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Correio Mediúnico
Ano 10 - N° 505 - 26 de Fevereiro de 2017
 
 


 

 
Papai rico

 Irmão X 


Conheci Cantídio Pereira em pleno fastígio econômico. Duas fazendas na gleba fluminense e grande conjunto residencial em formosa praia do Rio. Gostava de carros e viagens, diversões e aperitivos. Era, em suma, cavalheiro elegante e bem-posto, relacionando anedotas finas em cada conversação.

Não abraçava o grande amigo, desde muito tempo, quando fui reencontrá-lo, justamente ali, em velha casa consagrada a problemas e assuntos de reencarnação.

Recolhi-o, de encontro ao peito, com a felicidade de quem surpreende um irmão em país diferente, e passamos a falar no mesmo idioma de carinho e recordação.

Ignorando-lhe a mudança, da Terra para a Vida Espiritual, era natural me espantasse, não apenas por revê-lo em pessoa, mas também ao verificar-lhe a aflitiva apresentação. O antigo “gentleman”, que envergava costumes de puro linho inglês nos repastos do Leme, parecia desempenhar agora o papel de mendigo. Veste rota, desajeitada. Amargura, desencanto, tristeza...

Foi por isso, talvez, que as minhas primeiras indagações veladas respondeu sem rebuços:

– Não se admire, meu caro... Não é a morte que opera tamanha transformação. É a própria vida que continua...

– Mas você...

– Não faça perguntas – falou bem humorado –, explicarei...

E prosseguiu:

– Você provavelmente ainda não sabe que voltei da Terra, há dois anos. Tempo bastante para renovar-me em todas as dimensões, apesar de ter vivido por lá mais de setenta. Imagine que meus quatro filhos eram meus quatro amores. Viúvo desde a mocidade, concentrei neles a própria vida. João e Eduardo, Linda e Eunice resumiam meus sonhos. Casados, continuaram a ser minha doce alegria. Além disso, povoaram-me a velhice com quatro netos, que eram para mim claros jorros de sol. Julguei que a morte não nos distanciasse uns dos outros ; entretanto, meu amigo, tão logo cerrei os olhos, a paixão do dinheiro endoideceu minha gente. Tudo começou, ao pé das orações que fizeram de boca, por intenção de minha felicidade, no sétimo dia depois da grande separação.

Conduzido por mãos amigas ao templo religioso em que se ajuntavam, observei, assombrado, que filhos e filhas, noras e genros se entreolhavam com inesperada desconfiança. Em seguida às preces, Linda e Eunice começaram a rixar em nossa casa, pela posse de alguns pratos de porcelana chinesa, não pelo valor afetivo que assinalavam, mas pelo preço a serem vendidos na feira de antiguidades. Chamados à cena, Eduardo e João, com as respectivas esposas, desceram a outras minúcias e, ali mesmo, no santuário doméstico, vi lembranças quebradas, vasos atirados pelas janelas, livros queimados e retratos destruídos, com a troca abundante de murros e palavrões. O lar, dantes respeitado, fez-se palco de luta livre.

Chorei e implorei concórdia, mas ninguém me sentiu a presença. Na noite desse mesmo dia, meus genros procuraram meus filhos, com pesadas reclamações. Afirmando-se injuriados, exigiam adiantamento sobre a herança. Surpreendidos por ameaças, na solidão do extenso gabinete que me fora refúgio, meus rapazes assinaram cheques vultosos, tomados de ódio silencioso.

No dia imediato, um dos genros comprou carro de luxo, iniciando-se em bebedeiras, enquanto o outro dava curso à recalcada predileção pelas corridas, adquirindo cavalos de grande fama. Linda e Eunice reclamaram em vão. Totalmente alterados pelo dinheiro fácil, ambos desgarraram para o vício. Minhas filhas passaram a conhecer dificuldades que nunca viram. Linda, mais sensível, adoeceu, e, porque mostrasse profundo desequilíbrio nervoso, foi recolhida a uma casa de alienados mentais. Eunice enlouqueceu de outro modo... Acompanhando o marido para fiscalizar-lhe as noitadas alegres, aderiu aos prazeres noturnos, caiando em conflitos sentimentais de que somente se livrará Deus sabe quando... João e Eduardo, a princípio unidos pelo interesse, acabaram desavindos... Disputaram a posse das vacas, praguejando entre si... Depois, divergiram quanto à escolha das terras, em seguida venderam-me as casas, devastando-me os bens, assumindo a posição de inimigos ferozes... De bolsos recheados, esqueceram as obrigações de família e puseram-se, desorientados, no tropel da aventura... As noras igualmente, acreditando mais no dinheiro que no trabalho, descambaram para mentiras douradas, apodrecendo em preguiça, e os meus pobres netos são hoje meninos infelizes... Os dois menores estão viciados em gotas entorpecentes e os dois maiores em flagelo de lambreta...

De expressão desenxabida, Pereira ajuntou:

– Nunca recebi dos meus o favor de uma prece realmente sincera, nem o socorro de um só pensamento de gratidão... No fundo, colhi o que semeei... Acima da riqueza amoedada, deveria colocar o trabalho e a educação, a fraternidade e a beneficência... Agora, é preciso voltar à Terra, começar tudo de novo e olvidar a minha tragédia de papai rico...

Nesse ínterim, o dirigente da instituição chamou por ele e pude ouvir o instrutor dizer-lhe, grave:

– Seu pedido de reencarnação, por enquanto, não tem fundamento... Você tem créditos para repousar e preparar-se, por mais quarenta a cinquenta anos, junto de nós...

– Entretanto – falou Cantídio –, tenho pressa... Aspiro a novo corpo de carne, a agir e a esquecer...

– Bem – aduziu o diretor –, para o momento, só dispomos de recurso difícil. Só existe uma oportunidade, já, já... O irmão poderá reencarnar na região do Rio de Janeiro, mas... não na beleza e na glória da grande cidade que tanto amamos, mas, sim, entre os filhos de um casal de idiotas, no antigo Morro dos Cabritos...

Cantídio, no entanto, longe de aborrecer-se, pôs as mãos postas em sinal de agradecimento e gritou, feliz:

– Obrigado! Obrigado!... Renascer no Morro doa Cabritos, com pouca memória, é muita felicidade!...

E concluiu, transtornado de júbilo:

– Bendito seja Deus!

 

Do livro Luz no lar, obra mediúnica psicografada pelo médium Francisco Cândido Xavier.



 


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 Revista Semanal de Divulgação Espírita