Artigos

por Leonardo Queiroz Leite

 

A alma contra o instinto: Ubaldi, Kardec e a crítica espiritual ao materialismo de Freud

Enquanto Freud explicava o ser humano a partir de seus instintos reprimidos, pensadores como Allan Kardec e Pietro Ubaldi propunham uma leitura muito diferente — e, para muitos, ainda mais ousada. Para além da carne e da biologia que guia o psiquismo, ambos viam o homem como um espírito em evolução permanente, com destino moral e vocação transcendental definidos por Deus. Essa divergência marca um confronto profundo entre duas visões de mundo: uma, centrada no inconsciente como sombra do desejo refém dos impulsos instintivos; outra, na alma como sede da consciência e do bem.

Freud, como se sabe, interpretava a mente humana como um campo de batalha entre impulsos primitivos (principalmente sexuais e agressivos) e os limites impostos pela sociedade. Para ele, a civilização era, em certo sentido, um mal necessário: freava a barbárie, mas à custa de frustrações inevitáveis. Em O Mal-Estar na Civilização, o pai da psicanálise chega a dizer que a cultura nos impõe sacrifícios tão profundos que a felicidade plena se torna inalcançável.

Já Kardec — especialmente em sua obra A Gênese — oferecia outra chave de leitura. Para ele, a vida não é um duelo entre o prazer e a repressão, mas uma jornada educativa do espírito. A dor e as paixões não devem ser eliminadas ou satisfeitas a qualquer custo, mas compreendidas como provas para o amadurecimento moral. A reencarnação é, nessa lógica, um processo pedagógico: nascemos e renascemos para aprender, depurar e nos aproximar de um ideal ético superior.

Pietro Ubaldi, por sua vez, refina ainda mais essa visão. Em obras como A Grande Síntese, ele descreve o universo como um campo de forças em ascensão, onde tudo — do átomo ao ser humano — caminha para Deus. O egoísmo, o desejo, o sofrimento? Estágios transitórios. A missão da consciência é transformar o instinto em amor, e o impulso em serviço. Para ele, o verdadeiro progresso não é técnico ou econômico, mas moral. Uma civilização evolui de fato quando seus indivíduos aprendem a sair de si mesmos.

O contraste com Freud não poderia ser maior. Onde ele vê o desejo como motor inevitável da vida, Kardec e Ubaldi enxergam uma força que deve ser educada, sublimada. Onde Freud localiza o sofrimento como efeito colateral da repressão, os espiritualistas o leem como instrumento de transformação interior e evolução espiritual constante.

De fato, essa diferença não é apenas teórica — ela revela horizontes distintos. Freud oferece ao homem moderno uma forma de lidar com seus fantasmas. Kardec e Ubaldi, uma promessa de superação. Uma aposta na acomodação lúcida às limitações humanas. Os outros, na libertação progressiva e permanente da alma.

Em tempos em que o mal-estar psíquico parece se generalizar — e a técnica e a ciência, sozinhas, já não bastam — talvez valha a pena revisitar essas visões que, mesmo antigas, continuam a provocar: e se a chave para entender o ser humano não estiver apenas nos recônditos do inconsciente, mas nas profundezas do espírito imortal e onipresente?


Leonardo Queiroz Leite reside em São Paulo-SP.

 
 

     
     

O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita