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por Ricardo Baesso de Oliveira

 

Virtudes ou estratégias de enfrentamento?


A tradição cristã tem considerado como virtudes a paciência, a fé, a esperança e a resignação. Mas serão mesmo?

O uso da palavra virtude na cultura grega (arete, em grego) refere-se ao “fazer bem as funções” e, por isso, muitas vezes aparece traduzido por excelência. Nesse aspecto, o cavalo que corre bem e o sapateiro que trabalha bem são virtuosos ou excelentes. Assim, a virtude possui, para os gregos, um sentido amplo, indica qualidade, excelência de alguma coisa e também aponta para a conduta moral. O termo latino virtus, que traduz arete, designa a qualidade do varão.

Em geral, na linguagem cotidiana, a palavra virtude é usada para nomear as qualidades gerais de uma pessoa, ou seja, os atributos positivos de um indivíduo. Virtude foi um tema bastante abordado pelo filósofo Aristóteles, que fez a diferenciação entre virtudes intelectuais e virtudes éticas (ou morais). As virtudes intelectuais são ligadas à inteligência e as virtudes morais são relacionadas com o bem.

A virtude moral é a ação ou comportamento moral, é o hábito que é considerado bom de acordo com a ética, a disposição de um indivíduo de praticar o bem; não é apenas uma característica, trata-se de uma verdadeira inclinação: virtudes são todos os hábitos constantes que levam o homem para o caminho do bem. A virtude moral é um conceito que remete para a conduta do ser humano, quando existe uma adaptação perfeita entre os princípios morais e a vontade humana.

Sob o aspecto moral, virtude, segundo Kardec, é uma disposição adquirida de fazer o bem; o esforço para se portar bem:

A moral é a regra de bem proceder, isto é, de distinguir o bem do mal. Funda-se na observância da lei de Deus. O homem procede bem quando tudo faz pelo bem de todos, porque então cumpre a lei de Deus. [i]

Sam Harris, psicólogo norte-americano, comenta que a moralidade diz respeito à maneira como tratamos uns aos outros e que existem estados e capacidades mentais que contribuem para nosso bem-estar (felicidade, compaixão, gentileza), bem como estados e incapacidades mentais que o diminuem (crueldade, ódio, terror). Logo, faz sentido inquirir de determinada ação ou maneira de pensar afetará o bem-estar de uma pessoa e dos outros. Segundo Harris, existem respostas certas e erradas para as questões de cunho moral (embora nem sempre consigamos formulá-las na prática), porque existem caminhos que conduzem à maior infelicidade e caminhos que levam à maior realização possível para as pessoas. O conceito de bem-estar abarca tudo o que podemos valorizar. E a moralidade – como quer que as pessoas entendam esse termo – realmente se reporta às intenções e ações que afetam o bem-estar dos seres conscientes.

Embora Harris seja ateu, ele evoca, no exame das virtudes morais, o que Jesus considerava a essência da moralidade: a compaixão, o altruísmo e a bondade. A bondade consiste em sermos o que desejamos que o outro seja, tratar o outro como maior, antecipar o gesto de gentileza e bondade. Ser, fazer e agir de forma que promovamos o bem de forma gratuita. Uma bondade ilimitada que transcenda etnia, gênero, comportamento, pois ele recomendava a bondade com o ladrão, com os pecadores, com todo ser humano. [ii]

Os atos morais, segundo a ética filosófica, são atos humanos conscientes e voluntários dos indivíduos que afetam outros indivíduos, determinados grupos sociais ou a sociedade em seu conjunto.[iii]

Por essa razão, Sponville em seu Pequeno tratado das grandes virtudes, não inclui a fé, a esperança, a paciência e a resignação, porque as virtudes morais estão diretamente relacionadas ao bem-estar dos outros, em nossa relação com eles.

Assim, nos indagamos se sentimentos como paciência, esperança, fé e resignação se identificam com esse conceito, ou, se são condições muito mais relacionadas ao próprio bem-estar, gerando em quem as cultiva a paz de espírito, a confiança e a serenidade. Isso, sem necessariamente implicar qualquer benefício para as outras pessoas.   

Relata Sponville que Santo Agostinho e Santo Tomás de Aquino, comentando o hino à caridade, apresentado por Paulo, na famosa carta aos coríntios, mostram que, das três virtudes teologais (fé, esperança e caridade), a caridade não era apenas “a maior das três”, como dizia são Paulo, mas também a única a ter um sentido em Deus ou, como dizem, no Reino. A fé passará (como crer em Deus quando se identifica com Deus?), a esperança passará (no Reino, não haverá mais nada a esperar), e é por isso que se diz que apenas a caridade “não passará”: no Reino só haverá amor, sem esperança e sem fé! Cristo, observa santo Tomás, não tinha “nem a fé nem a esperança”, no entanto houve nele “uma caridade perfeita”. [iv]

Isso porque paciência, esperança, fé e resignação são atributos relacionados à nossa condição de Espíritos em evolução; perdem o sentido quando se examina o Espírito puro. Não faz sentido pensar que os Espíritos superiores ainda necessitem deles. O que faz sentido seria imaginar que, à medida que o Espírito evolui moralmente, à medida em que ele encarna em mundos menos marcados por provas e expiações, mais inócuas se tornariam essas "estratégias de sobrevivência em mundos infelizes". O Espírito mais evoluído já tem ideia do que vai acontecer, já sente Deus, logo paciência, esperança, fé, resignação etc. são atributos infantis para eles. Da mesma forma, para uma criança, poderia ter sentido crer em Papai Noel, quando adulto isso já não faz o menor sentido nem tem nenhuma necessidade.

Sob essa ótica, as condições citadas são muito mais estratégias de enfrentamento dos desafios da vida, que virtudes propriamente ditas. São atributos relacionados ao autocontrole, sendo benéficos para quem os consegue exercitar. Como não acarretam bem para o outro, não se enquadram na categoria de virtudes morais.

Quem cultiva a paciência, se esforça em ser perseverante, esperançoso e confiante possivelmente viverá melhor e adoecerá menos, porque alimenta, em si mesmo, valores geradores de saúde mental. Aquele que não cultiva as condições citadas, provavelmente, ao deparar-se com as vicissitudes da vida, encontrará empeços maiores.

Alguns pensamentos de Kardec parecem caminhar nesse sentido:

Têm os Espíritos o poder de afastar de certas pessoas os males e de favorecê-las com a prosperidade?  “De todo, não; porquanto há males que estão nos decretos da Providência. Amenizam-vos, porém, as dores, dando-vos paciência e resignação”. [v]

O Espiritismo ensina o homem a suportar as provas com paciência e resignação. [vi]

Os flagelos são provas que dão ao homem ocasião de exercitar a sua inteligência, de demonstrar sua paciência e resignação ante a vontade de Deus.[vii]

Fica evidente, nessas referências do Livro dos Espíritos, que paciência, fé, persistência e a resignação são ferramentas apropriadas à superação das provas e expiações da vida.

Essa discussão talvez não seja relevante, porque independentemente de ser virtude ou não, paciência, perseverança, fé e esperança são condições que vale a pena serem cultivadas, porque geram, quando racionalmente aplicadas, bons frutos.    

Entretanto, como são estratégias para se viver melhor o aqui e agora, ou seja, a vida terrena, provavelmente não implicam progresso espiritual, o qual só se alcança, como ensina Kardec, pela prática das reais virtudes - aquelas que transcendem a matéria, como o amor, a caridade e as boas ações.

Bons atos parecem ser o caminho, e o único caminho, como ensinava Jesus, como bom judeu, afinal, totalmente ao contrário dos gregos (que valorizam o logos [a razão]), a filosofia judaica valoriza o dabar [o fazer, a palavra-ato]).

Enquanto o grego pensa, o judeu faz... Talvez por isso Jesus não tivesse vindo entre os gregos (apesar de terem também enorme valor na civilização).

 

OBS.: Colaborou neste texto Carlos Alberto Mourão Júnior, da cidade de Juiz de fora, MG.


 

[i] LE, item 629

 

[ii] A paisagem moral, San Harris

 

[iii] Ética, Adolfo Sanches

 

[iv] Sponville, Pequeno tratado das grandes virtudes

[v] LE, item 532

 

[vi] LE, item 982

 

[vii] LE, item 740

 

  

     
     

O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita