Passados que são 168 anos da primeira publicação de O
Livro dos Espíritos, completados no passado dia 18
de abril, a primeira obra da codificação da Doutrina
Espírita, de autoria de Allan Kardec, é hora de fazermos
um balanço sobre o que é ser espírita e que desafios
enfrenta, nos dias de hoje, quem adota a filosofia,
ciência e moral propostas pelo Espírito da Verdade
através do Codificador.
Importa, antes de mais, e nunca é demais lembrarmos,
qual o objetivo do surgimento da Doutrina. Encontramos,
no prefácio d’O Evangelho Segundo o Espiritismo,
uma resposta simples e direta:
Os Espíritos do Senhor, que são as virtudes dos céus,
como um imenso exército que se movimenta, ao receber a
ordem de comando, espalham-se sobre toda a face da
Terra. Semelhantes a estrelas cadentes, vêm iluminar o
caminho e abrir os olhos aos cegos.
Eu vos digo, em verdade, que são chegados os tempos em
que todas as coisas devem ser restabelecidas no seu
verdadeiro sentido, para dissipar as trevas, confundir
os orgulhosos e glorificar os justos. (…)
O Espírito da Verdade o disse: são chegados os tempos de
restabelecer todas as coisas. Jesus havia prometido: “Eu
pedirei a meu Pai, e ele vos enviará outro Consolador,
para que fique convosco para sempre: O Espírito de
verdade, que o mundo não pode receber, porque não o vê
nem o conhece; mas vós o conheceis, porque habita
convosco, e estará em vós.” (João 14:15-17) Mas aquele
Consolador, o Espírito Santo, que o Pai enviará em meu
nome, esse vos ensinará todas as coisas, e vos fará
lembrar de tudo quanto vos tenho dito.”; “Mas aquele
Consolador, o Espírito Santo, que o Pai enviará em meu
nome, esse vos ensinará todas as coisas, e vos fará
lembrar de tudo quanto vos tenho dito.”; (João: 26);
“Todavia digo-vos a verdade, que vos convém que eu vá;
porque, se eu não for, o Consolador não virá a vós; mas,
quando eu for, vo-lo enviarei. E, quando ele vier,
convencerá o mundo do pecado, e da justiça e do juízo.
Do pecado, porque não creem em mim; da justiça, porque
vou para meu Pai, e não me vereis mais; e do juízo,
porque já o príncipe deste mundo está julgado. Ainda
tenho muito que vos dizer, mas vós não o podeis suportar
agora. Mas, quando vier aquele, o Espírito de verdade,
ele vos guiará em toda a verdade; porque não falará de
si mesmo, mas dirá tudo o que tiver ouvido, e vos
anunciará o que há de vir. Ele me glorificará, porque há
de receber do que é meu, e vo-lo há de anunciar.” (João
16:7-14)
Jesus sabia da necessidade que surgiria, mais tarde, de
todas as coisas serem restabelecidas, ou seja, das
verdades que ensinava serem repostas. Se por um lado,
conhecia a humanidade e a sua tendência para deturpar o
conhecimento a seu bel prazer e de acordo com o seu
orgulho e egoísmo, por outro lado reconhecia que
estávamos apenas na infância, incapazes de perceber na
totalidade os altos conceitos que expunha, e mais ainda,
de os aproveitar devidamente e lhes dar bom uso. A Sua
Doutrina era demasiado sublime para se destinar apenas
às gerações Suas contemporâneas, o intuito era lançar as
bases de um conhecimento maior que, a seu tempo, seria
trazido pelo Consolador que ali nos prometia.
Ele sabia que, um dia, seriam chegados esses tempos, que
ali eram anunciados e prevenia-nos, desde já da sua
chegada. Convictos da Verdade contida nas Suas palavras,
presos na Sua Doutrina consoladora e com o coração pleno
da esperança nesses tempos vindouros, os Seus discípulos
e os primeiros convertidos ao Cristianismo, tudo
enfrentaram com coragem e decisão, seguros por essa Fé
inabalável capaz de mover montanhas.
Na Idade Média, a Igreja institucionalizada perseguia e
condenava às fogueiras quem era acusado de bruxaria.
Quem eram essas bruxas? Nada mais nada menos que
médiuns, intermediários entre dois planos, o físico e o
espiritual. Vivia-se o tempo do terror, em que ninguém
podia sair de linhas pré-estabelecidas, que limitavam a
liberdade de pensamento e de crença. Mas isso não
impedia que a verdadeira Fé se expandisse e que os
verdadeiros crentes seguissem corajosamente para as
fogueiras, mostrando as suas convicções, talvez não
possamos dizer sem medo, mas pelo menos, apesar do medo.
É quase inacreditável, para os nossos padrões
materialistas atuais, compreender essa entrega total ao
sacrifício em nome de uma Fé, por maior que ela seja.
Fugimos de tudo o que, nem que seja ao de leve, se
aproxime de dificuldades e contratempos. Queremos uma
felicidade pronta a levar, tipo take away.
Seríamos capazes, hoje, de testemunhos de tal ordem?
Mesmo se pensarmos nos Espíritas dos primeiros tempos do
Espiritismo, na coragem que Kardec teve de ter para se
lançar numa empreitada tão decisiva de codificar uma
Doutrina de tal modo inovadora, destinada a repor as
verdades cristãs tão arredadas do quotidiano daqueles
que se dizem religiosos, numa época (meados do séc. XIX)
em que o dogmatismo e o fanatismo eram ainda mais
acentuados do que hoje, forçosamente nos sentiremos
perplexos perante as motivações que presidiram a tal
coragem. Se pensarmos nas perseguições a que os
primeiros Espíritas estiveram votados, naquilo de que
muitas vezes tiveram de abdicar, para que a Doutrina se
firmasse e crescesse até aos dias hoje, quase nos
sentimos envergonhados com o pouco que somos e fazemos.
Como disse um Espírito protetor (Cracóvia, 1861), “Hoje,
na vossa sociedade, para ser cristão já não se precisa
enfrentar a fogueira do mártir, nem o sacrifício da
vida, mas única e simplesmente o sacrifício do egoísmo e
da vaidade.” (O Evangelho Segundo o Espiritismo,
capítulo XI, 13.)
Eis o ponto fulcral da questão. Se pensarmos nos tempos
que são chegados, de que falava Jesus e de que falam os
Espíritos, vemos que realmente estamos a viver esses
tempos. Estamos a vivê-los da forma mais evidente
possível. Não nos podem restar dúvidas que, as
dificuldades extremas que a Terra está a passar são de
tal modo dolorosas e agudas que só podem ser
caraterísticas dos “finais dos tempos” anunciados. Final
de um estado de coisas, para dar início a uma nova
ordem, a um novo ciclo. Uma nova ordem em que todas as
coisas serão restabelecidas e repostas todas as
verdades.
As mudanças não costumam der fáceis. Isso acontece em
todos os setores, tudo o que tem de mudar faz-se à custa
de muita dor, abdicação e coragem. Se é assim para as
coisas simples e banais da vida material, quanto mais
não se torna verdade para as grandes mudanças
espirituais. Porque a verdade é que se trata, realmente,
de grandes mudanças espirituais. Aquilo a que chamamos a
Transição Planetária é algo tão transcendental ao nosso
quotidiano feito de interesses materiais e imediatos que
nos deixa perante abalos interiores para os quais não
nos sentimos facilmente preparados. Trata-se do fim de
um estado de mundo de provas e expiações em que temos
vivido imersos, para ascendermos a um mundo de
regeneração, onde a paz e a tranquilidade necessárias a
uma vida harmoniosa, em que as lutas serão
exclusivamente pelo aperfeiçoamento espiritual, serão a
ordem do dia. Imaginamos esse mundo e sentimos que é
aquilo que realmente desejamos, que vai ser bom habitar
nele e que é de todo o nosso interesse termos o
merecimento necessário para ascender com a Terra a essa
situação harmoniosa e feliz. Mas, quando ouvimos falar
da Transição, pensávamos que, por nos ser anunciado que
os tempos são chegados, tudo seria para agora, sem dor
nem dificuldade, como num passe de mágica. Mais uma vez,
vence o nosso imediatismo, que quer tudo já, sem
trabalho nem esforço. Contávamos, talvez, que a
Espiritualidade viesse dar-nos, de mão beijada, uma
Terra regenerada e feliz.
Engano nosso. Hoje assistimos à dor imensurável que a
Terra está a atravessar, a eclosão de guerras e mais
guerras, a fome a estender-se, a degradação, toda a
imigração incontida de povos numa ânsia incontida de
fuga e de busca de uma vida melhor, acabando por
encontrar, na maioria das vezes, incompreensão,
xenofobia, exclusão, exploração e escravização, a
corrupção política e social, o fanatismo, o racismo, o
extremismo a alastrar, as convulsões sociais, a
depressão e desistência da vida dos nossos jovens e até
crianças… Ficaríamos interminavelmente na descrição das
imensas dores e desespero que a humanidade atravessa nos
dias de hoje. Perante situação tão desastrosa,
principalmente se nos faltar alguma visão histórica das
convulsões que têm abalado o nosso mundo, desde os
primórdios da sua criação, tendencialmente, somos
levados a pensar e sentir que nunca estivemos tão mal.
Que longe da evolução, estamos, isso sim, a regredir.
O sentimento geral, em nosso redor, vai nesse sentido.
Vemos o desespero a alastrar-se e parece que nada pode
ser feito. Será assim? Ou teremos, nós os que
acreditamos em algo mais, a possibilidade de fazer
alguma coisa? Teremos um papel específico a cumprir
neste momento? Creio que os Espíritas têm um papel
fundamental. São, atrevo-me a dizer, hoje, como nunca,
chamados a dar testemunho do Cristo e da Sua sublime
Doutrina, com a coragem e determinação dos Cristãos e
Espíritas de outros tempos. Não temos de enfrentar
fogueiras, é bem verdade, nem seremos lançados aos leões
no circo romano. Mas, no circo da vida, é essencial e
urgente o testemunho da Fé.
Por onde começar? Primeiramente, por nós mesmos. Por nós
mesmos, sim. Disse Jesus: Amai o próximo como a vós
mesmos. Antes de mais, temos de nos amar para depois
amarmos os outros com o mesmo amor. Disse o Espírito de
Verdade: “Espíritas, amai-vos”. Nós, espíritas, nos
amamos? Respeitamo-nos? Se nos amamos e respeitamos,
aperfeiçoamo-nos, trabalhamos o nosso interior, porque
sabemos que isso nos trará paz de espírito,
tranquilidade, felicidade. Se nos amamos, cuidamos da
nossa saúde, sem exageros, mas com equilíbrio, através
de uma alimentação simples e equilibrada, através de uma
vida em que o trabalho, o descanso, o exercício físico
estejam em harmonia e contribuam para a saúde do corpo e
do espírito. Porque sabemos que necessitamos do corpo
para bem cumprir tudo aquilo a que a presente
reencarnação se destina. Se nos amamos e respeitamos,
trabalhamos pela harmonia em família, no trabalho, na
comunidade, porque só dessa forma nos sentiremos bem. Se
nos amamos e respeitamos, recorremos à meditação e à
prece, para sintonizarmos com as forças do Bem e
colhermos forças para enfrentar as dificuldades que a
vida nos apresenta. Fazemo-lo porque sabemos que,
sozinhos, as forças nos faltam, mas com ajuda do Alto
estamos constantemente na presença dos Amigos e
Protetores Espirituais.
Se nos amamos e respeitamos, até somos capazes de
perdoar as ofensas, porque isso nos traz equilíbrio
emocional e paz, afastando-nos das forças negativas que
nos conduzem à depressão e ao desânimo, arrastando-nos
para obsessões de que será muito difícil sair. Se nos
amamos e respeitamos, trabalhamos por uma Terra
sustentável, respeitamos o meio ambiente, poupamos os
recursos planetários, que sabemos serem esgotáveis e
imprescindíveis à vida, porque entendemos a Terra como a
nossa casa temporária e dela, como de tudo, temos de dar
conta perante o Criador e a nossa própria consciência. E
porque faremos parte das gerações futuras que habitarão
a Terra. Se nos amamos e respeitamos, vemos em cada ser
humano, ou não, um irmão, porque percebemos que somos
habitantes comuns deste espaço que é o planeta Terra, de
forma temporária, e não donos e senhores, porque Senhor
só Deus o é. Fazemo-lo porque saber disso nos traz
harmonia, equilíbrio, felicidade.
Em suma, se nos amamos, se respeitamos a nós mesmos,
trabalhamos incansavelmente pelo nosso bem-estar em
todos os níveis, principalmente o espiritual, que
permanecerá, em vez do material, imediato e perecível.
Mas a pergunta que resta é: isso acontece? Nós nos
amamos realmente? Esses sinais de amor por nós mesmos
são evidentes no nosso comportamento, atitudes,
pensamentos, desejos, intenções? Se não, como poderemos
amar os outros? Se não, qual o testemunho que daremos de
nós mesmos? Daremos testemunho de cristãos/espíritas,
tristes, deprimidos, intolerantes, revoltados,
amedrontados perante as dificuldades, desistentes da
vida que não sabemos amar, respeitar e preservar?
Temos de ter bem presente o que queremos testemunhar.
Hoje, o grande desafio é extirpar de nós o egoísmo, o
orgulho. É o orgulho que faz a humanidade caminhar no
sentido inverso ao que lhe traria a felicidade. É o
orgulho que faz com que o egoísmo ainda prevaleça acima
de tudo e de todos. Amarmo-nos a nós mesmos não é
egoísmo. Não podemos abdicar da nossa própria
felicidade. É viver a alegria de nos sabermos filhos de
um Deus omnipotente, sábio, justo, bom, misericordioso,
que nos ama e ama de igual forma qualquer dos seus
filhos, que são todos os seres da Sua Criação. É viver a
alegria de sermos discípulos de um Mestre maravilhoso
que deu testemunho do melhor que a humanidade nos poderá
oferecer quando trabalharmos uns com os outros em
harmonia. É a alegria de nos sabermos abençoados com a
Doutrina Espírita que nos acalenta, consola e fortalece.
É darmos testemunho dessa alegria de viver e de
tentarmos ser cada dia melhores. Porque, afinal, se
construirmos um mundo melhor para nós, estamos a
construí-lo para os outros também. Por isso é tão
necessário o amor em nós para sermos capazes de nos
entregarmos aos outros.
São muitos os desafios que os Espíritas enfrentam hoje.
Mas poderemos, talvez, começar pelo esse de cultivar o
amor em nós e darmos testemunho, no mundo que nos
rodeia, do amor e da alegria que nos vem da Fé Espírita.
Que o mundo, mais do que pelas palavras, ao presenciar a
nossa atitude perante a vida, perceba o que é ser
Cristão, o que é ser Espírita.
Maria de Lurdes Duarte, titular do blog
Caminhos da Imortalidade – clique
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reside em Arouca, Portugal.