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por Vladimir Alexei

 

Melhorar-se ou melhorar a “obra”


Allan Kardec, na Revue Spirite, edição de novembro de 1858, define, com maturidade, o que é “polêmica espírita”. Há um gênero de polêmica, assevera o Codificador, que ele não participava: “é aquela que pode degenerar em personalismo”. “Há polêmica e polêmica”, continua Kardec, porque há uma da qual ele não recuava: é a discussão séria dos princípios que ele professava.

É tênue a linha que separa o personalismo de uma discussão séria de princípios. Recentemente, um grupo de espíritas lançou a obra “O Evangelho Segundo o Espiritismo – edição antirracista”. A alegação é muito louvável. Independente de uma participação jurídica como motivação (TAC, Ministério Público da Bahia, etc.), da qual não comentaremos nada porque não acrescentaria à proposta de reflexão, vivemos em um país extremamente racista, preconceituoso, xenófobo, transfóbico, gordofóbico e etarista. A lista é muito mais extensa, entretanto é suficiente para uma pessoa, em sã consciência, compreender que há necessidade de as pessoas saberem que as diferenças importam, que o respeito é princípio elementar e garantidor de uma sociedade próspera e com princípios cívicos bem estruturados. É o mínimo.

Dito isso, refletimos em alguns trechos da obra de Allan Kardec em sua edição antirracista. Aqui cabe um parêntese: embora admire o verbo fluido, a escrita clássica e os textos extensos, é preciso objetividade na análise, ainda que de forma ligeira e sem preocupação de uma “análise de conteúdo” mais rigorosa, porque traremos uma interpretação dentre tantas outras possíveis. Inclusive, a nossa interpretação é diferente do grupo Espíritas à Esquerda.

O primeiro texto que analisamos foi do capítulo III – Há muitas moradas na casa de meu Pai, instrução dos espíritos, item oito, segundo parágrafo. A tradução utilizada foi do Guillon Ribeiro, por ser de domínio público, como explicado pelos autores.

No Evangelho Segundo o Espiritismo, Allan Kardec escreve o seguinte (em francês):


“La terre étant prise pour point de comparaison, on peut se faire une idée de l'état d'un monde inférieur en y supposant l'homme au degré des races sauvages ou des nations barbares que l'on trouve encore à as surface, et qui sont les restes de son état primitif.
 Dans les plus arriérés, les êtres qui les habitent sont en quelque sorte   rudimentaires. (...)”.


Guillon Ribeiro traduziu assim:


“Tomada a Terra por termo de comparação, pode-se fazer ideia do estado de um mundo inferior, supondo os seus habitantes na condição das raças selvagens ou das nações bárbaras que ainda entre nós se encontram, restos do estado primitivo do nosso orbe. Nos mais atrasados, são de certo modo rudimentares os seres que os habitam.”


A obra citada acresceu a seguinte alternativa de texto, sem mudar absolutamente nada do texto original traduzido (ou seja: você pode ler os dois textos, a tradução do Guillon e o entendimento do grupo Espíritas à Esquerda):


“Tomada a Terra por termo de comparação, pode-se fazer ideia do estado de um mundo inferior, supondo os seus habitantes na condição de outras espécies do gênero humano, como homo erectus e homo neanderthalensis, que já habitaram entre nóslembranças fósseis do estado primitivo do nosso orbe. Nos mais atrasados, eram de certo modo rudimentares os seres que os habitavam.”
 (grifo nosso)


Em uma primeira leitura comparativa, mesmo para alguém que não é fluente em francês, pode-se compreender que a tradução antirracista é diferente do original.

É oportuno lembrar que o texto citado é uma apresentação, uma contextualização para situar o leitor no “tempo e no espaço” da ideia central que é a evolução (“muitas moradas”...). Nesse sentido, entendo que a tradução antirracista sugere um determinismo no texto em relação aos habitantes de uma época (“homo erectus e homo neanderthalensis”), que pode não ter o mesmo sentido proposto por Allan Kardec. Reforçando nosso entendimento: trata-se de uma apresentação de um texto de instrução dos espíritos, que inicia com um histórico, contextualizando, abrindo cortinas para que o conteúdo fosse introduzido e desenvolvido em sequência.

Essa primeira reflexão leva à outra: tentar atribuir um sentido ao que Allan Kardec disse, além do que está escrito, é passível de interpretação, logo passível de múltiplos entendimentos. E por múltiplos entendimentos, esse autor considera apenas aqueles respeitosos, que divergem de ideias, jamais das pessoas. Nesse sentido, inserir, extrair, modificar textos que podem sugerir um determinado agrupamento de seres, talvez não seja o mais adequado, lembrando que se trata de uma instrução dos espíritos, que poderiam saber (aqui não cabe a minha interpretação do pensamento dos espíritos, porque incorreria no mesmo erro que estou atribuindo aos Espíritas à Esquerda), de outras informações além do que foi transcrito por Allan Kardec.

Textos como “perfectibilidade da raça negra” e “teoria da beleza”, da forma como foram escritos, sugerem racismo. Por quê? Porque a interpretação é livre! Aqueles que estão na luta contra o racismo enxergam com os olhos treinados a identificar essa mazela social, tão doentia e que definitivamente precisa realmente ser combatida por todos. Respeito isso. Como respeito e vejo como mais plausível que os “erros” de Kardec foram expressões de um comportamento científico adotado na época, explicados de acordo com os costumes de então. A julgar por toda a obra, seria muito infantil alegar que Kardec era espiritualizado, desprendido de pretensões materialistas, mas era “racista”. Pensar assim seria muito simplista, literal até.

Escrevemos com respeito, mas sem a preocupação de agradar. Repetimos: a luta contra o racismo estrutural no Brasil deveria ser de todos. Assim como entendemos que a luta por preservar os princípios doutrinários inalterados também deveria ser de todos.

Caberiam livros, artigos, palestras, podcasts, lives e tudo o mais que fosse necessário para difundir a compreensão do grupo Espíritas à Esquerda, sobre o racismo. Todavia, mexer nas obras fundamentais, reeditar as obras de Allan Kardec acrescentando textos como possíveis alternativas para se interpretar de forma antirracista os textos de um autor desencarnado, creio ser desnecessário.

A luta digna, louvável e hercúlea do grupo Espíritas à Esquerda na política pela democracia é uma coisa. Trazer essa luta para modificar obras e atribuir textos interpretativos ao pensamento do codificador, é outra, que extrapola as diferenças contra a luta com os espíritas de direita (algo que, convenhamos, não combina nem um pouco com a obra de Allan Kardec).

Assim sendo, é preferível melhorar-se ou esforçar-se por “melhorar” a obra de um autor desencarnado? (*)

 

* Este artigo reflete apenas o pensamento do autor que fez uma reflexão em torno do tema, sem tentar impor a ninguém seu pensamento.
 

 

     
     

O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita