Os caminhos de Allan Kardec para consolidar o aspecto
moral do Espiritismo
Em parceria com Adair Ribeiro Júnior e Carlos Seth
Bastos, a pesquisadora Luciana Farias realizou um estudo
sobre a historiografia da escolha do título de O
evangelho segundo o espiritismo, incluindo a mudança
de planos e os bastidores da motivação de Allan Kardec
ao longo da concepção da obra.
A análise, que foi um dos temas apresentados no 20º
Enlihpe – Encontro Nacional da Liga de Pesquisadores do
Espiritismo, realizado em agosto em Campinas, teve por
base conteúdos descobertos recentemente, através de
cartas trocadas entre Kardec e sua esposa Amélie Boudet.
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Luciana Farias é mestre em ciências da
computação pela |
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Universidade Salvador, BA, e vem realizando um
trabalho de comparação das diferentes versões
dos textos das obras de Allan Kardec, cujo
resultado tem sido disponibilizado como e-books gratuitos
em seu site obrasdekardec.com.br. |
Nesta entrevista, a pesquisadora explica aos leitores
do Correio não somente como surgiu O evangelho
segundo o espiritismo, mas os caminhos percorridos
por Kardec até a publicação definitiva da obra.
Acompanhe.
Como foi o processo de construção da obra O evangelho
segundo o espiritismo?
Para a escrita de Imitação do evangelho segundo o
espiritismo, título da primeira edição desta obra,
Allan Kardec se isolou no Balneário de Sainte-Adresse,
no norte da França, em meados de 1863.
Tivemos acesso a cartas trocadas entre ele e sua esposa
Amélie, entre 6 e 21 de setembro de 1863, que contam
alguns detalhes dessa história. Constatamos que Amélie
acompanhou seu marido no início do retiro, retornando a
Paris no início de setembro, e que o professor solicitou
a ela que o médium D’Ambel, seu secretário na época,
pedisse conselhos ao Espírito da Verdade, a Erasto ou a
outro espírito bom sobre o andamento de seus trabalhos.
A elaboração da obra, que contém o detalhamento da moral
espírita, foi iniciada bem antes desse retiro, por volta
de 1862, logo após o lançamento de O livro dos
médiuns.
O primeiro anúncio veio na contracapa da primeira edição
de O espiritismo em sua mais simples expressão,
sob o título As vozes do céu, e apresentava o
plano inicial: “interpretações atuais sobre as
diferentes partes do ensinamento moral dos espíritos”.
Alguns meses depois, a obra foi anunciada como “no
prelo”, sob o novo título de As vozes do mundo
invisível, e assim seguiu sendo anunciada
durante o ano seguinte.
Finalmente, em fevereiro de 1864, Kardec avisa, na Revista
Espírita, que seu novo livro estaria disponível no
mês seguinte e que o plano inicial havia sido
radicalmente mudado. Pelas cartas, constatamos que foram
as inspirações dos espíritos, favorecidas pelo período
de recolhimento, que levaram Kardec a promover tais
alterações.
O que levou Kardec se isolar para escrever O
evangelho?
Kardec necessitava desse recolhimento e isso está muito
bem explicado numa comunicação espiritual que recebeu,
reproduzida na carta de 14 de setembro de 1863,
publicada em Obras póstumas: “(...) minhas vozes
íntimas se fazem ouvir em torno de ti e teu cérebro
percebe as nossas inspirações, com uma facilidade de que
nem tu mesmo suspeitas. Nossa ação, principalmente a do
Espírito da Verdade, é constante ao teu derredor e tal
que não a podes negar. Assim sendo, não entrarei em
detalhes ociosos a respeito do plano de tua obra, plano
que, segundo meus conselhos ocultos, modificaste tão
ampla e completamente. Compreendes agora por que
precisávamos ter-te sob as mãos, livre de toda
preocupação outra, que não a da doutrina. Uma obra como
a que elaboramos de comum acordo necessita de
recolhimento e de insulamento sagrado.”
Correspondências de 11 e 15 de setembro de 1863 também
atestam que a mudança temporária de residência promoveu
melhorias na condição de saúde de Kardec, revelando que
ele teve oportunidade de tomar “banhos medicinais” que o
fortaleceram e eliminaram a fraqueza que vinha sentindo
nas pernas há algum tempo.
Como pesquisadora, como você analisa o fato de a obra
ter passado por títulos diferentes?
A obra teve quatro títulos propostos por Kardec e um
proposto pelo Espírito da Verdade. Sabemos com segurança
somente o motivo da troca de título da primeira para a
segunda edição. Os demais, podemos apenas inferir.
Considerando que o plano inicial da obra era tratar dos
ensinos morais dos espíritos, me parece que Kardec optou
por um título que representasse a origem destes
ensinamentos: primeiro, de forma metafórica, em As
vozes do céu, e depois, de forma mais direta, em As
vozes do mundo invisível.
A mudança no plano da obra para tratar, de forma
central, dos ensinamentos morais de Jesus, a partir do
Evangelho, tendo os ensinamentos dos espíritos um papel
complementar de confirmação, me parece justificar a
troca do título para Imitação do evangelho segundo o
espiritismo.
O editor Didier só soube do título no momento da
impressão e ficou desconfortável com o uso do termo
“Imitação”, dada a coincidência com títulos de obras
católicas à época, como: Imitação de Jesus Cristo e Imitação
da Virgem Maria.
Em março de 1865, após consultar dr. Demeure e o
Espírito da Verdade, Kardec optou por retirar
“Imitação”, simplificando o título, definitivamente,
para O evangelho segundo o espiritismo.
Penso que o título da primeira edição, incluindo a
palavra “Imitação”, tinha o sentido de convidar os
leitores à ‘prática’ do Evangelho à luz da doutrina
espírita, enquanto o título definitivo poderia passar
uma impressão equivocada de que o espiritismo teria
escrito um ‘novo evangelho’.
Qual título foi sugerido pelo Espírito da Verdade e o
que pode ter levado Kardec a não seguir sua sugestão?
Após concordar com Didier, de que o título da primeira
edição deveria ser modificado, o Espírito da Verdade
ofereceu como exemplo A moral do evangelho segundo o
espiritismo. Ele considerou essa opção alinhada com
o título sugerido para as obras que viriam na sequência,
dando como exemplo Os milagres e as predições segundo
o espiritismo (que futuramente incluiu o tema de a
gênese).
Entendo que, inicialmente, Kardec cogitou seguir essa
sugestão, pois na 6ª edição de O que é o espiritismo,
publicado em 1865, vemos cinco referências à obra com o
título proposto pelo Espírito da Verdade.
Kardec preferiu sua própria escolha. É isso?
O que podemos afirmar é que Kardec fez uma escolha
diferente. E dois pontos aqui merecem destaque.
Primeiro, esse é um exemplo claro do tipo de
relacionamento mantido entre Kardec e os espíritos, em
especial com o Espírito da Verdade, em que vemos, em
comunicações, serem abordadas outras questões, além do
ensinamento doutrinário. Inferimos, por essas e outras
comunicações que estudamos, que era um trabalho de
equipe, sendo frequente o diálogo entre Kardec e os
espíritos. No caso de determinações, Kardec seguia o
direcionamento da espiritualidade. Mas em se tratando de
sugestões, a decisão final era sempre dele, por vezes
acatando, outras não.
O segundo ponto é que nem sempre temos como saber as
razões das escolhas de Kardec, uma vez que dependemos
das informações documentadas em manuscritos ou nos
impressos. Importante é não perder isso de vista e
acabar caindo nos achismos.
Qual era, afinal, o propósito de Kardec com relação a O
evangelho?
Desde a primeira edição, o objetivo da obra foi
apresentado logo na seção 1 da introdução. No texto
definitivo, atualizado na terceira edição, vemos que
Kardec dividiu em cinco as matérias contidas no
Evangelho, sendo a última o ensino moral, a única
inatacável e por isso objeto de estudo daquele livro.
Para ele, o código moral de Jesus era uma regra de
conduta que abrangia todas as circunstâncias da vida
pública e privada, “o princípio de todas as relações
sociais que se fundam na mais rigorosa justiça. É,
finalmente e acima de tudo, o roteiro infalível para a
felicidade vindoura, o levantamento de uma ponta do véu
que ocultava a vida futura”.
Informações úteis sobre cada obra sempre foram incluídas
por Kardec em sua folha de rosto. Com essa obra não foi
diferente. Infelizmente, esta é uma página que não
costuma ser traduzida, ficando suas informações ocultas
aos leitores brasileiros.
Na folha de rosto da segunda edição, logo após o título,
Kardec incluiu “Parte moral”, uma espécie de subtítulo e
uma síntese do conteúdo que viria a seguir. Estes
dizeres foram suprimidos da edição atualizada e
definitiva. Seriam esses dizeres uma forma de acomodar a
referência à moral sugerida pelo Espírito da Verdade?
Por que foram suprimidos? Não temos como saber.
A estrutura do livro também foi delineada por Kardec na
folha de rosto. Logo abaixo do título consta: “contendo
as máximas morais do Cristo, sua concordância com o
espiritismo e sua aplicação às diversas situações da
vida”. Nos capítulos, vemos essa mesma sequência: as
citações bíblicas com as explicações dadas por Kardec,
seguidas das instruções dos espíritos, estando as partes
em concordância, oferecendo um complemento e um reforço
no entendimento.
Há algo mais sobre essa obra que você gostaria de
destacar?
Independentemente do título escolhido como definitivo,
vemos na obra duas referências ao primeiro título
inicialmente pensado – As vozes do céu – e uma
referência ao título controverso da primeira edição.
No prefácio, uma comunicação do Espírito da Verdade usa
esse termo: “[...] As grandes vozes do céu ressoam
como sons de trombetas, e o cântico dos anjos se lhes
associam” e na introdução, no final da apresentação dos
objetivos do livro, Kardec escreveu que “as instruções
dos espíritos eram verdadeiramente as vozes do céu que
vêm esclarecer os homens e convidá-los à imitação do
Evangelho”, compelindo a todos a colocar os
ensinamentos em prática.
Convido a todos a lerem um dos capítulos do livro e a
colocarem em prática, pelos próximos doze meses, os
ensinamentos morais abordados. Sei que é um grande
desafio, e afirmo, os ganhos vão fazer valer muito a
pena.
Saiba mais:
• O artigo completo está no livro Justiça
divina segundo o espiritismo, Ed. CCDPE-ECM.
• Assista no YouTube à apresentação de
“Os títulos de O evangelho segundo o espiritismo:
uma análise historiográfica”, realizada por Luciana
Farias durante o módulo 2 do 20º Enlihpe.
Esta matéria foi publicada originalmente
em 10 de outubro de 2025 no jornal Correio Fraterno, de
São Bernardo do Campo-SP.