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por Ricardo Baesso de Oliveira

 

Sobre o prazer e o pecado, um pensamento de Kardec


Dentre os diversos comportamentos que realizamos no dia a dia, alguns deles se identificam com um impulso interior surgido seja de necessidades corporais, seja de forças instintivas mal conhecidas. Esse “impulso interior” se chama motivação e os atos que ele provoca chamam-se comportamentos motivados. Os estados motivacionais criam uma espécie de tensão (às vezes até um desconforto) que dispara a execução de uma sequência de comportamentos dirigidos ao objetivo de dissipar a tensão e o desconforto iniciais. Via de regra, ao dissipar a tensão, esses comportamentos causam prazer. A fome é um dos estados motivacionais (gera tensão e desconforto), enquanto o ato de comer é um dos comportamentos motivados provocados por ela (gera prazer).

Os neurocientistas reconhecem três classes de estados motivacionais. [i] A primeira é formada por motivações elementares provocadas por forças fisiológicas bem definidas e garantem a sobrevivência do indivíduo em seu ambiente. Fazem parte dessa classe de motivações elementares o frio e o calor, que nos fazem vestir um casaco ou ligar o ventilador, a ingestão de líquidos em decorrência da sede e a ingestão de alimentos, consequente da fome.

A segunda classe de motivações está ligada à sobrevivência não do indivíduo, mas da espécie. É o caso do sexo. Ao contrário dos anteriores, não está relacionado a nenhuma carência interior. Bem diferente do que se acreditava no passado, não se pode detectar um déficit orgânico que cause um impulso sexual. [ii] A tensão sexual surge a partir de estímulos visuais, auditivos, táteis ou decorrentes de pensamentos ou memórias que “ativam” centros neuronais do hipotálamo. Assim, pode-se considerar que a resposta sexual humana constitui um conjunto de modificações fisiológicas que ocorrem após estímulos sexuais positivos. A tensão sexual gerada por esses estímulos pode, ou não, se acompanhar de um comportamento sexual. [iii]

A terceira classe está ligada ao nosso bem-estar psicológico, como sentir-se seguro, valorizado, benquisto, ou inserido em uma comunidade. Para isso, estudamos, trabalhamos, compramos livros, fazemos esportes e atuamos em partidos políticos, organizações comunitárias ou centros espíritas.

Podemos, a partir desses conceitos básicos, refletir sobre o prazer e o pecado. Vamos considerar prazer como uma sensação de satisfação ou bem-estar que surge em decorrência da satisfação de uma vontade, uma necessidade ou do exercício harmonioso das atividades vitais, pecado como atitudes eticamente reprováveis, que causam prejuízo para nós mesmos e para os outros.

Destacamos, a respeito do tema, o seguinte pensamento de Kardec: Deus não condena os gozos terrenos; condena, sim, o abuso desses gozos em detrimento das coisas da alma. [iv]

É contundente a afirmação de Kardec: Deus não condena os gozos terrenos! E não poderia ser de outra forma: foi Deus, através da evolução biológica e espiritual que fez com que diversos comportamentos humanos se tornassem prazerosos. Não poderia Deus condenar o que Ele próprio criou: o prazer de um copo de água fresca quando temos sede, de uma refeição quentinha quando temos fome, da segurança do lar, da intimidade sexual com a pessoa amada, ou do sentir-se querido e valorizado pela comunidade em que estamos inseridos. Todas essas condições são respostas prazerosas a condições prévias que, de uma forma ou de outra, se tornaram “necessárias” em algum momento. E por que Deus/evolução as fez prazerosas? Exatamente porque são necessárias à nossa sobrevivência, à sobrevivência de nossa espécie e ao nosso bem-estar subjetivo. Se não fossem prazerosas, poderiam ser negligenciadas, comprometendo o plano divino do progresso pessoal e coletivo.

No entanto, ao mesmo tempo em que Kardec ratifica a ideia de que nada tem de pecaminoso o usufruto prazeroso dos bens da Terra, o codificador alerta quanto ao abuso, o excesso e o desequilíbrio: Deus condena o abuso desses gozos em detrimento das coisas da alma. Que são coisas da alma? A vida plena (em abundância, como disse Jesus), a paz, a saúde mental, a ausência de dor e angústia, o conhecimento e a sabedoria, a serenidade e a calma. Todas as vezes em que a busca do prazer extrapola os limites da funcionalidade e compromete negativamente os valores do espírito, torna-se “pecaminosa”, porque disfuncional, carreando consigo sofrimento a nós mesmos e àqueles que convivem conosco.

Nosso prazer não pode ser fonte de sofrimento... para nenhum ser vivo. Penso que seja isso o que nosso codificador quis dizer.


 

[i] Cem bilhões de neurônios, Robert Lent, cap. 15.

[ii] Cem bilhões de neurônios, Robert Lent, cap. 15.

[iii] Neuropsicofisiologia do desejo sexual: alguns aspectos da regulação funcional da motivação sexual, Symone Lopes Francelino Gonçalves Silva, monografia do curso de pós-graduação em neurociência da UFMG, 2011.

[iv] ESE, cap. 2, item 6.


 

 

     
     

O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita