Especial

por Leonardo Paixão

Do simples e ignorante à consciência plena: um diálogo entre o pensamento espírita e as ciências evolutivas - Parte 2 e final

 

Conforme dissemos na edição anterior, os estudos sobre a miscigenação entre o Neandertal e o Sapiens nos trouxeram sobre os novos tipos que se formaram.

 

No entanto, os genomas de indivíduos dos outros três locais mostraram evidências de eventos adicionais e mais recentes de introgressão neandertal. O genoma de alta cobertura do indivíduo Ust'-Ishim de aproximadamente 44 mil anos (kyr), um antigo habitante da Sibéria, mostra sinais para tal evento de introgressão adicional em torno de 30–50 gerações antes de o indivíduo viver. Uma análise semelhante mostrou que o indivíduo Oase 1 de Peștera cu Oase, Romênia, com aproximadamente 40 mil anos de idade, e quatro indivíduos datados de cerca de 44 mil anos de Bacho Kiro, Bulgária, tinham ancestrais neandertais provavelmente nas últimas 10–20 gerações antes de viverem. Por outro lado, nenhuma evidência de misturas adicionais foi encontrada para o indivíduo Tianyuan de 40 mil anos da China ou o indivíduo Zlatý kůň da República Tcheca. Embora a datação direta por radiocarbono tenha produzido resultados não confiáveis ​​para Zlatý kůň, os comprimentos dos segmentos de ancestralidade neandertal no genoma indicaram uma idade de pelo menos 45 mil anos.

Com exceção do indivíduo Tianyuan, que fazia parte da população ancestral dos asiáticos orientais, todos os indivíduos mencionados anteriormente não demonstraram nenhuma, ou, no máximo, uma contribuição direta limitada, para a ancestralidade de populações extra-africanas posteriores. Notavelmente, o indivíduo Zlatý kůň pertencia a uma população profundamente divergente que se separou da linhagem que levava aos não africanos antes de qualquer outra população extra-africana antiga ou atual conhecida, sendo atualmente o único representante desse ramo inicial (Sümer, AP, Rougier, H., Villalba-Mouco, V. et al. Os primeiros genomas humanos modernos limitam o tempo de miscigenação neandertal. Nature 638, 711–717

 

Antropologia Evolutiva, Sociologia e Espiritismo: A Construção da Moralidade 

Michael Tomasello aponta que a cooperação, a empatia e a construção de regras sociais são elementos chave na evolução do comportamento humano. A capacidade de partilhar intenções, desenvolver normas coletivas e construir cultura são diferenciais do Homo sapiens em relação a outros primatas.

Condemi e Savatier (2019) abordam como a intensificação da vida social e a necessidade de interagir em grupos cada vez maiores e mais complexos exerceram uma pressão seletiva sobre o cérebro do Sapiens:

 

O comportamento do H. sapiens é singular: ele subjugou todo o planeta e transformou profundamente a maior parte dos ecossistemas, chegando a influenciar o clima global… Onde se ocultam as chaves para entender esse comportamento? Em nossa opinião, no plano biológico, nada de impressionante é suscetível de explicar a singularidade do Sapiens. Uma ideia difundida – por exemplo, no livro Sapiens, de Yuval Noah Harari – é a de que teria havido uma “revolução cognitiva” que distinguiria o Sapiens de outros humanos. Nós consideramos falsa essa ideia, pois, nas mesmas épocas, o Neandertal e o Sapiens possuíam habilidades técnicas de mesmo nível (mesma cultura material), falavam e empregavam linguagens simbólicas (adornos, pinturas, etc.). Ainda que inúmeros aspectos do corpo do Neandertal tenham sido diferentes – sua aparência em geral (atarracado), seu rosto (semelhante a um focinho), a forma de seu crânio (como uma bola de rúgbi), etc. -, os volumes cerebrais das duas espécies eram comparáveis (com vantagem para o Neandertal). Só bem mais tarde, quando o Sapiens já conquistou o planeta, que o desenvolvimento de sua vida social dará início à remodelagem de seu cérebro. (Condemi e Savatier, 2019. p. 95 e 96.)


O desenvolvimento da moralidade, entendido no contexto espírita como parte essencial da evolução do princípio inteligente, encontra respaldo teórico na sociologia de Émile Durkheim. Em As Formas Elementares da Vida Religiosa (1912), o autor demonstra que a consciência moral surge a partir da vida coletiva, estruturando-se nas regras e obrigações que a sociedade impõe aos seus membros. Durkheim afirma que “a sociedade é não apenas aquilo que nos rodeia, mas aquilo que penetra em nós; ela é em nós, ela molda nosso ser mais íntimo” (Durkheim, 1912). Tal concepção estabelece que a moralidade não é um atributo isolado do indivíduo, mas uma construção coletiva, transmitida por meio dos ritos, dos símbolos e das instituições sociais. Nesse sentido, “a obrigação moral não é mais do que a pressão que exerce sobre nós a autoridade da coletividade” (Durkheim, 1912, Livro III, cap. II), o que demonstra que os comportamentos tidos como éticos resultam da internalização das normas sociais. Essa leitura sociológica dialoga profundamente com a proposta espírita de que o espírito, criado “simples e ignorante”, progride através de sucessivas experiências no seio da coletividade, desenvolvendo paulatinamente suas faculdades intelectuais e morais. Assim, tanto para o Espiritismo quanto para Durkheim, a moralidade é fruto de um processo de aprendizado que se dá essencialmente no convívio social, onde o indivíduo é constantemente chamado a ajustar seus interesses pessoais às exigências do bem comum e da vida coletiva.


Diálogo Epistemológico: O Espírito e a Evolução Biológica 

O conceito de “simples e ignorante”, na perspectiva espírita, pode ser compreendido como uma metáfora espiritual equivalente às fases primárias do desenvolvimento da consciência, tal como descrito pelas ciências evolutivas. Há, contudo, diferenças epistemológicas fundamentais: enquanto a biologia considera que a consciência emerge da matéria organizada, o Espiritismo sustenta que o Espírito preexiste à matéria e utiliza o corpo físico como instrumento de manifestação e aprendizado.

A hipótese de Allan Kardec sobre a origem do corpo humano vem a explicar com sua abordagem, em termos metafísicos, a correlação Espírito-Matéria nos aspectos evolutivos:

 

Da semelhança, que há, de formas exteriores entre o corpo do homem e o do macaco, concluíram alguns fisiologistas que o primeiro é apenas uma transformação do Segundo. Nada aí há de impossível, nem o que, se assim for, afete a dignidade do homem. Bem pode dar-se que corpos de macaco tenham servido de vestidura aos primeiros Espíritos humanos, forçosamente pouco adiantados, que viessem encarnar na Terra, sendo essa vestidura mais apropriada às suas necessidades e mais adequadas ao exercício de suas faculdades, do que o corpo de qualquer outro animal. Em vez de se fazer para o Espírito um invólucro especial, ele teria achado um já pronto. Vestiu-se então da pele do macaco, sem deixar de ser Espírito humano, como o homem não raro se reveste da pele de certos animais, sem deixar de ser homem.

Fique bem entendido que aqui unicamente se trata de uma hipótese, de modo algum posta como princípio, mas apresentada apenas para mostrar que a origem do corpo em nada prejudica o Espírito, que é o ser principal, e que a semelhança do corpo do homem com o do macaco não implica paridade entre o seu Espírito e o do macaco.

Admitida essa hipótese, pode dizer-se que, sob a influência e por efeito da atividade intelectual do seu novo habitante, o envoltório se modificou, embelezou-se nas particularidades, conservando a forma geral do conjunto. Melhorados os corpos, pela procriação, se reproduziram nas mesmas condições como sucede com as árvores de enxerto. Deram origem a uma espécie nova, que pouco a pouco se afastou do tipo primitivo, à proporção que o Espírito progrediu. O Espírito macaco, que não foi aniquilado, continuou a procriar, para seu uso, corpos de macaco, do mesmo modo que o fruto da árvore silvestre reproduz árvores dessa espécie, e o Espírito humano procriou corpos de homem, variantes do primeiro molde em que ele se meteu. O tronco se bifurcou: produziu um ramo, que por sua vez se tornou tronco.

Como em a Natureza não há transições bruscas, é provável que os primeiros homens aparecidos na Terra pouco diferissem do macaco pela forma exterior e não muito também pela inteligência. Em nossos dias ainda há selvagens que, pelo comprimento dos braços e dos pés e pela conformação da cabeça, têm tanta parecença com o macaco, que só lhe falta ser peludos, para se tornar completa a semelhança. (Kardec, 1996, cap. XI, 15 e 16)

 

Embora Kardec não tivesse acesso às teorias evolutivas modernas, sua hipótese metafísica encontra ressonância indireta em mecanismos biológicos hoje bem estabelecidoscomo a transição de primatas arbóreos para hominídeos bípedes está associada a pressões adaptativas como a exploração de savanas (Hunt, 1994), o uso de ferramentas (Toth & Schick, 2009) e a cooperação grupal (Tomasello, 2014).

E é interessante observar que a família dos hominídeos inclui os humanos, os bonobos, os chimpanzés, os gorilas e os orangotangos, os hominídeos fósseis, as linhagens extintas dos ardipithecus e dos australopithecos.

Este paralelo é intrigante: o processo de hominização, pelo qual primatas adquiriram características humanas, pode ser lido tanto como adaptação material (via seleção natural) quanto, na perspectiva espírita, como estágio de adequação do corpo às necessidades do Espírito. Vale ressaltar que, enquanto a ciência explica essas mudanças por processos materiais, o Espiritismo as atribui à influência do Espírito - uma proposição metafísica que, como muitas questões da filosofia da mente, não é falseável pelos métodos científicos atuais, mas oferece narrativa coerente em seu marco teórico.


Considerações finais

O presente artigo buscou refletir sobre o conceito espírita de “simples e ignorante” à luz das ciências evolutivas. Observa-se que, apesar das distinções epistemológicas, há pontos de convergência significativos, especialmente no que diz respeito à compreensão de que a consciência, a inteligência e a moralidade são frutos de um processo evolutivo, contínuo e progressivo.

Embora ciência e Espiritismo partam de pressupostos distintos sobre a natureza da consciência, o diálogo aqui proposto revela que ambos reconhecem um processo evolutivo gradativo — seja no plano biológico, seja no espiritual. Enquanto a paleoantropologia descreve a emergência da cognição humana a partir de hominídeos primitivos, o Espiritismo oferece uma narrativa teleológica em que a matéria serve ao desenvolvimento moral do Espírito. Futuros estudos poderiam investigar, por exemplo, como modelos não-materialistas da mente (ex.: panpsiquismo) medeiam esse debate, ou como a ideia de reencarnação poderia ser confrontada com dados genéticos e neurocientíficos.


Referências
:

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 Revista Semanal de Divulgação Espírita