Amarga experiência
Senhores!
Perdoai-me o tratamento, entretanto não me sinto ainda à
altura de chamar-vos “amigos” ou “irmãos”. Sou apenas um
mendigo de retorno ao vosso templo de caridade, a fim de
agradecer, ou simplesmente um homem desencarnado, em
tremenda guerra consigo mesmo, para não se arrojar ao
abismo da loucura, porquanto a loucura, quase sempre,
resulta de nossa inconformação ante a realidade das
situações e das coisas.
Com aprovação de vossos orientadores, venho trazer-vos o
meu reconhecimento e algo de minha amarga experiência,
como aviso de um náufrago aos viajantes do mundo.
Quantas vezes afirmei que o dinheiro era a solução da
felicidade!… Quanto tempo despendi, acreditando que a
dominação financeira fosse o triunfo real na Terra!… No
entanto, a morte me assaltou em plena vida, assim como o
tiro do caçador surpreende o pássaro desprevenido no
mato inculto…
Como foi o meu desligamento do corpo físico e quantos
dias dormi na sombra, por agora, nada sei dizer. Sei
hoje apenas que acordei no espaço estreito do sepulcro,
com o pavor de um homem que se visse repentinamente
enjaulado.
Sufocava-me a treva espessa. Horrível dispneia
agitava-me todo. Queria o ar puro… Respirar… respirar… E
gritei por socorro. Meus brados, contudo, se perdiam sem
eco.
Ao cabo de alguns instantes, notei que duas mãos
vigorosas me soergueram e vi-me, depois de estranha
sensação, na paz do campo, sorvendo o ar fresco da
noite. Que lugar era aquele? Uma casa sem teto?
De repente, a cambalear, reconheci-me rodeado de grandes
caixas fortes… Ao frouxo clarão da Lua, reparei que
essas caixas fortes surgiam milagrosamente douradas…
Tateei-as com dificuldade, percebi palavras em alto
relevo e verifiquei que eram túmulos… Espavorido,
transpus apressado as grades daquela inesperada prisão.
Vi-me, semilouco, na via pública. Devia ser noite alta.
Na rua, quase ninguém… Um bonde retardado apareceu.
Achava-me doente, inquieto e exausto, mas ainda
encontrei forças para clamar:
— Condutor!… Condutor!…
O homem, porém, não me ouviu. Caminhei mais depressa.
Tomei o veículo em movimento e consegui a situação do
pingente anônimo; todavia, com espanto, observei que o
bonde era todo talhado em ouro… As pessoas que o lotavam
vestiam-se de ouro puro. O motorneiro envergava uniforme
metálico.
Intrigado, sentia medo de mim mesmo. E, para
distrair-me, tentei estabelecer uma conversação com
vizinhos. Os circunstantes, porém, pareciam surdos.
Ninguém me ouvia.
Vencendo embaraços indefiníveis, alcancei minha
residência. As portas, no entanto, jaziam cerradas.
Esmurrei, chamei, supliquei… Mas tudo era silêncio e
quietação. E quando fitei o frontispício do prédio, o
ouro me cercava por todos os lados. Acomodei-me no chão
de ouro e tentei conciliar, debalde, o sono, até que,
manhãzinha, a porta semiaberta permitiu-me a entrada
franca.
Tudo, porém, alterara-se em minha ausência. Ninguém me
reconheceu. Fatigado, avancei para meu leito… Mas o
velho móvel apresentava-se-me agora em ouro maciço.
Senti sede e procurei a água simples, entretanto, o
líquido que jorrava era ouro, ouro puro…
Faminto, busquei nosso antigo depósito de pão. O pão,
todavia, transformara-se. Era precioso bloco de ouro, de
cuja existência, até então, não tinha qualquer
conhecimento em nossa casa.
Meditei… meditei…
Todos os meus afeiçoados como que conspiravam contra
mim… Não passava de intruso em minha própria moradia.
Dia terrível aquele em que reassumia ou tentava
reassumir o meu contacto com os seres amados que,
naturalmente, me deviam assistência e carinho!…
Depois de vastas reflexões julguei-me dementado.
Assinalei, dentro de mim, a necessidade do amparo
religioso.
Iniciei dolorido exame de consciência. Seria eu
católico? Em verdade, se eu me houvesse consagrado à
religião, não teria outra escola de fé. Colaborara no
erguimento de instituições pias. Conhecia pessoalmente o
Senhor Arcebispo. Convivera com sacerdotes. Frequentava,
de quando em quando, as igrejas, por imperativos da vida
social. Conhecia as obrigações do culto exterior.
Aí de mim!… Por que não obtinha o repouso necessário?
Passou o dia e veio a noite.
Alta madrugada, tornei à via pública e nela perambulei,
vacilante, procurando, através dos templos, alguma porta
que se me descerrasse, acolhedora. As igrejas, no
entanto, estavam repletas. Movimento enorme. Mais tarde,
vim a saber que outros desencarnados como eu imploravam
socorro…
Vagueei… vagueei… até que atingi um santuário de bairro
humilde.
Amanhecia… Vários grupos de crentes chegavam para a
missa. Gente simples, gente pobre. Entrei. Conturbado e
aflito, senti necessidade da confissão. Afinal, eu era
um católico que relaxara a própria fé.
Sem que ninguém me escutasse os apelos, pedi a presença
de um padre. Avancei para o confessionário e pus-me de
joelhos, mas, em poucos momentos, o confessionário
convertia-se para mim num guichê de banco.
Sobressaltado, ergui meus olhos para o altar. O altar,
porém, transformara-se em cofre forte.
Intentei consolar-me com a visão do missal, mas o livro
do culto, de repente, surgiu metamorfoseado num velho
livro de minha propriedade, em que eu lançava, às
ocultas, as minhas notas de rendimento real.
Diligenciei isolar-me. Temia a loucura completa. Ainda
assim, levantei meu olhar para a imagem da Virgem Maria.
Naturalmente, ela teria pena de mim, contudo, ante a
minha atenção, a imagem reduziu-se a uma joia de alto
preço… Fez-se toda de ouro, de ouro puro… Voltei-me para
dentro de mim. Busquei orar, orar, orar… sem poder.
A missa começara e tive a esperança de que o momento
reservado à Comunhão Eucarística seria aquele da
visitação do Santíssimo Sacramento. O Santíssimo
purificaria o lugar em que eu, pecador, me encontrava…
Todavia, quando alcei meus olhos para o sacerdote, que
empunhava, então, o cálice sagrado, notei que as hóstias
eram moedas tilintantes.
Horrorizado, tentei reconfortar-me com a visão da cruz…
Procurei-a, acima do altar que se havia erigido em cofre
forte, mas a cruz transformou-se também num grande
cifrão…
Ó Deus! que restava, então, de mim, senão o usurário
vencido?!…
Apavorado, tornei à rua. Sentia agora mais sede, muita
sede… Voltei-me para o corpo da igreja, como um filho
expulso do próprio lar, contudo, não mais a vi. Apenas,
estranha voz no alto gritou aos meus ouvidos,
ensurdecedoramente:
— Amigo, os filhos de Deus encontram nas casas de Deus
aquilo que procuram… Procuravas o ouro… Ouro
encontraste…
Qual mendigo desamparado, fugi sem destino. Queria agora
apenas água, água pura que me dessedentasse.
Conhecia a cidade.
Demandei uma caixa d’água que me era familiar no alto do
bairro de Santo Antônio.(1) A
água, ali, corria em jorros. Podia debruçar-me… Podia
beber como se eu fora um animal e, prostrado, não mais
de joelhos, mas de rastros, imploraria a graça de Deus.
Achei a água corrente, a água límpida visitada pela luz
do sol e estirei-me no chão… Mas, no momento preciso em
que meus lábios sequiosos tocaram o líquido puro, apenas
o ouro, o ouro apareceu…
Reconheci haver descido à condição de um alienado
mental. Lembrei-me, então, de velho amigo… Cícero
Pereira…(2)
Cícero era espírita e, por esse motivo, tornou-se para
mim alguém que eu supunha, em minha triste cegueira,
haver deixado na retaguarda da loucura.
Bastou a recordação para que a voz dele se me fizesse
ouvida. Acudia-me ao chamado. Amparou-me. Conversou
comigo. Depois de algumas horas de esclarecimento, que
eu não pude aquilatar com segurança, trouxe-me para
junto de vós.
Sobre a mesa que vos serve, depararam-se-me folhas
impressas que me pareceram cédulas valiosas. Esforcei-me
por fixar o Evangelho que compulsáveis no estudo, mas,
contemplando o Livro Divino, nele identifiquei apenas um
livro de cheques…
Não obstante atordoado, registei-vos a palavra
consoladora. Fui socorrido. De imediato, quase nada pude
reter de vossos apelos e ensinamentos. Contudo, depois
de alguns dias, o benefício das exortações recebidas
renovou-me o íntimo e, de amigos espirituais que
presentemente me ajudam a recuperação, aceitei a
incumbência de lidar com os associados de meu pretérito,
velhos conhecidos e amigos que manejam o dinheiro do
mundo, para, através deles, algo realizar que me possa
refazer a esperança…
Desde então, tenho falado em espírito, com mais de mil
pessoas, com mais de mil depositantes de ouro e
preciosidades, suplicando atenção para a caridade…
Entretanto, qual aconteceu com as sentinelas da vida
espiritual que me buscavam noutro tempo, tenho visto
apenas ouvidos de mármore, cabeças de pedra e corações
de gelo…
Somente agora, nesta semana, atingi um grande resultado.
Aproximei-me, com êxito, de um homem que guardava
algumas economias. Pude abeirar-me dele e dar-lhe um
pensamento: — “Oferecer um cobertor a uma viúva pobre.”
Ele acatou a sugestão. Comprou o cobertor e, em minha
companhia, ele mesmo entregou essa esmola de agasalho a
quem tinha frio!… Então, pela primeira vez, depois da
morte, uma nova alegria brotou de minhalma!…
Tenho hoje a ventura de crer que as visões do ouro
terrestre ficarão para trás… Doravante, espalharei, de
coração erguido a Jesus, o ouro do trabalho, o ouro do
pão, o ouro da água, o ouro da prece…
Ó Senhor, que esses fios de algodão, dados de boa
vontade, me envolvam também agora!… Sejam eles o
primeiro sinal de minha definitiva renovação, a luz da
prece de reconhecimento que venho, feliz, partilhar
convosco!…
Senhores, muito obrigado! Que Deus vos recompense!…
[1] Refere-se o comunicante a um dos
bairros da cidade de Belo Horizonte.
[2] Reporta-se a Cícero Pereira,
batalhador da Causa Espírita, em Minas Gerais, cuja
palavra figura também neste livro. — Notas do
organizador.
Nota do Editor:
O irmão F…, autor da mensagem acima, foi
na Terra grande banqueiro. Certamente não foi um
criminoso, na acepção comum do termo, mas, pelo conteúdo
espiritual de suas manifestações, parece haver sido um
desses homens “nem frios, nem quentes” do símbolo
evangélico, que, trazendo a mente amornada na ideia do
ouro durante a existência na carne, ficou por ela
dominado em seus primeiros tempos, além da morte. Seu
verdadeiro nome foi ocultado por motivos óbvios pelo
organizador do livro.
Do livro Instruções
psicofônicas, comunicação
transmitida psicofonicamente pelo médium Francisco
Cândido Xavier.
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