade

E pesquisas sobre mediunidade, quando aparece essa fase?

Russel Wallace inicia o estudo de fenómenos mediúnicos em 1865. Diz no livro “On Miracles and Modern

Spiritualism” que aos 14 anos foi viver com um irmão. Interessava-lhe encarar com seriedade os conhecimentos que adquiria. Optou por um raciocínio não clerical, materialista. Estava longe de se interessar por uma visão espiritualista da vida. A curiosidade despertou ao deparar com fenómenos difíceis de explicar que ocorriam numa família sua conhecida. A vontade de perceber o que se passava levou-o a abordar factos que não podia continuar a ignorar.

Na obra referida, "Miracles and Modern Spiritualism", Alfred Russel Wallace escreve: "Eu era um materialista tão convencido que não admitia absolutamente a existência espiritual, nem qualquer outro agente do Universo além da força e da matéria. Os fatos, entretanto, são pertinazes. A minha curiosidade foi inicialmente despertada por alguns fenómenos ligeiros, mas inexplicáveis, que se produziam em torno de uma família amiga; o desejo de saber, e o amor à verdade, forçaram-me a prosseguir as pesquisas. Os fatos tornaram-se cada vez mais certos, cada vez mais variados, cada vez mais afastados de tudo quanto a ciência moderna ensina, de todas as especulações da filosofia dos nossos dias, e, afinal, venceram-me. Forçaram-me a aceitá-los como factos, muito antes de admitir a sua explicação espiritual – não havia nesse tempo, no meu cérebro, lugar para esta concepção. Pouco a pouco, ela apareceu, não por opiniões preconcebidas ou teóricas, mas pela ação contínua de fatos sobre fatos, dos quais ninguém se podia desembaraçar de outra maneira."

Russel Wallace publica vários livros. Eis alguns – em 1866, “The Scientific Aspect of Supernatural”; em 1874, “A Defense of Modern Spiritualism”; em 1875, “On Miracles and Modern Spiritualism”; em 1904, “Man's Place in the Universe”. Também escreveu numerosos artigos, deu inúmeras conferências, tinha um diploma de membro honorário da Associação Central de Espiritualistas filiada na Associação Nacional Britânica dos Espiritualistas, criada em 1873, e chegou a fazer um périplo de conferências espiritualistas em defesa da autenticidade dos fenómenos mediúnicos além-mar, na região de Boston, EUA, uma vez recebido o convite.

 

Wallace e Darwin divergem

Apesar de Russel Wallace conviver amistosamente e admirar Charles Darwin, a dada altura ambos discordam. Como terá ocorrido isso?

Tudo começa com um livro de Darwin, publicado em 1871, com que por fim Russel Wallace não concorda: “The Descent of Man”.

Na posse de informações seguras sobre a vida espiritual, mediante as conclusões oriundas de diversas experiências com a mediunidade de vários médiuns, e a sua própria capacidade de pensar a partir dos factos, Wallace escreve um livro em 1889 (“Darwinism Applied to Man”), com a estrutura de uma tese, no qual explica a sua divergência diante do ponto de vista de Darwin. Nesta obra, Russel Wallace afirma que, mediante os factos que descreve, faz todo o sentido supor a intervenção de causas não identificadas na evolução das espécies, ou seja, de agentes extrafísicos, na nossa linguagem habitual, Espíritos desencarnados superiores em inteligência e bondade.

Quem o ler vai encontrar a referência a afinidades anatómicas e filogenéticas dos mamíferos e do homem, assim como a dados antropológicos e, passando por vasta fundamentação, acompanhará a conclusão de Wallace neste sentido: as capacidades humanas na matemática, nas artes e espirituais não são explicáveis por mera seleção natural como Darwin fez supor. Por fim apresenta a hipótese explicativa de uma intervenção do Plano Espiritual na evolução humana, que me recordou em boa parte o livro “Evolução em dois mundos”, de André Luiz (Espírito), psicografado em meados do século XX pelos médiuns Francisco Cândido Xavier e Waldo Vieira.

No livro antes referido Russel Wallace escreve: “Há três patamares evolutivos [inorgânico-orgânico; sensação-consciência; faculdades humanas] que vão desde o mundo não orgânico ao ser humano, e que apontam para um universo invisível ao qual a matéria se subordina.”

Mais à frente: “no decurso da minha interpretação dos factos (…) é de supor que a natureza espiritual do ser humano não só de modo algum é inconsistente com a teoria evolutiva das espécies, mas pelo contrário, será através das leis naturais que lhe estão associadas que a evolução ocorre”. E ainda, “Portanto, conclui-se que a teoria darwiniana, mesmo que levada ao extremo das suas conclusões lógicas, não só não se opõe mas até atribui e suporta algum tipo de crença na natureza espiritual do ser humano”.

 

Russel Wallace era espírita?

Não. Era espiritualista. Não aceitava a reencarnação. No seu ponto de vista não entrevia suporte que justificasse a teoria das vidas sucessivas. Não resisto: é estranho naquela altura ainda pensar assim, não é?

Contudo, com excepção desse detalhe, ao lermos as obras espiritualistas de Russel Wallace encontramos muita identidade com abordagens que Allan Kardec faz nas suas próprias obras. Os fenómenos existem, sabemos que o sobrenatural não existe, logo temos de descobrir as leis que estão por detrás do seu funcionamento. Depois disso, não há como deixar de tirar ilações de índole filosófica e ética.

Russel Wallace foi brilhante, apesar da cortina que os materialistas tentam colocar ainda hoje sobre o seu valoroso trabalho em vários patamares. Apesar disso, por distinção da sua importante contribuição para a ciência, foram-lhe atribuídos prémios como a Medalha Real (1868), a Medalha de Darwin (1890) ou a Medalha Copley (1908).

Russel Wallace desencarnou a 7 de novembro de 1913, com 90 anos, em Broadstone, Inglaterra. Até desencarnar foi um grande divulgador da autenticidade dos fenómenos mediúnicos e participante em congressos dessa temática.

Em 2011, numa conferência comemorativa ("Alfred Russel Wallace and the Birds of Paradise"), um conhecido divulgador de ciência britânico, David Attenborough, afirmou que "... não existe pessoa mais admirável na história da ciência ("... there is no more admirable character in the history of science").

Para nós, apesar desse elogio especial, não é difícil encontrar em Alfred Russel Wallace uma dimensão ainda maior.

 

Ref.:

* “Questão 607. Dissestes que o estado da alma do homem, na sua origem, corresponde ao estado da infância na vida corporal, que a sua inteligência apenas desabrocha e se ensaia para a vida. Onde passa o Espírito essa primeira fase do seu desenvolvimento?

- Numa série de existências que precedem o período a que chamais Humanidade.

Questão 607. a) - Parece que assim se pode considerar a alma como tendo sido o princípio inteligente dos seres inferiores da criação?

- Já não dissemos que tudo na Natureza se encadeia e tende para a unidade? Nesses seres, cuja totalidade estais longe de conhecer, é que o princípio inteligente se elabora, se individualiza pouco a pouco e se ensaia para a vida (…). É, de certo modo, um trabalho preparatório, como o da germinação, por efeito do qual o princípio inteligente sofre uma transformação e se torna Espírito. Entra então no período da humanização, começando a ter consciência do seu futuro, capacidade de distinguir o bem do mal e a responsabilidade dos seus atos. (…)”.

 

Jorge Gomes, escritor, ex-vice-presidente da Federação Espírita Portuguesa e ex-editor do Jornal de Espiritismo publicado pela ADEP - Associação de Divulgadores de Espiritismo de Portugal, da qual é membro, reside na cidade do Porto, Portugal.


 
  


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 Revista Semanal de Divulgação Espírita