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por Ricardo Baesso de Oliveira

 

Seis questões sobre a exposição espírita


No Projeto 1868, Kardec se refere à necessidade da preparação de pessoas esclarecidas e talentosas encarregadas de espalhar a Doutrina espírita[i] Isso se deu de forma evidente: inúmeros espíritas, investidos do espírito de gratuidade e de boa vontade, vêm-se dedicando a essa tarefa.     

Cerca de 150 anos depois, diante de profundas transformações em todas as dimensões humanas, incluindo o surgimento de disciplinas inexistentes no século XIX, podemos examinar algumas questões pertinentes ao ensino do Espiritismo, enriquecidas por formas contemporâneas de análise do homem e do mundo.

Para pensarmos sobre isso, apresento seis proposições, considerando a ampla possibilidade do contraditório, sempre saudável, quando sincero e cordial.

Primeira

Não deveríamos falar em nome do Espiritismo, mas, em nome da leitura que fazemos das questões pertinentes ao Espiritismo. Isso porque ninguém está autorizado, a falar em nome da Doutrina espírita, por si só. O Espiritismo deve ser entendido como um movimento de ideias apresentadas pelos Espíritos e desenvolvidas e expandidas pelos homens, cuja leitura guardará sempre o colorido de quem lê.

Quem lê o faz a partir de si mesmo, de sua personalidade, seu jeito de ser e pensar. Nossa personalidade é construída a partir de diversas e poderosas influências: espirituais, biológicas, familiares, sociais, históricas etc. Assim, na medida que somos seres singulares, a compreensão do que vemos, ouvimos e lemos tem um caráter de singularidade. O valor que damos às palavras e aos conceitos é matizado por aquilo que construímos em nosso mundo íntimo. A forma de compreender um texto não será absolutamente a mesma considerando indivíduos de culturas diferentes, de condição social diferente, de gênero ou idade diferentes, de etnia diversa, de formação escolar diferente, de constituição familiar diferente.

Pierre Bourdier iniciava suas aulas dizendo que é evidente que aquilo que vou propor é minha visão da sociologia.[ii] Chamado a opinar sobre a política humana, Emmanuel fez questão de deixar claro que os meus pareceres são igualmente pessoais como os vossos, sem o caráter da infalibilidade[iii]

Ao examinarem, por exemplo, as desigualdades sociais, um bem-sucedido empresário e um assalariado, muito provavelmente, identificarão aspectos diferentes do problema. De forma semelhante, pessoas há longos anos consorciadas irão apresentar problemas diferentes em torno do matrimônio se comparadas com uma pessoa celibatária.

Uma expositora muito conceituada na zona da mata mineira causou certo alvoroço, quando colocou que a principal função social da mulher é criar os filhos. Assim, segundo ela, as mulheres deveriam se dedicar ao lar e à família. Uma jovem que a conhecia comentou:

- Ela devia ter revelado o salário mensal do marido.

Segunda

Não deveríamos falar ancorados em uma pretensa autoridade moral ou intelectual que, eventualmente, nos foi conferida, ou nos conferimos. Além dessa autoridade ser enganosa, considerando a condição evolutiva da maioria esmagadora dos Espíritos domiciliados na Terra, ela não deveria ser justificativa para o convencimento dos ouvintes. Mesmo porque quem está autorizado a falar com autoridade? E como podemos determinar quem tem autoridade para falar com autoridadeA argumentação lógica e embasada em princípios racionais e autênticos deveria ser o único fator a valorar nosso discurso.

De forma equivalente, não deveria também se ancorar no fato de possuir uma origem mediúnica, sabedores que somos dos amplos fatores que intervêm na relação dos Espíritos com os homens. Todos sabemos que dependendo do autor que designamos a uma obra, a percepção da obra muda, e também sua apreciação não apenas subjetiva, mas também objetiva e objetivamente quantificável pelo preço do mercado. Necessário tentarmos minimizar essa possível influência.

Uma amiga, questionando sobre algo lido em uma página mediúnica, foi interpelada pelo dirigente do grupo de estudos:

- Mas quem somos nós para discordarmos do Dr. Bezerra!

Kardec foi decisivo ao afirmar que jamais o nome é uma garantia; a única, a verdadeira garantia de superioridade é o pensamento e a maneira por que este é expresso. [iv]

Compete, portanto, ao expositor abrir mão de qualquer pretensa autoridade ao apresentar um tema, colocando-se ao lado do ouvinte, convidando-o a refletir com ele em torno do tema examinado.

Terceira

Observarmos cuidadosamente a temporalidade do nosso pensamento. Tudo o que falamos tem o caráter da transitoriedade, pois é como vemos a questão no momento presente. Podemos vê-la de forma diferente, amanhã. Isso deve ser transparente em nossa fala. Kardec, em vários pontos, reviu conceitos propostos anteriormente. Lembrando que isso se deu em um período inferior a 15 anos. Se essa possibilidade não está colocada no discurso espírita, corremos o risco de descambarmos na hipocrisia ou na incoerência.

Um exemplo pessoal: há cerca de trinta anos assumi uma dada posição em torno do casamento entre dois homens ou duas mulheres e a tornei pública em artigos e palestras espíritas. Penso, hoje, radicalmente de forma diferente. O mesmo ante a possibilidade desses casais adotarem filhos.

A ideia de que a personalidade não é permanente tem sido cada vez mais aceita no campo da psicologia, derrubando a antiga suposição de que ela era estática. As mudanças de personalidade podem acontecer de acordo com as mais variadas experiências vividas. Ambientes de trocas constantes, seja no trabalho ou mesmo grupos de amigos têm impactos significativos. Somos mentes em constante mutação. A forma de entendermos as coisas muda naturalmente quando mudamos como pessoas.

Quarta

A fala espírita deve fazer pensar, levando o ouvinte a chegar às próprias conclusões a partir dos elementos que lhe apresentamos. Nosso discurso pode ser admirável pelos resultados que produz, mas também pelo modo de pensar que coloca em operação. A melhor filosofia ensina a se colocar em estado de disponibilidade total, em estado de ignorância, como se necessário fosse inicialmente desaprender tudo que sabemos ou que acreditamos, e a partir daí reconstruirmos nossas ideias em bases mais sólidas.

Pierre Bourdieu dizia, em suas aulas: meu desejo não é na verdade transmitir saberes realizados e prontos, mas sim uma maneira de pensar, uma maneira de fazer perguntas.[v]

Segundo Paulo Freire, pensar certo é não estarmos demasiado certos de nossas certezas. Daí que seja tão fundamental conhecer o conhecimento existente quanto saber que estamos abertos e aptos à produção do conhecimento ainda não existente. [vi]

E ainda, Freire: Ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua própria produção ou a sua construção. Quando entro em uma sala de aula devo estar sendo um ser aberto a indagações, à curiosidade, às perguntas dos alunos, a suas inibições; um ser crítico e inquiridor, inquieto em face da tarefa que tenho - a de ensinar e não a de transferir conhecimento. [vii]

Confesso que, em 35 anos de atividade expositiva espírita, por diversas vezes, fui levado a rever “verdades” consolidadas, em contato com desafiadoras colocações de pessoas que se iniciavam no estudo espírita. Para ilustrar, recorro a um fato que se deu, há muitos anos, quando examinava o tema Reprodução artificial. Indagado sobre a eventualidade dos embriões congelados encontrarem-se ligados a Espíritos, um jovem comentou, com bom humor:

- Quer dizer, então, que nós inventamos uma máquina de capturar Espíritos?

A perspicácia de sua colocação me fez rever a maneira de entender o processo.

Quinta

Em nosso discurso, devemos estar cientes da heterogeneidade das pessoas que nos ouvem ou leem. São diferentes na capacidade de entendimento e na possibilidade de aceitação das ideias que apresentamos. Muitas pessoas não conseguem, não podem ou não querem assimilar a nossa proposta de compreensão dos temas espíritas. Isso porque a assimilação de nossas ideias pode ser incompatível com os elementos da fé que as alimenta e as ajuda a superar as vicissitudes da vida.

A fé deve ser vista, também, como estratégia de sobrevivência; um sentimento que dá a força necessária para a superação dos desencantos da vida. Pode acontecer que nossa proposta de entendimento venha abalar tão profundamente os elementos de sustentação de sua fé, que ela prefira não admitir a nossa hipótese.

Por isso, muitas pessoas não se adequam a certos grupos de estudos espíritas. A forma de abordagem dos temas as incomoda perigosamente, pois colocam em xeque tudo aquilo em que acreditam, e o que acreditam lhes tem servido de sustentáculo nas lutas cotidianas. Assim, até certo ponto, cada um “escolhe” em que acreditar. Não “suportaria” crença diferente.

Para ilustrar, recorro a um fato ocorrido em uma pequena cidade norte-americana (e que se transformou em filme). Um casal, fortemente agregado a uma comunidade evangélica, depara-se com um grave problema de saúde no filho caçula; Diabetes melitus tipo I. O pastor e os demais membros da congregação estão convencidos de que a cura vira pela fé, sem socorro médico. A criança é colocada sobre uma mesa no centro da igreja, e, dia e noite, oram por ela. Além das preces, o jejum, e um fortíssimo sentimento comunitário. Todos, inclusive os pais, estão convencidos de que se trata de uma prova de fé para a família, os amigos e os crentes: Deus vai salvá-lo, restituindo-lhe a saúde, se mostrarem uma fé capaz de “derrubar montanhas”.

Mas o pior acontece: a criança evolui para o óbito.

O final do filme é revelador. Mostra os pais, agora sozinhos, em profundo estado de desalento. Em certo momento, a mulher, volta-se para o companheiro e diz:

- Não sei o que mais me dói: a morte de nosso filho ou a morte de minha fé.      

Sexta

O Espiritismo lida com questões que estão na dimensão da fé, e não de fatos científicos consolidados. A fé é uma crença não baseada em evidências, portanto, está sujeito ao subjetivismo de quem crê. Há desonestidade intelectual quando apresentamos uma questão de fé como sendo algo comprovado a partir de evidências científicas.

Fiquei imensamente surpreendido quanto verifiquei que os conceitos de fases da libido de Freud (oral, anal etc.), bem como o complexo de Édipo, ou a interpretação psicanalítica dos sonhos não eram fatos científicos. Porque me foram apresentados na faculdade de Medicina como tal, quando, em verdade, nunca deixaram de ser ideias construídas pela mente genial de Freud, mas jamais examinadas empiricamente pelos métodos científicos. Faltou aos professores que ministraram a disciplina dizer isso. Penso, hoje, que talvez eles não soubessem disso.

Compete ao expositor espírita colocar de forma transparente que Deus, reencarnação, imortalidade da alma e mediunidade são artigos de fé, que fazem parte do nosso credo. Kardec se valeu da expressão Credo espírita, como título de um artigo, publicado em Obras póstumas. Esses princípios estão em dimensão diferente daqueles que a ciência oficial considera como fatos científicos. Não podem ser colocados em uma palestra da mesma forma que informamos que o coração humano tem quatro cavidades, ou que respondem pelo clima de uma região a latitude, a altitude, as massas de ar e as correntes marítimas.

Concluímos com a seguinte questão: as proposições desenvolvidas neste texto poderiam conduzir ao pensamento de que, tendo a apresentação espírita o caráter da relatividade, da modéstia, da transitoriedade, da contextualidade, da crença não baseada em evidências e da construção conjunta do conhecimento, jamais seria possível a unidade dos princípios espíritas.

Respondo com Kardec. Ao dissertar aos espíritas lioneses, afirmou que as divergências que podem surgir só podem dar-se nos detalhes e não sobre o fundo.[viii] Isso porque os princípios fundamentais da Doutrina são sobejamente conhecidos e sobre eles não há controvérsias.

Segundo Pierre Bourdieu, toda disciplina é constituída por uma série de lições ligadas por uma lógica. Isso envolve dificuldades porque a divisão em lições e temas cria o risco de fazer a lógica do conjunto desaparecer. [ix]Em Espiritismo, a lógica que acompanha a análise de qualquer tema é a evolução/progresso espiritual.  

Em um conjunto básico de ideias, orientado pelo fio de prumo da evolução do Espírito se estabelece a unidade espírita As controvérsias se estabelecem nos desdobramentos desses princípios, no que Kardec chamou de detalhes.

Diante desses desdobramentos, Kardec convida ao uso racional do pensamento: [...] tendes um critério infalível para o apreciar, quer se trate de simples detalhes, quer de sistema radicalmente divergentes; examinai, antes, o que é mais lógico, o que melhor corresponde às vossas aspirações, que melhor pode alcançar o objetivo. O mais verdadeiro será, evidentemente, aquele que explica melhor, que melhor dá a razão de tudo. Se se puder opor a um sistema um único fato em contradição com a sua teoria, é que a teoria é falsa ou incompleta. A seguir, examinai os resultados práticos de cada sistema; a verdade deve estar do lado de quem produz maior soma de bem, exerce uma influência mais salutar, produz mais homens bons e virtuosos e impele ao bem pelos motivos mais puros e mais racionais. A felicidade é o objetivo constante a que aspira o homem.

E ainda: [...] a verdade estará do lado do sistema que proporciona maior soma de satisfação moral; numa palavra, que torna o homem mais feliz.[x]


 

[i] Obras póstumas

[ii] Sociologia geral II

[iii] Palavras do infinito

[iv] RE outubro de 1860

[v] Sociologia geral volume I

[vi] Pedagogia da autonomia

[vii] Idem

[viii] RE outubro de 1860

[ix] Sociologia geral II

[x] Idem.


 

 

     
     

O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita