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por Rogério Coelho

 

Origem e queda do patriarcalismo



A triste sorte das mulheres começa lá na longínqua gênese moisaica

“Vigiando e orando, teremos sempre presente no Espírito a grandeza da nossa insignificância e a insignificância de nossa grandeza.”  - Hermínio C. Miranda[1]

 

Os Espíritos Superiores nos lembram[2] que em certos países como na Índia, por exemplo, as mulheres se queimavam “voluntariamente” sobre os corpos mortos dos maridos, obedecendo a um preconceito machista, julgando com isso cumprir um dever.  Tal é o resultado da nulidade e da ignorância com que se veem a braços.

A triste sorte das mulheres começa lá na longínqua gênese moisaica, onde lemos no versículo dezesseis: “afligir-te-ei com muitos males durante a tua gravidez; parirás com dor; estarás sob a dominação de teu marido e ele te dominará”.

Herculano Pires nos leva, através de um périplo histórico, a um ponto de perspectiva de onde podemos observar o nascimento e o declínio da injusta opressão exercida pelo homem sobre a mulher, da qual ainda restam alguns trágicos remanescentes, haja vista a situação aflitiva e dramática das afegãs e de outras que vivem no continente africano, em pleno alvorecer do terceiro milênio.

Já se vão longe os tempos em que os concílios da Igreja tinham em sua pauta a incrível questão: “as mulheres têm alma?” E não podemos nos esquecer daquela pobre francesa guilhotinada pela audácia de postular a paridade dos direitos entre o homem e a mulher.  As raízes do patriarcado, portanto, se perdem na noite dos tempos a começar com o mitológico quadro de Adão e Eva no Paraíso.

Acompanhemos Herculano Pires nessa viagem histórica[3]: “todos conhecemos a alegoria bíblica da formação do homem, mas nem todos sabemos que, para muita gente, essa alegoria representa uma verdade incontestável, uma realidade. Diz a tradução de Almeida, no cap. II do Gênesis, versículo 7: “e formou o Senhor Deus o homem do pó da terra, e soprou em seus narizes o fôlego da vida:  e o homem foi feito alma vivente”.

Na tradução de Figueiredo “o pó da terra” é substituído pelo “barro da ter­ra”. De qualquer maneira, o fato essencial é o mesmo em todas as versões bíblicas, ou seja: Deus formou o homem da terra e assoprou-lhe a vida nas narinas.

O Espiritismo não pode admitir que essa alegoria, aliás, muito bela e expressiva, seja tomada ao pé da letra.  Kardec admite, em “O Livro dos Espíritos”, que Adão tenha realmente existido, como possível sobrevivente de um cataclismo na região citada pela Bíblia. Mas ad­verte que é mais razoável considerá-lo como um mito ou uma alegoria, “personificando as primeiras idades do mundo”. A espécie humana não começou por um só homem: surgiu na Terra pelo encadeamento natural da evolução dos seres. No livro básico do Espiritismo intitulado a “A Gênese”, Allan Kardec estuda a posição do homem na escala animal e declara: “por mais que isto possa ferir o seu orgulho, o homem deve resignar-se a ver no seu corpo material o último elo da animalidade na Terra”.

Há contradição, neste ponto, entre a Bíblia e o Espiritismo? Kardec responde acertadamente que não, porque o Espiritismo apenas explica a alegoria bíblica, dá-lhe a necessária interpretação, esclarece-nos quanto ao “espírito da letra”, em vez de escravizar-nos à “letra que mata”. Os que, pelo contrário, se apegam à letra, acabam fazendo da Bíblia um livro absurdo, contraditório e inaceitável para as pessoas de discernimento lúcido...  Os Espíritos esclarecem bem esta questão, como vemos na pergunta 47 de “O Livro dos Espíritos”, quando respondem que a espécie humana estava entre os elementos orgânicos do globo terrestre, e veio a seu tempo; sendo isso que deu motivo a dizer-se que o homem foi feito do limo da terra. Como se vê, por esta clara resposta, a obra de Deus não se assemelha aos grosseiros trabalhos humanos. Deus cria através de processos cósmicos ainda inacessíveis ao nosso entendimento. Os livros bíblicos não poderiam tratar da criação do homem senão de forma alegórica.

Eva e a costela de Adão: um mito de origem social - Acreditam alguns comentaristas e exegetas que a alegoria bíblica da criação da mulher tinha uma finalidade social: incutir no homem o respeito pela companheira tirada da sua própria carne. A verdade, ao que parece, é outra. Esse objetivo seria mais bem atingido se Deus criasse o casal ao mesmo tempo. A Bíblia deu preferência ao homem e colocou a mulher em segundo plano. O motivo deve ser a necessidade de atender aos preconceitos da época.  Mas é incrível que até hoje, no mundo inteiro, multidões de pessoas acreditem que Adão dormiu sozinho e acordou acompanhado de Eva, porque Deus lhe tirou uma costela e dela fez a primei­ra mulher.

A passagem figura no cap. II do Gênesis, versículos 18 a 25.   Note-se que Deus já havia criado todas as coisas, o mundo já estava feito e povoado de animais, com Adão solitário no Éden, quando a mulher foi cria­da. Tudo concorre para a sua situação de dependência e subserviência das sociedades patriarcais. O próprio Moisés não compreenderia a mulher criada ao mesmo tempo em que o homem.  Por isso, o Espírito-guia do povo hebreu, que na verdade era o deus-familiar de Abrão, Isaac e Jacó, lançou mão dessa alegoria ingênua e poética, proveniente de lendas folclóricas.

Quem estuda, na História das Religiões e na Antropologia Cultural, o problema das cosmogonias antigas, não tem dúvida quanto à natureza lendária e alegórica dessa passagem bíblica. Basta recordar os processos mitológicos de criação, em que os próprios deuses eram tirados do corpo de outros deuses e as criaturas humanas também, como no caso muito conhecido da descendência de Brama, na Índia.  Aceitar, pois, literalmente, o relato bíblico da criação da mulher é deixar de lado a nossa faculdade de pensar, que Deus nos deu para que seja usada e desenvolvida cada vez mais.

A situação de dependência da mulher se justifica ainda com a alegoria do pecado original, pois é a mulher, criatura inferior, que põe o homem a perder. O Cristianismo veio modificar essa situação, típica das sociedades patriarcais de toda a Antiguidade, ao valorizar a mulher no plano espiritual, como vemos no Novo Testamento, a começar do nascimento do Messias. O Espiritismo, que representa o desenvolvimento natural do Cristianismo, completa essa modificação ao esclarecer que o Espírito não tem sexo e se encarna neste ou naquele sexo de acordo com as suas necessidades evolutivas.  Por isso Jesus ensinou que os Espíritos “nem se casam nem se dão em casamento, pois são como os anjos do céu”, como vemos na passagem de Mateus sobre a ressurreição (Mt., 22:23 a 33).

Afirma o ínclito Codificador[4] do Espiritismo que Moisés não estava lá muito equivocado ao dizer que Deus formou o homem do limo da Terra. A Ciência, com efeito, mostra que o  corpo do homem se compõe de elementos tomados à matéria inorgânica, ou, por outra, ao limo da terra.

A mulher formada de uma costela de Adão é uma alegoria, aparentemente pueril, se admitida ao pé da letra, mas profunda, quanto ao sentido. Tem por fim mostrar que a mulher é da mesma natureza que o homem, que é, por conseguinte, igual a este perante Deus e não uma criatura à parte, feita para ser escravizada e tratada qual hilota”.

Kardec esclarece a alegoria da queda do homem na Bíblia - O dogma da queda do homem é sustentado no campo religioso como um dos mistérios de Deus, impenetrável à inteligência humana. Seu fundamento bíblico é o cap. III do Gênesis. Todos conhecem a lenda poética da árvore proibida, no meio do Jardim do Éden com a serpente demoníaca (a píton grega) enganando Eva, que leva Adão ao pecado original da desobediência. Mas em virtude do dogmatismo fideísta das religiões, poucas pessoas admitem a natureza alegórica desse conto ingênuo. O símbolo está evidente, à flor da pele...  Mas os que consideram a Bíblia como a palavra de Deus não podem admiti-lo. Entendem a alegoria co­mo realidade divina, tomando-a simplesmente ao pé da letra.

Ainda em “A Gênese”, Kardec explica no capítulo XII, toda a simbologia dessa passagem bíblica: Adão é a personificação da humanidade e sua falta representa a fragilidade humana; a árvore da vida é o símbolo da vida espiritual, que desenvolve a consciência humana e o livre-arbítrio da criatura; o fruto proibido está no meio do jardim de delícias, porque é a tentação dos prazeres materiais; a desobediência de Adão e Eva é a violação das leis de Deus pela concupiscência do homem; a serpente é a imagem da perfídia, da maldade humana que in­cita os outros ao erro...

Pergunta Kardec: “por que impor à fé ingênua da credulidade infantil, como verdades, alegorias tão evidentes, falseando o seu julgamento e fazendo-as mais tarde encarar a Bíblia como um conjunto de fábulas absurdas?”  

A partir de meados do século XIX, o Espiritismo colocou a derradeira “pá de cal” no patriarcalismo, marcando-lhe a definitiva queda, ao guindar a mulher ao nível da insofismável realidade, na qual ela está realmente situada, consoante o exposto na resposta dada pelos Espíritos Superiores à questão 821 de “O Livro dos Espíritos”: “as funções a que a mulher é destinada pela Natureza têm importância maior que as deferidas ao homem, visto que a ela lhe compete dar as primeiras noções da vida”.

O Espiritismo não poderia ter outro posicionamento, pois, revivescendo os ensinamentos de Jesus, ele tem que ser coerente com o Meigo Rabi, que foi segundo Amélia Rodrigues[5] O LIBERTADOR DA MULHER.

 “(...) Sabia Jesus que o sentimento feminino, preparado para a maternidade, não teme sacrifícios nem receia situações penosas, porque é constituído para a renúncia de si mesmo e para a abnegação até o holocausto, havendo-lhe sido confia­do o ministério de amar as criaturas desde o momento da sua formação no seio.

Desse modo, investiu na sua sensibilidade e nobreza, conferindo-lhe confiança e concedendo-lhe a dignidade que lhe havia sido retirada pelas paixões subalternas dos legisla­dores antigos e dos profetas fanáticos.

Deus a todos fez com igualdade, estabelecendo polaridades para o elevado princípio da reprodução, sem qualquer inferioridade, como parte de outrem.  O processo de vida é o mesmo, organizado molécula a molécula sob a Lei de transformações incessantes e renovações intérminas. 

As mulheres, ao lado de Jesus, eram as mãos do socorro atendendo os enfermos, as criancinhas aturdidas e rebeldes que lhe eram levadas, providenciando alimentos e roupas, auxílio de todo jaez nas jornadas entre as aldeias e cidades, povoados e ajuntamentos.

(...) Eram as suas vozes meigas e compassivas que tranquilizavam os exasperados antes de chegarem até o Mestre; sua paciência e gentileza que amainava a ira e a rebeldia prece­dentes ao contato com Ele, constituindo segurança e alívio para as provas que os desesperados carregavam em clima de reparações dolorosas.

Conhecidas já, aos seus afagos recorriam muitas outras mulheres sofridas e amarguradas, que experimentavam o opróbrio e a humilhação doméstica, e às quais confortavam com o seu próprio exemplo e fé. Jesus as necessitava, nelas depositando esperanças em favor de um mundo novo onde não mais existissem as discriminações nem os preconceitos de qualquer natureza”.


 

[1] - MIRANDA, Hermínio C. Candeias na Noite Escura. Rio [de Janeiro]: FEB.

[2] - KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. 88. ed. Rio [de Janeiro]: FEB, 2006, q. 955.

[3] - PIRES, Herculano. Visão Espírita da Bíblia. São B. do Campo: Correio Fraterno, 1989.

[4] - KARDEC, Allan. A Gênese. 43. ed. Rio [de Janeiro]: FEB, 2003, cap. XII, item 11.

[5] - FRANCO, Divaldo. Até o Fim dos Tempos. 2. ed. Salvador: LEAL, 2000. pp. 103 a 105.


 

     
     

O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita