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Crônicas e Artigos
Ano 2 - N° 76 - 5 de Outubro de 2008

JOSÉ CARLOS MONTEIRO DE MOURA
jcarlosmoura@terra.com.br
Belo Horizonte, Minas Gerais (Brasil)
 

O bode expiatório

“E Arão lançará sorte sobre os dois bodes; uma pelo Senhor, e a outra por Azazel. Então apresentará o bode sobre o qual cair a sorte pelo Senhor, e o oferecerá como oferta pelo pecado”. - Levítico, 16: 8 e 9.

 
As tradições religiosas dos judeus consagravam o curioso costume do bode expiatório, que, segundo a bíblia, consistia em descarregar sobre as costas desse animal todos os pecados cometidos durante o ano, o que lhes ensejava a oportunidade de, a partir do novo período que se iniciava, cometerem novas faltas ou reincidirem na prática das anteriores.

O Antigo Testamento dedica-lhe inúmeras passagens no Levítico, Números, Provérbios e Ezequiel. Além do bode expiatório, que era sacrificado, no templo, pela expiação dos pecados, há notícias também de um bode emissário, que conduzia para o deserto, onde acabava sucumbindo, todos os pecados do povo. A respeito, vê-se em Levítico (16; 5 a 10): – “E da congregação dos filhos de Israel tomará dois bodes para expiação do pecado e um carneiro para holocausto. Depois Arão oferecerá o novilho da expiação, que será para ele; e fará expiação por si e por sua casa. Também tomará ambos os bodes, e os porá perante o SENHOR, à porta da tenda da congregação. E Arão lançará sorte sobre os dois bodes; uma pelo SENHOR, e a outra pelo bode emissário. Então Arão fará chegar o bode, sobre o qual cair a sorte pelo SENHOR, e o oferecerá para expiação do pecado. Mas o bode, sobre que cair a sorte para ser bode emissário, apresentar-se-á vivo perante o SENHOR, para fazer expiação com ele, a fim de enviá-lo ao deserto como bode”.

De acordo com Huberto Rohden (“QUE VOS PARECE DO CRISTO?”, Martin Claret Editores, São Paulo, 4ª edição, p. 95), tal costume perdurou por dois milênios e remontava a Abraão, ou, quando nada, a Moisés, a saber: “Por espaço de cerca de 2 mil anos, desde Abraão, ou, pelo menos, desde Moisés, praticou Israel a cerimônia do bode expiatório. Cada ano reunia-se o povo de Israel na esplanada do templo de Jerusalém. O sumo sacerdote colocava as mãos sobre a cabeça de um cabrito, transferindo para esse animal os pecados do povo. Depois, esse ‘bode expiatório’ era tocado para o deserto e precipitado por um barranco abaixo, onde morria. E com ele morriam todos os pecados de Israel como era crença geral. Um mensageiro voltava, agitando uma bandeira branca e exclamando: Deus extinguiu os pecados de seu povo, aleluia, aleluia! E havia grande alegria em Israel, porque todos se sentiam com carta-branca e podiam carregar de novo o carro de lixo para o próximo ano”.  

A. Van Selms (O NOVO DICIONÁRIO DA BÍBLIA, J.D. Douglas, tradução de João Bentes, Edições Vida Nova. S. Paulo, 1997, p. 174) explica que o ritual se achava vinculado à palavra azazel, que comporta quatro interpretações possíveis: “denota o bode expiatório e pode ser explicada como ‘o bode que se vai’; é usada como infinitivo ‘a fim de remover’; significa uma região desolada e é o nome de um demônio que vagueia naquela região”, para concluir que “o significado do ritual deve ser que o pecado, de maneira simbólica, foi removido da sociedade humana e levado para a região da morte (cf. Mc 7:19)”.  

Esse costume morreu para o Judaísmo, mas foi assumido pelo Cristianismo na doutrina da redenção da humanidade através do sacrifício de Jesus, que nada mais é do que uma adaptação do antigo hábito dos israelitas à sua liturgia. O seu ingresso nos arraiais cristãos reflete a tendência que nele se instalou a contar dos acontecimentos que se verificaram no Século III, quando, entre outras inovações, foi elevado à condição de religião oficial do Império romano (Edito de Tessalônica, 381).

Crenças, rituais, símbolos e hábitos de outras religiões passaram a integrar o seu contexto, numa medida conciliatória de cunho pouco religioso e nitidamente político, cujo objetivo final visava a atender principalmente aos interesses de mando e dominação do já decadente e outrora temível império.

Em face disso, tornou-se necessário adequar as idéias e princípios cristãos aos hábitos e práticas de outras religiões. O lugar do bode expiatório, que se achava vago, foi simbolicamente ocupado por Jesus. Desde então, uma parte da cristandade vem sistematicamente transferindo para ele suas culpas e erros, confiante de que o episódio do Gólgota, metafórica e diuturnamente repetido em certos rituais de suas igrejas, possui o poder de redimi-la e de lhe assegurar um lugar no paraíso celeste.  Já não se trata mais de um inocente animal que, morrendo, apaga todos os pecados da humanidade, mas de um único homem sem pecado, que a ortodoxia romana, assimilando igualmente tradições de outros credos, estabeleceu dogmaticamente ser o próprio Deus (Concílio de Nicéia, 325).

Tudo começou com a inconseqüente lenda da queda de Adão, em face de sua desobediência às ordens divinas. O resultado foi a cólera desmedida do Criador que, embora sabedor de sua absoluta e total ignorância, o puniu, bem como a todos os seus descendentes, de uma maneira arbitrária e cruel. Essa punição que, em termos bíblicos, constitui a primeira sentença penal proferida na Terra, afronta os mais comezinhos princípios da eqüidade e justiça, e nem o mais feroz magistrado medieval teria, em sã consciência, a coragem de prolatá-la.

Todavia, ela foi obra do magistrado divino! Suas incongruências atentavam contra a mais rudimentar manifestação da inteligência humana e revelavam uma incomensurável falta de lógica. O seu autor navegou no mar encarapelado dos absurdos e das extravagâncias. Atribuiu a si próprio, não obstante a sua condição de Deus, uma postura espiritual de mínima estatura, típica dos seres mais atrasados deste pouco evoluído planeta Terra. Somente o pequeno progresso moral pode explicar a sua ira ilimitada, e a terrível condenação que fez cair sobre toda a humanidade. Não se cogitou sequer, na espécie, da aplicação dos rudimentares princípios da Lei de Talião que, embora o seu condenável barbarismo, significava um avanço considerável no sistema punitivo, uma vez que estabelecia uma proporção entre a agressão e a reação do ofendido. A imposição da pena obedeceu ao atávico primitivismo das vinganças privadas, quando a vítima ou seus familiares exerciam o seu direito (sic) de forma absoluta e sem qualquer limite. Deus era, portanto, tão atrasado e primitivo como os mais bárbaros habitantes do início da vida no Planeta!

Talvez tenha sido esse o motivo por que o autor da ofensa e os seus descendentes - que passaram a carregar consigo os efeitos da desastrosa conduta de seus pais - jamais tenham se mostrado capazes de entender o estranho mecanismo da justiça do Altíssimo. Em virtude dessa incapacidade, os filhos de Adão, durante milênios, fartaram-se na prática de toda sorte de erros, como conseqüência da triste realidade a que foram reduzidos, e que os leva, inexoravelmente, para o seu sucessivo cometimento. É o absurdo efeito do pecado congênito com que todos nascem, em virtude dos equívocos paternos de milhares de anos atrás!

Lamentavelmente, essa situação perdura até hoje, e o homem, acomodado diante dela, contenta-se com a fantasiosa lenda de obter a sua própria salvação mediante o sacrifício de um terceiro. É a consagração da abominável injustiça de um inocente pagar pelos pecadores, ou, em termos da justiça terrena, ser condenado no lugar de um criminoso de altíssima periculosidade.  

Até a época de Jesus, era compreensível que o aterrorizante e antropomorfo Deus dos judeus e as monstruosas divindades de outros povos fossem parcialmente acalmados em suas cóleras divinas mediante sacrifícios e rituais semelhantes ao do bode expiatório. A partir de Sua vinda ao mundo, quando revelou à humanidade a verdadeira concepção de Deus, mostrando-o e retratando-o como o Pai soberanamente bom e justo, deixaram de existir as condições para a sobrevivência de tais costumes.  Contudo, apesar de todas as conquistas religiosas da humanidade, aqueles hábitos persistiram até a atualidade. Considerável contingente humano ainda não se encontra devidamente amadurecido e esclarecido para rejeitar a crença de que foi redimido de seus erros graças à imolação do Cristo no Calvário.

Apesar da enorme incongruência que a tese consagra, ela é apresentada como decorrência do amor que Deus dedica a Seus filhos terrenos, o que fez com que Ele se julgasse na obrigação de praticar a maior injustiça de que se tem notícia na história da Terra, exigindo que Seu “filho muito amado” se sacrificasse em benefício dos demais. 

Paradoxalmente, a vítima de tão hedionda conduta foi aquele que, no dizer dos beneficiados, era o único, entre todos, que jamais praticara algum pecado de qualquer natureza. A Sua superioridade espiritual de tal modo impressionou os homens que estes resolveram divinizá-Lo.

A doutrina da redenção humana por meio do sangue de um justo não ultrapassa, portanto, os limites de uma mal simulada repetição da grotesca cerimônia do bode expiatório. Reflete o velho e cômodo costume de a humanidade procurar iludir-se a si mesma, quanto à forma de quitar seus débitos para com a justiça divina. Essa ilusão, porém, foi repelida por aqueles que, em todas as épocas da história, tiveram a coragem de refletir sobre o porquê da vida, sobre o seu sentido e sobre a sua finalidade. 

Quando o Espiritismo descerrou o véu que ocultava essas verdades dos olhos do homem, o ciclo de obscurantismo em que ainda vivia perdeu sua razão. A partir de então, nenhum motivo justifica mais a insistência nessa exótica transposição de responsabilidade do criminoso para o inocente. As novas luzes que se projetaram sobre a Terra vieram relembrar os ensinamentos perenes do Mestre, dentre os quais desponta aquele que define a responsabilidade pessoal de cada um pelas ações, boas ou más, que tiver praticado, porquanto “a cada um será dado de acordo com suas obras”.

É importante, pois, que os espíritas não se deixem levar pelos apelos que ainda jazem adormecidos no subconsciente de muitos, resultantes das experiências vividas nesta ou em reencarnações passadas e que os atraem para práticas e costumes semelhantes. A velha herança, adquirida por força de vínculos milenares com as religiões dos formalismos e dos rituais, não pode e não deve servir de motivo para que os mentores espirituais das instituições espíritas se vejam, guardadas as devidas proporções, transformados em bodes expiatórios ou em bodes emissários dos erros, deslizes, quedas, tropeços, dificuldades, sofrimentos e problemas dos que se afirmam seguidores da Doutrina dos Espíritos. Principalmente, no que diz respeito ao bode emissário, predomina ainda e lamentavelmente, em algumas casas espíritas, o inconveniente costume de se depositar sobre os ombros dessas entidades o encargo de examinar e solucionar toda sorte de problema, inclusive materiais, de dirigentes e de freqüentadores. É a cultura da veneração do guia, manifestada em forma de uma autêntica “guiolatria”. Presta-se apenas a servir de causa para deturpar o verdadeiro objetivo do Espiritismo que, muito antes de se preocupar em ser o “solucionador dos problemas insolúveis” de seus simpatizantes e profitentes, preocupa-se, isto sim, em propiciar-lhes as condições necessárias à promoção de sua renovação moral e espiritual.   

Tal costume deve ser definitivamente abolido, uma vez que jamais será admissível, no seio da Doutrina, a inusitada convivência com os Procuradores Espirituais dos encarnados, aos quais eles outorgam poderes ilimitados para representá-los junto ao Tribunal Divino e promoverem a sua salvação!   

Mesmo porque o Espiritismo, graças a Deus, nada tem a ver com as religiões salvacionistas que ainda existem por aí.


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O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita