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por João Márcio Cruz

O mito da neutralidade mediúnica


Foram precisos 165 anos para compreendermos a máxima kardequiana “os espíritos são, apenas, as almas dos homens...”

Depois da obra sui generis “Contextualizando Kardec”, o insigne pesquisador espírita Elias Moraes lança sua mais nova obra, ainda no prelo, sobre “O processo mediúnico, suas possibilidades e limites na produção do conhecimento espírita”. Seguindo a mesma linha do primeiro, esse novo livro toca em assuntos provocativos, polêmicos embora necessários ao estudo doutrinário à luz de um diálogo contemporâneo com a ciência atual.

Se, conforme o nobre codificador nos adverte, os espíritos são as almas dos homens, isso toca num aspecto da mediunidade que foi, durante décadas, intocável e inquestionável por ter sido “vestido” de tabus e dogmas. Uma ortodoxia kardecista que surge de uma leitura própria do movimento espírita atual porque nem o codificador pensava um espiritismo estático no tempo e no espaço quando ele próprio propõe o caráter “progressivo” da doutrina no livro Obras Póstumas.

Fruto de um religiosismo predominante (catecismo espírita) em detrimento dos aspectos filosóficos e científicos, a mediunidade como “faculdade ontogenética” sem vinculação moral sempre foi sacralizada pelos leigos e estudiosos e “analisada” canonicamente, mantendo vivo uma “sobrenaturalidade” do fenômeno em desacordo com a proposta espírita na codificação, em que tanto Kardec quando os Espíritos veneráveis tentam desmistificar a mediunidade e naturalizá-la, mostrando-a como “mais uma faculdade humana” sem qualquer caráter esotérico e mágico.

N’ O Livro dos Médiuns, o prof. Rivail, usando de sua didática pestalozziana, assim como tinha criado neologismos lexicais dentro da gramática francesa, comenta algo muito instigante sobre o produto dos médiuns. Ele dirá que “a ideia é do espírito, mas a palavra é do médium”.

Durante séculos, acreditou-se que a palavra seria “uma coisa” suspensa no ar, incolor, impessoal, translúcida, mero veículo de ideias. Com o advento das ciências linguísticas (Chomsky, Saussure, Wittgenstein, Steven Pinker, Eusen Rosenstock Hussey, Nietzsche et al.) percebeu-se que a “palavra” é um signo com seu bioma semiótico próprio. Todo signo surge dentro de uma rede de significados e significantes, ou seja, a ideia do espírito sofre toda a influência sociocultural, neurossemântica e temporal do médium, já que é a “palavra” do médium que reveste os conceitos dos desencarnados.

Lendo a obra do admirável Elias Moraes, compreendemos que o movimento espírita desumanizou o fenômeno mediúnico e manteve o caráter místico, tão comum nos intercâmbios espiritualistas do passado, desde a Índia até a Grécia, onde as pitonisas eram consideradas seres especiais, portadores de dons divinos.

Se as mensagens psicográficas e psicofônicas não expressam “a verdade”, mas uma “interpretação” da verdade, por intermédio de espíritos e médiuns, torna mais responsável de quem veicula tais “cartas” o cuidado com seu conteúdo, haja vista que nessa produção podem existir, e deveras existem, os valores, os conceitos e falsos conceitos, os preconceitos, a ideologia do médium e dos desencarnados.

E isso não é a exceção, mas a regra, já que tanto o médium, tanto quanto o espírito comunicante, é um “signo autoconsciente” que vive e viveu dentro de um contexto etimológico cultural, psicológico, econômico e político. Na obra, Elias Moraes mostra através de riqueza de exemplos dentro da literatura mediúnica como as comunicações carregam o “caldo cultural” daquele momento e, na medida em que expressam os valores dos espíritos desencarnados, também tingem as informações com as tintas ideológicas dos espíritos encarnados (médiuns).

Isso não leva ao descrédito da mediunidade, muito pelo contrário. À luz de uma antropologia espírita, mostra que, sendo a mediunidade um fenômeno ”humano” dos dois lados da dimensão da matéria, tais escritos são enriquecidos por um olhar dialético onde os termos, léxicos, tons significantes são um “revestimento” inerente aos discursos dos espíritos que seguem sua marcha evolutiva, aprendendo dentro do entorno que transitam sem negar a realidade em que estariam inseridos mesmo no além.

O espírito ao desencarnar não sofre uma metamorfose!

Maria, no além túmulo, continua Maria.

João, no além, continua João.

A morte não transforma os espíritos, logo eles continuam no plano espiritual com suas cosmovisões e teodiceias pessoais, institucionais e planetárias. Esse olhar que a obra do autor Elias Moraes nos oferece enriquece o estudo doutrinário da mediunidade porque, se são espíritos que se comunicam e não personalidades anímicas, personagens do imaginário coletivo ou arquétipos do inconsciente social, logo junto com suas falas e discursos psicografados, trarão seu caráter humano, nem sempre aceito por grupos espíritas edificados sobre pilares ortodoxos, mas em consonância com os princípios kardecistas.

Esse olhar “humanizante” da mediunidade, do caráter social dos médiuns e seus espíritos, abre um seminal diálogo entre doutrina e ciência atual. Kardec anunciou que “o espírito nada teme da ciência, porque se algo for ser comprovado, o espiritismo segue a ciência...”

Espiritismo é religião, filosofia e ciência. Já era hora de uma abordagem “científica” e social do fenômeno medianímico. Cada produção mediúnica é a ponta visível e diminuta, diria Sigmund Freud, de um imenso, submerso e invisível iceberg conceitual. Toda produção humana surge dentro de um “ecossistema” cultural. Com a mediunidade não seria diferente. Segundo os epistemólogos Peter Berger e Thomas Luckman, construímos socialmente nossa realidade. Realidade essa como um construto intersubjetivo no aquém da matéria densa e no além da matéria etérea. Todo ponto de vista é visto de um ponto. Assim como existem as sociedades dos encarnados, existem as sociedades dos desencarnados. Cada espírito está em seu “lugar de fala”. Dessa interação que surge toda a atividade espiritista tem como lema: Fora da caridade não há salvação.

Com a compreensão dessa etiologia social da mediunidade, urge maior responsabilidade, zelo, rigor metodológico, bom senso ao acolher essas comunicações seguindo a postura do codificador, que sempre analisou racionalmente cada mensagem e por várias vezes, informação trazida recentemente nas cartas de Canuto Abreu. Kardec discordava, questionava e até corrigia os espíritos quando sentia a necessidade de elaborar uma explicação mais apropriada e intuía possíveis equívocos nos discursos dos espíritos. Na Revista Espírita, Kardec corrige e descarta, em vários momentos, as mensagens dos desencarnados, e hoje, com os estudos do pesquisador Elias Moraes, conseguimos entender profundamente os motivos.

O codificador já sabia que “toda mensagem espiritual” deve ser analisada, comparada com outras, na busca de uma universalidade de ensinos e tentando encontrar lógica no conteúdo. Até hoje, alguns estudiosos doutrinários não entendiam como um “encarnado” poderia corrigir, discordar dos espíritos superiores. Agora, depois dessa obra, ficaram claras as razões dele. Toda produção mediúnica é produto social e como tal merece ser revista, questionada, analisada, corrigida e descartada caso necessário. É melhor negar dez verdades do que admitir uma mentira.

Elias Moraes atualizou o pensamento de Kardec que estava soterrado sob discursos igrejistas e místicos, vestindo a “ideia” do codificador com sua “palavra” sociológica e empírica.

Quem tiver olhos de ver, que veja.

Quem tiver ouvidos de ouvir, que ouça.

 

João Márcio F. Cruz, autor e palestrante espírita, reside em Canindé-CE.

 

 

     
     

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 Revista Semanal de Divulgação Espírita