Especial

por Paulo Hayashi Jr.

O emblema do trabalho do Criador

 

Na obra basilar do Espiritismo, O Livro dos Espíritos, há uma singela passagem inicial chamada de Prolegômenos. O termo deriva do grego prolegomenon e significa “o que precisa ser dito antes[1]”. Trata-se das noções ou princípios básicos que auxiliam na apresentação e interpretação de uma obra maior. Dentro deste valioso texto introdutório destaca-se o emblema do trabalho do Criador. Segue o referido trecho, tanto no original quanto na tradução em português:

«Tu mettras en tête du livre le cep de vigne que nous t'avons dessiné, parce qu'il est l'emblème du travail du Créateur ; tous les principes matériels qui peuvent le mieux représenter le corps et l'esprit s'y trouvent réunis : le corps, c'est le cep ; l'esprit, c'est la liqueur ; l'âme, ou l'esprit unis à la matière, c'est le grain. L'homme quintessencie l'esprit par le travail, et tu sais que ce n'est que par le travail du corps que l'esprit acquiert des connaissances» - Prolegomenes, p. 30. [2]

“Porás no cabeçalho do livro a cepa que te desenhamos,  porque é o emblema do trabalho do Criador. Aí se acham reunidos todos os princípios materiais que melhor podem representar o corpo e o espírito. O corpo é a cepa; o espírito é o licor; a alma ou espírito ligado à matéria é o bago. O homem quintessencia o espírito pelo trabalho e tu sabes que só mediante o trabalho do corpo o Espírito adquire conhecimentos[3]”. - Prolegômenos, p. 50.

Inicialmente, é essencial frisar que a palavra utilizada é emblema e não símbolo. Tal palavra vem do grego “μβλημα - émblema”, «algo para se inserir dentro[4]»” ou ainda «ornamento sobre vasos[5]», e se refere ao sinal distintivo ou ilustração que auxilia no entendimento e fixação de uma composição moral. Ter ou não uma ilustração representa a diferença entre um emblema e outras peças morais, tais como os provérbios, os ditos e expressões sapienciais. Ademais, no emblema, texto e figura se auxiliam na compreensão global do assunto[6]. Diferentemente do símbolo, que é uma ilustração, mas que não precisa estar necessariamente vinculado à alguma informação ou conteúdo moral.

O emblema do trabalho do Criador é a videira e alguns comentários podem ser feitos sobre a questão. Os apontamentos são no intuito de explorar as ideias embutidas no item para uma melhor compreensão de aspectos do Espiritismo e de suas práticas. Não se tem a intenção de exaurir o tema, tampouco de questionamentos. O entendimento e assimilação do emblema pode nos auxiliar em nosso trabalho e caminhada nas vinhas de Deus.

A videira apresenta algumas características ímpares sobre superação, resiliência, capacidade de frutificação e expansão que merecem atenção e reflexão. Para a produção de vinhos ícones, solos pouco dotados e carentes de matéria orgânica propiciam condições especiais para o desenvolvimento da planta. A parreira quando plantada em terreno com solo fértil e rico em matéria orgânica propicia uma planta com sistema radicular menos profundo do que quando cultivada em solo pedregoso, por exemplo. Muitas regiões produtoras de vinhos de guarda costumam ser áreas com solos parcos, o que obriga a videira a desenvolver raízes mais profundas para alcançar os nutrientes necessários no subsolo. Em outras palavras, as dificuldades configuram o caminho para a planta se desenvolver de modo a potencializar seus resultados com excelência. Ademais, sinaliza a importância de Deus e dos antepassados para que se tenha um sistema radicular melhor desenvolvido. É a busca do Criador no interior profundo para suprir os nutrientes justos para a vida, assim como a gratidão e zelo aos espíritos afins. Outra maneira possível de contemplar o sistema radicular é vinculá-lo à educação moral da infância devido ao período inicial de formação do indivíduo[7].

Outro fato sobre a videira é sua capacidade de se adaptar às condições climáticas extremas e a sua velocidade de regeneração, floração e frutificação. Em regiões vitivinícolas, há a nítida percepção de diferentes cenários conforme as estações e épocas do ano. Vale destacar que, tradicionalmente, a cultura vem de regiões de clima temperado e a capacidade de resiliência e superação das dificuldades é notória. Em linguagem artística, pode-se dizer que a videira vence a neve, o deserto e as intempéries ambientais para frutificar com louvor a missão da planta. Certamente a tarefa da vindima ou da colheita configura ponto simbólico importante, ainda que existam trabalhos silenciosos do mosto até a produção final do vinho.

Outro elemento essencial para a produção da planta é a incidência solar. Por meio da fotossíntese o vegetal tem a capacidade de produzir energia para vencer as adversidades externas e de frutificar de modo adequado. Por isso, as videiras que têm alta incidência solar tendem a produzir frutos mais doces. O que permitirá no futuro a fabricação de vinhos de referência. Assim, “amarrai as cepas, para que não caiam e se mantenham erguidas, e suas ramas subirão ao céu[8]”.

A ascensão e fototaxia é facilitada por meio das gavinhas presentes na videira e que a auxiliam no apoio para seu crescimento. Estas gavinhas se assemelham a pequenas “molas” e ajudam na fixação e adaptação da planta para avançar no crescimento ascensional para a luz.  Conta-se no emblema reproduzido em O Livro dos Espíritos, três gavinhas e quatro folhas para apenas um único cacho de uva. O cacho perfeito não é composto apenas de um único bago excepcional, mas de todos. É a importância da família e do grupo de espíritos afins. Todavia, se em um único bago podemos saber a quantidade de sementes, em cada semente não podemos determinar quantas videiras existem. Assim, tanto a qualidade individual quanto coletiva contam para o progresso geral.

Mas, apenas a planta em si não gera bons vinhos. É essencial também a interação com o ser humano e com aquilo que se denomina de terroir. O terroir é a interação de fatores naturais com os tecnológicos e humanos que permite a criação de áreas com identidade própria e características definidas, tanto em questões organolépticas, quanto econômico-sociais. Neste sentido, as áreas de Champagne na França, Priorat ou La Rioja na Espanha, Douro em Portugal são regiões com características de vinhos definidos devido à interação desses multifatores. Diferentemente do vinho fermentado em processo natural ao acaso, o vinho produzido pelo ser humano, a partir do momento que dominou sua técnica de produção, tende a valorizar certos padrões e gostos ao invés de outros. Assim, seja por fatores históricos, seja por elementos naturais, as regiões produtoras de vinho se organizaram e se diferenciam uma das outras por meio de seus terroirs.

Destas regiões com excelentes terroirs são produzidos vinhos de renome mundial. Esses vinhos tintos de guarda são conhecidos por amadurecerem e ganharem características notórias adicionais. Ou ainda, corrigir suas falhas iniciais para se mostrar como produto superior que melhorou com o tempo. É a exuberância do vinho que se apresenta excepcional não mais pela aparência externa jovial, mas pelo brilho sutil e requintado de nuances imperceptíveis para a grande maioria das pessoas. É preciso ser um legítimo connoisseur para apreciar todas as matizes envolvidas de um vinho superior. É a sofisticação dos sentidos de modo a ultrapassar o tradicional e que envolve educação e práticas, esforços e conquistas para organizar o aparelho biológico e mental para captar e diferenciar tais microtons. De certo modo, em muitos pontos se assemelha com o desempenho da mediunidade.

Sobre o correto aprimoramento do ser humano em conjunto com o tempo, também é uma proposta do Espiritismo, em especial com a reencarnação. Desta maneira, o conteúdo é melhorado a cada troca de casco. Nas considerações expostas pelo Evangelista Lucas[9]: “E ninguém deita vinho novo em odres velhos; de outra sorte o vinho novo romperá os odres, e entornar-se-á o vinho, e os odres se estragarão”. Passagem similar é encontrada em outros Evangelistas[10] também. Por meio da reencarnação, o vinho que antes parecia de menor qualidade vai se depurando a ponto de não precisar mais do casco[11].

A parreira é uma planta de exuberante produção de frutos e, no caso dos vinhos comerciais modernos, é necessário que o produtor realize podas planejadas das gemas. O que permite diminuir o número de cachos para que se produzam frutos de melhor qualidade. Ademais, cortes regulares na própria planta são fundamentais para sua renovação e contínua produção. As podas são maneiras de equilibrar a matéria seca da planta com a parte verde, o que possibilita melhor rendimento e aproveitamento da videira. Retirar os tocos e galhos secos permite também evitar problemas com fungos e outros micro-organismos que atrapalham a saúde da videira como um todo.

Por meio das podaduras se prepara o futuro, ao mesmo tempo que gerencia o presente, os recursos da parreira e suas condições. É estar atento e não se descuidar como legítimo jardineiro fiel.

E nas recomendações de Santo Agostinho: “Para trabalhar na vinha é preciso ser robusto e poderoso; o homem deve ter o vigor que Deus lhe deu. Ele não criou a Humanidade para a transformar em raça bastarda e macilenta; ele a fez como manifestação de sua glória e de seu poder[12]”. É dar o seu testemunho a Deus para tornar sacra a vida por meio de seu protagonismo e também iniciativa nas obras de realização. Por isso, o jardineiro próspero também é cocriador no jardim do mundo.

Além disso, por meio das podas, as mudas são elaboradas para expansão do vinhedo. Nas recomendações do autor espiritual: “Cortai os brotos e plantai-os em outro campo; eles produzirão novas vinhas e outros brotos em todos os países do mundo[13]”. E Santo Agostinho nos apresenta de forma magistral: “Essa vinha esplêndida que deve erguer-se para Deus é o Espiritismo[14]”. Uma autêntica ode ao futuro do Espiritismo.

Além do aspecto da videira, destaca-se também que o vinho é bebida presente em diversas passagens da Bíblia. Cita-se, por exemplo, o desembarque de Noé: “E começou Noé a ser lavrador da terra, e plantou uma vinha[15]”. Adiciona-se também o primeiro milagre de Jesus nas bodas de Canaã com a transformação da água em vinho[16], além das valiosas passagens sobre os diferentes trabalhadores nas vinhas do Senhor[17].

Entretanto, nos Prolegômenos, não é citado diretamente a palavra vinho “vin”, mas licor “liqueur”. Esta é uma bebida doce realizada por meio do contato prolongado da fruta com o meio, no caso com o álcool, o que possibilita a transformação do conteúdo que antes eram dois elementos separados em apenas um. Diferentemente do vinho que passa por um processo de fermentação natural, o licor simboliza o refinamento do trabalho humano em parceria com Deus. E como nos é recordado no texto, apenas com o trabalho pode o indivíduo trazer a quintessência ao espírito. 

Deste modo, a videira como emblema do trabalho do Criador serve como fonte de inspiração e exemplo moral para levar adiante as nossas lutas diárias. De agradecer e resistir às dificuldades para cumprir a nossa missão com zelo e dedicação. De agir em prol da evolução presente e futura, e não ficar limitado ao que acontece em nível de superfície. Ter a confiança e a fé da perfectibilidade mesmo que os eventos aconteçam de modo sutil, invisível e silencioso. Ademais, precisamos apoiar e auxiliar nossos semelhantes na caminhada também. É essencial que as uvas estejam próximas do ponto de amadurecimento umas das outras. Caso contrário, a falta de uma doçura geral não permitirá a produção adequada de vinhos. A abundância não vem de apenas um único cacho, mas de todo o conjunto.

Portanto, agradecemos a Deus pelas oportunidades de estarmos na vinha e a Jesus pelo caminho e exemplo de dulcificação de nosso ser por meio do trabalho com tolerância, da solidariedade com paciência e da inteligência com amor. Nas palavras finais de Santo Agostinho: “Orai, amai e fazei a caridade, meus irmãos. A vinha é grande, o campo do Senhor é imenso. Vinde, vinde: Deus e o Cristo vos chamam e eu vos abençoo[18]”.


 

[1] LINK-1

[2] Allan Kardec. Le Livre des Esprits. Nouvelle Edition Conforme A La Seconde Edition Originale De 1860. Union Spirite Française Et Francophone. LINK-2

[3] Allan Kardec. O livro dos Espíritos. 2013.  

[4] LINK-3

[5] LINK-4

[6] Saunders, A. (1993). Is it a proverb or is it an emblem? french manuscript predecessors of the emblem book. Bibliothèque d’Humanisme et Renaissance, 55(1), 83–111. LINK-5

[7] Ver “Obras póstumas”, Allan Kardec, Item: Credo Espírita, educação e instrução.

[8] Santo Agostinho. “A Vinha do Senhor”. Revista Espírita: Jornal de Estudos Psicológicos - 1862. Brasília: FEB, 2004, p. 136.

[9] Lucas 5:37

[10] Marcos 2:22; Mateus 9:17

[11] O Livro dos Espíritos, pergunta 168.

[12]Santo Agostinho. “A Vinha do Senhor”. Revista Espírita: Jornal de Estudos Psicológicos - 1862. Brasília: FEB, 2004,  p. 137.

[13] Santo Agostinho. “A Vinha do Senhor”. Revista Espírita: Jornal de Estudos Psicológicos - 1862. Brasília: FEB, 2004,  p. 136.

[14] Santo Agostinho. “A Vinha do Senhor”. Revista Espírita: Jornal de Estudos Psicológicos - 1862. Brasília: FEB, 2004, p. 136.

[15] Gênesis 9:20

[16] João 2:11

[17] Mateus 20:1-16; Lucas 20:9-19; Marcos 12:1-11.

[18] Santo Agostinho. “A Vinha do Senhor”. Revista Espírita: Jornal de Estudos Psicológicos - 1862. Brasília: FEB, 2004, p. 137.

    

     
     

O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita