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por Rogério Coelho

 

Alçados ao desgoverno da ambição


Todo o saber é renovável e transformável


“(...) Dai, pois, a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus.” Jesus. (Mt., 22:21.)


Nada pode explicar com maior e mais peregrina clareza o aspecto dicotômico da vida como essas palavras de Jesus registradas por Mateus, vez que existe a vida material e a vida espiritual, ambas solidárias e interdependentes.

Durante a encarnação, consoante os alvitres da Justiça Divina, as perspectivas espirituais ficam toldadas e o Espírito calceta, atordoado e anestesiado pelos apetites grosseiros, desgoverna-se nos meandros dos instintos primitivos, perdendo o contato com os mananciais superiores da vida Espiritual; e, na voluptuosidade de um rio que arrebenta os diques que o barravam, corre em incontrolável carreira, esfaimado e violento, atrás de nonadas que venham suprir as suas ilimitadas e insaciáveis ambições...

Afirma Xavier de Maistre que há duas individualidades no homem: são o “Eu” e a “Besta” ou Alma e Matéria dos espiritualistas.

Segundo Eça de Queiroz[1]: “é inegável essa duplicidade na mesma organização; sucedendo na maioria dos casos que vivem em permanente desacordo, ou em eternas recriminações, como dois cúmplices do mesmo crime, presos pela mesma grilheta martirizadora.

Havendo, pois, essa dualidade, e cada uma delas com gostos e necessidades naturalmente desiguais, é inútil que cada pessoa veja para qual dos lados deve propender; ou, quando melhor, diligenciar e harmonizar ambas. Parece que, como Deus ao colocar o homem na Terra, lhe teria dito também: ‘escolhe’.

O homem possui na Alma os germens dos mais variados e antagônicos sentimentos e a faculdade arbitrária de escolher, cultivar e desenvolver, em si próprio, os que melhor aprecie, os que mais ame ou aqueles que lhe pareçam mais úteis ou mais belos.

Para conhecer e escolher tem o homem a inteligência, a razão e a vontade.

Que é preciso ao homem para que faça a escolha acertada?  Evidentemente uma aspiração que o norteie, como bússola pela qual se guie. Ora, essa aspiração deve ser a meta a alcançar.

Para o perfeito cumprimento de sua missão na Terra, deverá o homem seguir o conselho que Jesus deu aos fariseus: ‘a Deus o que é de Deus e a César o que é de César’.

Na vida terrena, deve procurar aproximar-se do tipo ideal de homem completo. E só é assim aquele que norteia a sua vida pelo culto ao trabalho, à honradez e à virtude.  Na virtude reside toda a manifestação de lealdade, de honestidade, de brio, de dignidade própria e respeito pela dignidade alheia.

No amor ao próximo, no uso da humildade espiritual, da modéstia, da simplicidade, na prática, e até na intenção do bem, está todo o serviço a Deus, e todo o caminho direito e liso, amplo e luminoso como uma tarde de verão, para a vida na Terra.

No metódico equilíbrio entre as exigências do Espírito e as da matéria, e na sua salutar e comedida satisfação a elas, está a mais difícil ciência de todas as que na Terra devem preocupar o cérebro humano: a ciência de saber viver.  É complexa!...  

 As multíplices facetas da existência exigem infinitos cuidados para que sejam conservadas sempre puras, sempre brilhantes, sempre imaculadas... É absolutamente impossível haver quem atravesse o charco desse mundo, conservando-se completamente limpo das impurezas que aí tentam manchar e corromper tudo. Entretanto, o homem deve procurar fazê-lo... Em cada tentativa de aperfeiçoamento, conquistará sempre alguma coisa aproveitável que, insensivelmente, capitalizará. Não deve escravizar-se nunca a preconceitos, nem deixar-se subjugar por hesitações ou fraquezas. Deve ter a sua aspiração sempre aberta ao saber, como uma página em branco. À proporção que se lhe depare o desconhecido e novo, estude, medite, aprofunde; e, depois de convencido, escreva na página branca da sua aspiração os sinais da sua conquista.

Não cristalizar nunca... Todo o saber é renovável e transformável, e o seu cérebro deve acompanhar todas as fases evolutivas do progresso humano. Nada há imóvel na Natureza.

O homem que num calmo momento de meditação olhar para o seu passado verá, assombrado, as transformações profundas, maravilhosas, operadas insensivelmente à sua atenção desprevenida; e se olhar para a vida do mundo, abismar-se-á ao ver como dia a dia, minuto a minuto, o tempo – supremo iconoclasta – vem destruindo as mais basilares teorias, as mais incontroversas ideias, os mais sólidos monumentos, as mais inatacáveis fortalezas naturais do mundo: tudo que parecia estável, indestrutível e eterno, soçobra...

O impossível de ontem é a realidade de hoje; o inconcebível hoje será o vulgarizado amanhã.

Sendo assim, não é, pois, legítimo, não é decente, não é honesto haver quem, apegando-se ‘a priori’, negue por capricho e por inconsciência aquilo que se afirma como produto honrado e lídimo de laboriosas pesquisas, de excepcionais trabalhos, persistentemente feitos, sinceramente elaborados. Pode admitir-se a dúvida antes de estudar-se; a negativa depois de estudar-se; mas a negativa simples, isolada de estudo e provas, é vazia de senso de respeitabilidade.

Quem não estudar não pode dizer, conscienciosamente, senão que ignora. Avançando à negativa formal, com pretensões a superioridades dogmáticas, envolvendo as suas opiniões em chispas de ironia, em repelões de insultos, nuns escarninhos assomos de magíster, não faz outra coisa, na quadra evolutiva e transformadora que a humanidade atravessa, que demonstrar a suprema satisfação da mais bela e da mais orgulhosa imbecilidade”.  

 

[1] - LACERDA, Fernando de. Do País da Luz. 4. ed. Rio [de Janeiro]: FEB, 1984, vol. 3, cap. III.


 

 

     
     

O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita