A compreensão da origem, desenvolvimento e finalidade do
ser tem sido, historicamente, objeto de reflexão tanto
das tradições religiosas quanto das ciências
contemporâneas. No campo do pensamento espírita,
codificado por Allan Kardec no século XIX, destaca-se a
afirmação de que os Espíritos foram criados “simples e
ignorantes”, conforme descrito nas questões 115 a 128 de O
Livro dos Espíritos (Kardec, 2008). Este conceito
fundamenta a visão espírita da evolução espiritual,
segundo a qual cada Espírito, partindo de um estado
primitivo, desenvolve progressivamente suas faculdades
intelectuais e morais, rumo à perfeição relativa.
Ao mesmo tempo, as ciências naturais — especialmente a
biologia evolutiva, a paleoantropologia e a antropologia
evolutiva — vêm, desde o século XIX, construindo modelos
robustos que explicam a emergência da vida, da
consciência e da cultura humana a partir de processos
evolutivos graduais, fundamentados em evidências
empíricas.
Este artigo propõe-se a realizar um exercício
epistemológico e interdisciplinar, colocando em diálogo
o conceito espírita de “simples e ignorante” com os
referenciais teóricos e empíricos das ciências
evolutivas. Busca-se, assim, compreender se — e em que
medida — a proposta espírita dialoga, complementa ou se
distancia dos paradigmas científicos contemporâneos que
estudam a emergência da consciência e da cognição
humanas.
A metodologia adotada fundamenta-se na análise
documental dos textos espíritas fundamentais e na
revisão bibliográfica de autores representativos das
ciências evolutivas. O artigo não pretende oferecer
respostas conclusivas, mas contribuir para uma reflexão
madura e fundamentada, tanto no campo dos estudos
espíritas quanto no das ciências humanas e naturais.
O conceito de "simples e ignorante" no pensamento
espírita
Na Doutrina Espírita, o conceito de Espírito é: um
princípio inteligente distinto do corpo, que evolui
através de reencarnações, sendo uma incógnita o modo de
sua criação (O Livro dos Espíritos, q. 78).
Nas questões 115 a 128 de O Livro dos Espíritos,
Allan Kardec apresenta o princípio segundo o qual todos
os Espíritos são criados “simples e ignorantes”, ou
seja, destituídos de conhecimentos, mas dotados de
potencial ilimitado para o progresso intelectual e
moral.
Para os Espíritos codificadores, não há criação de seres
destinados ao bem ou ao mal desde sua origem. Todos
partem de uma mesma condição primitiva e, através do uso
do livre-arbítrio, da experiência e do desenvolvimento
das faculdades intelectivas e morais, constroem seus
próprios destinos, progredindo até alcançar a perfeição
relativa.
Essa concepção rompe com os paradigmas teológicos
clássicos que admitiam a existência de seres criados
perfeitos ou decaídos. Ao invés disso, estabelece uma
visão dinâmica, evolutiva e pedagógica da vida
spiritual, destituindo desse modo o terror que estava
estabelecido pela dogmática cristã.
As ciências evolutivas e a emergência da consciência
Biologia evolutiva: da vida simples à complexidade -
A biologia evolutiva, fundamentada nos trabalhos de
Charles Darwin (1859) e em desenvolvimentos posteriores,
descreve a vida como fruto de processos graduais de
variação, seleção natural e deriva genética. Organismos
simples, unicelulares, surgidos há cerca de 3,5 bilhões
de anos, deram origem, por sucessivas complexificações,
a seres multicelulares e, eventualmente, aos vertebrados
e mamíferos.
Allan Kardec, buscando acompanhar o desenvolvimento
científico em sua época, traz o seguinte:
Se se considerassem apenas os dois pontos extremos da
cadeia, nenhuma analogia aparente haverá; mas, se se
passar de um anel a outro sem solução de continuidade,
chega-se, sem transição brusca, da planta aos animais
vertebrados. Compreendendo-se então a possibilidade de
que os animais de organização complexa não sejam mais do
que uma transformação, ou, se quiserem, um
desenvolvimento gradual, a princípio insensível, da
espécie imediatamente inferior e, assim, sucessivamente,
até o primitivo ser elementar. Entre a glande e o
carvalho é grande a diferença; entretanto, se
acompanharmos passo a passo o desenvolvimento da glande,
chegaremos ao carvalho e já não nos admiraremos de que
este proceda de tão pequena semente. Ora, se a glande
encerra em latência os elementos próprios à formação de
uma árvore gigantesca, por que não se daria o mesmo do
oução ao elefante? (Kardec, 1996, cap. X, 25)
Essa perspectiva estabelece pontos de contato diretos
com a Teoria da Evolução por seleção natural, proposta
por Charles Darwin em A Origem das Espécies (1859).
Ambos os pensadores rejeitam o fixismo das espécies —
paradigma dominante na ciência e na teologia até meados
do século XIX — e advogam que os seres vivos estão
submetidos a processos de transformação contínuos, sem
saltos abruptos na natureza. Kardec recorre, inclusive,
à analogia entre a glande e o carvalho que ilustra com
precisão esse conceito.
No entanto, embora haja uma notável convergência quanto
à constatação do fato da evolução e do gradualismo
biológico, é necessário destacar que Kardec e Darwin
partem de referenciais epistemológicos distintos. Darwin
propôs um mecanismo específico, naturalista, denominado seleção
natural, em que as variações herdáveis que conferem
vantagem adaptativa aos indivíduos tendem a ser
preservadas nas gerações subsequentes. Nesse modelo, as
transformações das espécies ocorrem como resultado da
interação entre variação genética, reprodução
diferencial e herança, sem a necessidade de postular
qualquer finalidade ou princípio extrafísico.
Por outro lado, Allan Kardec insere o fenômeno biológico
dentro de uma cosmovisão espiritualista, na qual a
evolução material está intimamente ligada ao progresso
do princípio inteligente que anima os seres. Para o
Espiritismo, não se trata apenas da transformação dos
corpos, mas do desenvolvimento simultâneo das faculdades
intelectuais e morais, à medida que o espírito progride
através de múltiplas experiências reencarnatórias.
Assim, embora Kardec não discuta os mecanismos
biológicos específicos — como mutações, deriva genética
ou seleção natural —, sua visão é compatível com o
panorama evolutivo delineado pelas ciências naturais, às
quais ele reconhece plena legitimidade no campo dos
fenômenos físicos.
É, portanto, legítimo afirmar que o pensamento
kardecista, desde o século XIX, antecipava conceitos
fundamentais da biologia evolutiva moderna, ao mesmo
tempo em que os integrava em uma visão ampliada, que
abarca não apenas a matéria, mas também os destinos do
espírito imortal. Dessa forma, a doutrina espírita não
se opõe à teoria darwiniana; ao contrário,
complementa-a, oferecendo uma interpretação que
transcende o materialismo estrito e propõe que o
desenvolvimento biológico seja concomitante ao progresso
espiritual.
Paleoantropologia:
o surgimento do gênero homo e uma possível correlação
com os ensinos dos espíritos - A
paleoantropologia, através de registros fósseis e dados
genéticos, reconstrói a trajetória do gênero Homo, que
surge há cerca de 2,5 milhões de anos. A transição de
hominídeos como o Australopithecus para espécies como
Homo habilis, Homo erectus e, finalmente, Homo sapiens,
demonstra um processo de aumento do volume cerebral,
desenvolvimento da linguagem e da cultura simbólica.
Em O Livro dos Espíritos nas questões 47, 52, 53
e 53. a) temos respostas que trazem como que esboços de
uma teoria evolutiva. No livro A Gênese, Kardec
amplia a proposta – a ciência estava progredindo –
conforme podemos observar:
Por pouco que se observe a escala dos seres vivos, do
ponto de vista de seu organismo, reconhece-se que, desde
o líquen até a árvore, e desde o zoófito até o homem, há
uma cadeia que se eleva por graus, sem solução de
continuidade, e da qual todos os elos têm um ponto de
contato com o elo precedente; seguindo passo a passo
a série dos seres, dir-se-ia que cada espécie é um
aperfeiçoamento, uma transformação da espécie
imediatamente inferior.
Verificado que o corpo do homem está em condições
idênticas aos outros corpos, que ele nasce, vive e morre
da mesma maneira, deve ter sido formado nas mesmas
condições.
Embora isso possa lhe ferir o orgulho, o homem deve se
resignar a ver em seu corpo material o último elo
da animalidade sobre a Terra. [...] (Kardec,
2014, cap. X, 28 e 29).
O que nos trazem os estudos da paleoantropologia atual?
Até recentemente, o registro fóssil do Sapiens era
simples: além dos dois crânios com nomes quase
predestinados de Omo-1e Omo-2, datados de 196 mil anos
atrás e encontrados no vale do Omo, Etiópia, não
conhecíamos senão um crânio incompleto, com 285 mil anos
de idade, descoberto em Florisbad, na África do Sul e
alguns fragmentos de crânio de 125 mil anos atrás,
encontrados nas grutas do Rio Klasies, no mesmo país.
Eles comprovam a presença na África, há cerca de 285 mil
anos, de uma forma humana de testa larga. Desde então, a
situação se complicou seriamente...
Em 2008, Misliya-1, uma metade esquerda de mandíbula
datada de 177 mil a 194 mil anos, foi descoberta no
Monte Carmelo, em Israel. Depois, em 2017, foi realizado
novo exame do sítio Jebel Irhoud, no Marrocos. Estes
últimos fósseis têm uma longa história. Foram revelados
nos anos 1960, acompanhados de ferramentas talhadas com
a técnica Levallois, até então exclusivamente associada
ao Neandertal, antes de os qualificar como
“Neandertaloides”, pois algumas partes de seus crânios
os distinguiam dos Neandertais europeus. Finalmente,
após a descoberta de uma mandíbula nos anos 1990, os
paleoantropólogos os separaram dos Neandertais.
Esse esclarecimento explica por que, a partir dos anos
2000, uma equipe dirigida por Jean-Jacques Hublin, do
Instituto Max-Planck de Antropologia Evolucionista de
Leipzig, Alemanha, retomou o estudo do sítio e do
material fóssil. Em 2017, novos métodos de análise
salientaram que os humanos de Jebel Irhoud eram Sapiens
arcaicos. Ora, sua nova datação, através de toda uma
séria de métodos independentes (as ferramentas que os
acompanhavam, os estratos que continham), produziu um
resultado alucinante: 315 mil anos!
Um resultado tão inquietante que criou um certo
ceticismo entre vários pré-historiadores... Um fato
persiste: ele mudou a visão que se faz sobre a
emergência do H. sapiens. A presença de Sapiens arcaicos
no norte da África há cerca de 300 mil anos, na verdade,
faz caducar a ideia de um berço dos Sapiens e sugere uma
presença panafricana desse humano. (Condemi e Savatier,
2019. p. 92 e 93)
A recente descoberta sobre Sapiens arcaicos a sugerir
uma presença pan-africana nos leva a considerar a
pergunta 53 de O Livro dos Espíritos:
O homem surgiu em muitos pontos do globo?
“Sim e em épocas várias, o que também constitui uma das
causas da diversidade das raças. Depois, dispersando-se
os homens por climas diversos e aliando-se os de uma aos
de outras raças, novos tipos se formaram”.
Os estudos sobre a miscigenação entre o Neandertal e o
Sapiens nos trazem sobre os novos tipos que se formaram.
(...) é provável que os Sapiens tenham progredido rumo à
Sibéria e o que viria a ser a Rússia, antes de seguir
para a Europa. Com aproximadamente 45 mil anos, a tíbia
de Ust-Ishim, na Sibéria, pertence a um Sapiens, cujos
ancestrais se miscigenaram com os Neandertais por volta
de 15 mil anos mais cedo. Os genes de um homem jovem
morto há uns 36 mil anos no sítio de Kostenki 14, na
Ucrânia, sugerem por sua vez uma miscigenação prévia
entre Neandertais e Sapiens, algo em torno de 60 mil
anos atrás. (Condemi e Savatier, 2019. p. 118)
Os neandertais viveram na Europa e na Ásia Ocidental por
centenas de milhares de anos antes de seu
desaparecimento há cerca de 40 mil anos (ka). Nos
últimos milhares de anos de sua existência documentada,
os neandertais se encontraram e cruzaram com humanos
modernos que chegaram da África e, como resultado, 2–3%
da ancestralidade dos atuais não africanos derivam dos
neandertais.
Até agora, apenas cinco locais produziram dados de todo
o genoma de humanos modernos que viveram antes de 40-ka
e, portanto, se sobrepuseram temporalmente aos
neandertais. A ancestralidade neandertal nos genomas de
dois desses locais provavelmente se originou de apenas
um único evento de introgressão (ou seja, uma mistura
com neandertais que pode ter continuado por várias
gerações).
(Continua na próxima
edição desta revista.)