Clássicos
do Espiritismo

por Angélica Reis

 
Deus na Natureza

Camille Flammarion

(Parte 35)


Continuamos o estudo metódico e sequencial do livro Deus na Natureza, de autoria de Camille Flammarion, escrito na segunda metade do século 19, no ano de 1867.


Questões preliminares


 

A. Segundo a visão materialista da vida, com que finalidade existe a Humanidade?

Finalidade nenhuma. Flammarion mostra nesta obra que em tais doutrinas – que ele chama de perniciosas – não existe lugar para a esperança, moral para a consciência, luz para os pendores do coração, justiça na ordem universal, consolação para o aflito. E mais: a população do globo não tem à sua frente nenhuma finalidade. Existimos para quê? Para nada, eis o que as doutrinas materialistas respondem. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Personalidade Humana.)

B. Há proposições firmadas pelos defensores das doutrinas materialistas que confirmam a resposta acima?

Claro. Eis duas delas: “As leis da Natureza são forças bárbaras, inflexíveis; não conhecem a moral nem a benevolência.” (Vogt). “A Natureza não ouve as queixas nem as preces do homem, antes as repele inexoravelmente em si mesmo.” (Fuerbach). E até Lutero, o líder da Reforma, excluiu Deus dos acontecimentos com que lidam os homens: “Sabemos, por experiências próprias, que Deus absolutamente não se imiscui, de qualquer forma, nesta vida terrestre.” (Lutero). (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Personalidade Humana.)

C. Como em tais doutrinas é conceituado o homem?

Segundo Broussais, Cabanis, Locke e Condillàc, o homem é, simplesmente, o conjunto de órgãos em função. O eu, a personalidade humana, não é um ser suis generis, é um fato, é um resultado, é um produto imputável a tal ou qual disposição da matéria. Inteligência e sensibilidade são funções do aparelho nervoso. A existência da alma não é mais que uma hipótese que não se funda em observação qualquer, que nenhum raciocínio autoriza, por gratuita e até mesmo destituída de senso. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Personalidade Humana.)


Texto para leitura


634. Certo, o homem de gênio quando compõe não pensa mais em si mesmo, isto é, nos seus mesquinhos interesses e paixões, na sua pessoa trivial; pensa no que pensa, ou, por outra, não seria mais que um eco sonoro e ininteligente, o que São Paulo admiravelmente qualifica de cymbolum sonans. Numa palavra: o gênio é, para nós, o espírito humano no seu melhor estado de saúde e vigor. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. O Cérebro.)

635. Nada obstante, isolados no seu triste deserto, nossos apaixonados fisiologistas fazem a noite em torno de si, recusam confessar as faculdades mais nobres do espírito humano. Pretendem ser os rigorosos intérpretes da Ciência, ter em suas mãos o futuro da inteligência, a olharem desdenhosos os pobres mortais, cujo peito serve de refúgio derradeiro à fé no passado e à esperança exilada. Fora do seu círculo não há mais que trevas, fantásticas ilusões. Eles têm na mão a lâmpada da salvação, sem perceberem (ai de nós!) que o fumo negro que dela se exala perturba a visão e falseia a rota. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. O Cérebro.)

636. Tudo comprimem, à força, para lhe extrair a essência, e quando chegam a capacitar-se de que a essência não corresponde ao que esperavam, declaram que “a essência das coisas não existe em si mesma e não passa de relações, que acreditamos apreender nas transformações da matéria”. Não há outra lei que a da nossa imaginação, nem mesmo forças, mas simplesmente propriedades da matéria, qualidades ocultas que, em lugar de nos fazer evoluir, recuam-nos a vinte séculos atrás, ao tempo de Arístoto. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. O Cérebro.)

637. Suas conclusões são meramente arbitrárias, nem a Química nem a Física as demonstram, qual dão a entender. Não são proposições geométricas a derivarem necessariamente umas das outras, como outros tantos corolários sucessivos, mas enxertos estranhos, arbitrariamente soldados à árvore da Ciência. Felizmente para nós, eles também desconhecem as leis da enxertia. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. O Cérebro.)

638. Essas vergônteas natimortas, de uma espécie exótica, são incapazes de receber a seiva vivificante, e a árvore em crescimento as esquece no seu progresso. Dito seja que, também hoje, elas, essas vergônteas, não oferecem viabilidade maior que ao tempo de Epicuro e Lucrécio. A posteridade não terá, jamais, o trabalho de lhes recolher flores e frutos. Entretanto, a dar-lhes ouvidos, dir-se-ia estarem elas tão naturalmente enxertadas na árvore da Ciência, que se nutrem da sua própria vida e se alimentam por seus próprios cuidados, como se uma mãe inteligente pudesse consentir em derramar a seiva do seu leite nos lábios de semelhantes parasitas! (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. O Cérebro.)

639. Do ponto de vista histórico, a atitude magistral que eles tomam, diante dos representantes da Ciência moderna, é curiosa e digna de atenção. E fazem sucesso, visto que, nem todos sendo sábios, há entre eles alguns que ocupam as primeiras linhas da Ciência e, tendo publicado sobre a Física obras de valor, as impõem e induzem a aceitar a falsa metafísica desses experimentadores.(Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. O Cérebro.)

640. Diante do resultado dessas tendências, diante da materialização absoluta de todas as coisas, desse pretenso termo último do progresso científico – o aniquilamento da lei criadora e da alma humana, a que se reduzem as mais nobres aspirações da Humanidade com as suas crenças mais instintivas e suas concepções mais antigas e mais grandiosas? Que resta das ideias de Deus, justiça, verdade, bem, moralidade, dever, inteligência, afeição? Nada, nada mais que poeira vil. Todos nós, pensadores animados do ardente desejo de saber, não passamos da evaporação de um pedaço de graxa fosforada! (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. O Cérebro.)

641. Admiremos os panoramas soberbos da Natureza, elevemos o pensamento a essas alturas luminosas e douradas de sol, nas horas melancólicas da tarde, escutemos as harmonias da música humana e deixemo-nos embalar pela melodia dos ventos e dos zéfiros, contemplemos a imensidade múrmura dos mares, subamos ao cimo esplendente das montanhas, observemos a marcha tão bela e tocante da vida planetária em todas as suas fases, respiremos o perfume das flores, elevemos o olhar às estrelas radiosas que se ostentam nos esplendores do azul, ponhamo-nos em comunicação com a Humanidade e sua história, respeitemos os gênios ilustres, os sábios que dominaram a matéria, veneremos os moralistas perseguidos, os legisladores de povos e permitamos ainda à amizade reunir corações, ao amor que palpite em nosso peito, ao patriotismo e à honra que nos inflamem o verbo, e, nessas ilusões caducas, não haverá mais que o efeito químico de uma mistura, ou de uma combinação de alguns gases. É uma questão de peso e de volume nos equivalentes do oxigênio, do hidrogênio, do fósforo, do carbono, que se juntam no alambique do cérebro em maiores ou menores proporções! (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. O Cérebro.)

642. Virtude, coragem, honra, afeto, sensibilidade, desejo, esperanças, discernimento, inteligência, genialidade, tudo combinações químicas! Saibamo-lo de uma vez por todas, a vida é tão somente isso. Que o coração nos paralise, que nossa alma não se preocupe mais com os bens intelectuais, que o nosso olhar não mais se eleve aos céus. Para quê? A vida do espírito nada mais é que um fantasma... Demo-nos por felizes, com o saber que não passamos de secreção impalpável e inconsistente de três ou quatro libras de medula branca ou cinzenta!... (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. O Cérebro.)

643. A Personalidade Humana – Felizmente para as grandes e respeitáveis verdades de ordem moral, não estamos reduzidos a curvar a cabeça diante de tão grosseira conclusão. Como nos dias decantados pelo célebre autor latino das Metamorfoses, temos nascido para ficar de pé e contemplar o céu. Certo, poderíamos invocar aqui o testemunho imponente dos sentimentos mais profundos da natureza humana; poderíamos evidenciar, à luz meridiana, que nestas doutrinas perniciosas não há mais lugar para a esperança, moral para a consciência, luz para os pendores do coração; bondade natural, justiça na ordem universal, consolação para o aflito, e mais, que a população do globo não mais tem à sua frente nenhuma finalidade, nenhuma claridade, nenhuma lei intelectual. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Personalidade Humana.)

644. Rolando, por aí além, turbilhonante, levada no espaço obscuro pela rotação e translação rápidas do globo e renovando-se a cada instante pelo nascimento e morte de seus membros, ela – a Humanidade – não passa, à superfície desse globo, de bolorento parasita cegamente desabrochado e perpetuado por forças químicas. Sim, poderíamos, invocando o testemunho dos corações que ainda pulsam e das almas que ainda creem, dispor em linha de batalha os argumentos ainda vivazes da Filosofia e da Psicologia e derribar o adversário, constrangendo-o a confessar-se vencido. Todavia, como preferimos combater no mesmo terreno e com as mesmas armas, pretendendo refutá-los só em nome da Ciência de que se dizem intérpretes, apraz-nos permanecer no campo exclusivamente científico e desdenhar, qual o fazem eles, os silogismos da Psicologia. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Personalidade Humana.)

645. Deixamos, assim, sem resposta as seguintes proposições adversas e os comentários com que as esticam:

“As leis da Natureza são forças bárbaras, inflexíveis; não conhecem a moral nem a benevolência.” (Vogt).

“A Natureza não ouve as queixas nem as preces do homem, antes as repele inexoravelmente em si mesmo.” (Fuerbach).

“Sabemos, por experiências próprias, que Deus absolutamente não se imiscui, de qualquer forma, nesta vida terrestre.” (Lutero). (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Personalidade Humana.)

646. Aí temos conceitos bem consoladores, não é assim? Mas, repetimos: o sentimento não é cabedal científico e por isso não entraremos nesse capítulo. Esta abstenção não nos impede, bem entendido, de convidar o leitor a meditar e decidir para que lado lhe pendem o coração e a razão. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Personalidade Humana.)

647. Contudo, apenas do ponto de vista da observação científica e deixando de lado os pendores do coração e os imperativos da consciência – que não deixam de algo ser na história da alma – dizemos que fatos há, nos domínios da observação pura, completamente inexplicáveis na hipótese materialista. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Personalidade Humana.)

648. No precedente capítulo, o leitor ainda pode ficar suspenso entre as duas hipóteses, porquanto apresentamos fatos mutuamente oscilantes, que deixam o espírito indeciso quanto ao centro de gravidade. Agora, porém, o centro de gravidade vai passar ao corpo das doutrinas espiritualistas e os que o não seguirem muito se arriscarão a desequilibrar-se e a cair, rápido, no mais vazio dos vácuos. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Personalidade Humana.)

649. Exporemos, em primeiro lugar, as afirmativas materialistas contra a existência da alma e, para não falar só dos estranhos e fazer ao mesmo tempo o histórico do materialismo em nosso país, escutemos Broussais, cuja obra foi o primeiro toque de reunir dos nossos modernos epicuristas e inaugurou, no século 19, a primeira fase desse curso pouco luminoso. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Personalidade Humana.)

650. Para Broussais, como para Cabanis, Locke e Condillàc, o homem é, simplesmente, o conjunto de órgãos em função. O eu, a personalidade humana não é um ser suis generis, é um fato[i], é um resultado, é um produto imputável a tal ou qual disposição da matéria[ii]. Inteligência e sensibilidade são funções do aparelho nervoso, mais ou menos como a transformação dos alimentos é função do aparelho digestivo[iii]. A existência da alma não é mais que uma hipótese que se não funda em observação qualquer, que nenhum raciocínio autoriza, por gratuita e até mesmo destituída de senso[iv]. Reconhecer no homem mais que um sistema orgânico é cair nos absurdos da Ontologia[v]. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Personalidade Humana.)

651. Cabanis, no seu livro bem conhecido, e Destutt de Tracy, na sua análise racional das relações do físico com o moral, emitem as mesmas opiniões, mas, sob forma menos explícita. Segundo os exagerados defensores da doutrina da sensação, a pessoa humana confunde-se nas funções orgânicas. Na realidade, ela não existe. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Personalidade Humana.)

652. Todos os homens, em todos os tempos e por toda a parte, acreditaram na existência pessoal, sentiram-se viventes e pensantes; todas as línguas enunciaram, nas primeiras páginas dos anais humanos, a existência do pensamento individual, a alma, a inteligência, o espírito, não importa sob que nome (poderíamos encher uma página de nomes primitivos, arianos, sânscritos, gregos, latinos, celtas, etc., mas uma tal nomenclatura não se faz necessária e nossos leitores, certo, sabem da existência desses vocábulos). (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Personalidade Humana.)

653. O bom senso popular, tanto quanto o gênio filosófico, espontaneamente acreditaram, desde que o mundo é mundo e existem seres racionais na Terra, que existe em nosso corpo algo mais que a matéria, uma consciência própria, sem a qual não existiríamos e que se comprova a si mesma, pelo só fato da certeza íntima. Enfim, todos sentiram que nem o corpo, nem tampouco o mundo exterior, constituem a entidade pensante. Entretanto, a Humanidade do passado, como do presente, parece que não leva em conta a opinião dos materialistas. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Personalidade Humana.) (Continua no próximo número.)

 


 

[i]     De l’Irritation et de la Folie, página 153.

[ii]    Idem, página 171.

[iii]   Idem, Prefácio, 19º.

[iv]   Reponse aux Critiques, página 30.

[v]    De l’Irritation, etc., página 122.

 

 

     
     

O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita