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por Paulo Hayashi Jr.

 

A tradição do “Lava-pés”


Há muitas passagens bíblicas que guardam informações e instruções valiosas para uma vida útil e feliz. Entretanto, para decodificar tais mensagens é preciso tanto conhecimento, quanto as “chaves” corretas. Infelizmente muitas informações se perderam ao longo do tempo e somente é possível, às vezes, certa leitura incompleta ou superficial da questão. Dentre as passagens da vida de Jesus Cristo que nos chegaram até nós, pode-se destacar a atividade de “lava-pés” como uma das mais emblemáticas e importantes (João 13:1-17). Não apenas por se tratar do início do “fechamento” das lições de Jesus com seus discípulos, como também uma imagem forte do modelo de trabalho e de serviço na Terra e que se mantém este ritual ainda hoje nas quintas-feiras santas, como preparativo para a santa ceia. Ou seja, antes do banquete desejado, a tarefa de se limpar. Não a autolimpeza rotineira e cotidiana, mas a atividade de ajudar o outro a se limpar. O que pode nos remeter ao conceito de coevolução. Na biologia, a coevolução refere-se ao processo evolucionário mútuo que uma espécie faz sobre outra. Esta pressão evolutiva acaba ocasionando ajustes de uma espécie para outra. Para a nossa área espírita de compreensão e trabalho, pode-se tratar a coevolução como sendo: eu me ajudo ajudando o outro. Não que Jesus precisasse desta ajuda, mas que era necessário ele deixar e frisar esta lição para a humanidade. A coevolução representa aspecto seguro para que todos saiam ganhando, uma legítima estratégia ganha-ganha. Ou nas palavras de Emmanuel[1]: “apenas tolerando e entendendo a poeira e o lodo que ainda repontem dos caminhos alheios, é que redimiremos os nossos, atingindo a verdadeira paz”.

Apesar de emblemática na tradição cristã, a atividade do lava-pés também aparece em outros trechos bíblicos do Antigo Testamento, tais como: Gênesis 18:4, Gênesis 19:2, Gênesis 24:32, Gênesis 43:24. Em tais passagens, a atividade expressa o oferecimento de água para limpar os pés como uma forma de hospitalidade para que a própria pessoa limpe a si mesmo. Entretanto, no texto do profeta Samuel (1 Sm 25:41) aparece algo semelhante ao episódio crístico por meio do diálogo de Abigail e os serviçais do rei: “Eis que a tua serva é criada para lavar os pés dos servos do meu senhor”. Uma criada especial que é Abigail, futura esposa do rei Davi, viúva de Nabal e famosa tanto pela sua beleza, quanto inteligência. O ato de servir como uma maneira de dar o exemplo e a exercitar uma influência positiva de construção de relações saudáveis e bem-quistas.

Apesar de representar uma passagem icônica no texto sagrado da bíblia, tal passagem não é exclusiva. Por exemplo, na “A Odisseia” de Homero, escrita por volta do século VIII a.C., o autor nos brinda com um episódio em que o herói Ulisses está disfarçado de mendigo para não chamar a atenção de seus inimigos no reino. Entretanto, ele é reconhecido por sua antiga ama, Euricléia, após ela ter lavado seus pés. Ela consegue reconhecer Ulisses devido a uma cicatriz que ele adquiriu em um acidente numa caçada de javalis. “Ela derrubou uma bacia de água com espanto. Lágrimas nublaram seus olhos e, com a voz trêmula de alegria, ela disse: - Ulisses, é você, meu querido filho? Como não reconheci você antes![2]”. O reconhecimento por Euricléia representa o clímax da epopeia e, a partir daí, o herói define suas estratégias e ações futuras. Entretanto, a atividade de lava-pés ultrapassa continentes. Buscando referências orientais, na Índia  da tradição védica também há uma passagem de Krishna com o seu amigo de infância Sudama[3]. Neste caso, o lava-pés é uma maneira de Krishna tanto reatar sua amizade de longa data, quanto de prestar homenagem ao velho amigo para que não se esqueça do bom caminho.

Assim, a atividade de lavar os pés conota mais do que uma simples atividade de asseio, mas de humildade em aproximar corações e de manter viva a chama do amor e do trabalho.

A atividade de lavar o pé é um exemplo que permeia diferentes culturas e tradições, sendo talvez melhor exemplificada como uma maneira de renovar as energias e as esperanças de pessoas que erraram muito e que não podem desistir da caminhada. Lições de longo tempo e que muitas vezes esquecemos e queremos sujar os pés, os corações e a mente de nossos semelhantes. Palavras ácidas, críticas destrutivas, imagens negativas que fazemos de certas pessoas são exemplos contrários ao lava-pés e que representam ainda passo decisivo para a humanidade este abandono de desamor.

Portanto, tenhamos tanto o lava-pés como uma atividade e uma metáfora tanto da renovação, quanto de evitar a sujeira, de se silenciar nos momentos oportunos, de viver a caridade como atividade de alma. Pois como bem expressou Emmanuel[4]: “Alguém proporciona leveza aos seus pés espirituais para que marche de modo diferente nas sendas evolutivas. Tudo se renova e a criatura compreende que não fora essa intervenção maravilhosa e não poderia participar do banquete da vida real”.

 


[1] Encontro de Paz. Capítulo 29. Pés e Paz.

[2] Link - Odisseia

[3] Link - Sudama

[4] Caminho, Verdade e Vida. Capítulo 5, Bases.


 

 

     
     

O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita