A alma contra o instinto: Ubaldi, Kardec
e a crítica espiritual ao materialismo de Freud
Enquanto Freud explicava o ser humano a partir de seus
instintos reprimidos, pensadores como Allan Kardec e
Pietro Ubaldi propunham uma leitura muito diferente — e,
para muitos, ainda mais ousada. Para além da carne e da
biologia que guia o psiquismo, ambos viam o homem como
um espírito em evolução permanente, com destino moral e
vocação transcendental definidos por Deus. Essa
divergência marca um confronto profundo entre duas
visões de mundo: uma, centrada no inconsciente como
sombra do desejo refém dos impulsos instintivos; outra,
na alma como sede da consciência e do bem.
Freud, como se sabe, interpretava a mente humana como um
campo de batalha entre impulsos primitivos
(principalmente sexuais e agressivos) e os limites
impostos pela sociedade. Para ele, a civilização era, em
certo sentido, um mal necessário: freava a barbárie, mas
à custa de frustrações inevitáveis. Em O Mal-Estar na
Civilização, o pai da psicanálise chega a dizer que
a cultura nos impõe sacrifícios tão profundos que a
felicidade plena se torna inalcançável.
Já Kardec — especialmente em sua obra A Gênese —
oferecia outra chave de leitura. Para ele, a vida não é
um duelo entre o prazer e a repressão, mas uma jornada
educativa do espírito. A dor e as paixões não devem ser
eliminadas ou satisfeitas a qualquer custo, mas
compreendidas como provas para o amadurecimento moral. A
reencarnação é, nessa lógica, um processo pedagógico:
nascemos e renascemos para aprender, depurar e nos
aproximar de um ideal ético superior.
Pietro Ubaldi, por sua vez, refina ainda mais essa
visão. Em obras como A Grande Síntese, ele
descreve o universo como um campo de forças em ascensão,
onde tudo — do átomo ao ser humano — caminha para Deus.
O egoísmo, o desejo, o sofrimento? Estágios
transitórios. A missão da consciência é transformar o
instinto em amor, e o impulso em serviço. Para ele, o
verdadeiro progresso não é técnico ou econômico, mas
moral. Uma civilização evolui de fato quando seus
indivíduos aprendem a sair de si mesmos.
O contraste com Freud não poderia ser maior. Onde ele vê
o desejo como motor inevitável da vida, Kardec e Ubaldi
enxergam uma força que deve ser educada, sublimada. Onde
Freud localiza o sofrimento como efeito colateral da
repressão, os espiritualistas o leem como instrumento de
transformação interior e evolução espiritual constante.
De fato, essa diferença não é apenas teórica — ela
revela horizontes distintos. Freud oferece ao homem
moderno uma forma de lidar com seus fantasmas. Kardec e
Ubaldi, uma promessa de superação. Uma aposta na
acomodação lúcida às limitações humanas. Os outros, na
libertação progressiva e permanente da alma.
Em tempos em que o mal-estar psíquico parece se
generalizar — e a técnica e a ciência, sozinhas, já não
bastam — talvez valha a pena revisitar essas visões que,
mesmo antigas, continuam a provocar: e se a chave para
entender o ser humano não estiver apenas nos recônditos
do inconsciente, mas nas profundezas do espírito imortal
e onipresente?
Leonardo Queiroz Leite reside em São Paulo-SP.
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