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por Marcelo Teixeira

 

Um só rebanho sem fronteiras e barreiras


Na questão 789 de “O Livro dos Espíritos”, Allan Kardec indaga se seria possível, no futuro, o progresso reunir todos os povos da Terra numa só nação. Os espíritos que o assessoravam na empreitada de organizar a doutrina espírita respondem que tal feito seria impossível. Motivo: a diversidade dos climas, que faz surgirem costumes e necessidades que caracterizam as diversas nacionalidades que conhecemos.

O Espiritismo nos mostra que o progresso moral da humanidade é inexorável. Aliás, o capítulo sobre a Lei do Progresso de “O Livro dos Espíritos” é farto em evidenciar que, apesar de uma leva de espíritos afeitos ao mal tentar retardar a marcha da humanidade rumo à perfeição moral, ela se dará, pois ninguém pode detê-la.

Mesmo quando esse progresso vier e irmanar todos os homens e mulheres que habitam nosso planeta, será impossível existir apenas uma nação. Imaginem o quão intrincado seria eleger um governante para ela, bem como seus ministros, secretários e demais subalternos. Além disso, como esclarece a resposta à pergunta 789, há costumes e necessidades que surgiram devido à diversidade dos climas. Por exemplo, hábitos alimentares, vestimentas, celebrações religiosas e culturais, culinária típica, legislação específica, entre outras. Dessa forma, mesmo quando o pleno progresso moral for corrente entre nós, a Áustria continuará sendo a Áustria; idem o Brasil, a Índia, o Chile, a França, o México, a Tailândia, a Grécia, o Marrocos e por aí vai, na multiplicidade dos quase 200 países que, atualmente, compõem o globo terrestre.

Como, no entanto, o progresso sinaliza um mundo mais fraterno, creio que, embora as fronteiras continuem a existir, não haverá necessidade de que sejam vigiadas. Afinal, não haverá mais imigrantes ilegais; refugiados; tráfico de drogas, animais silvestres, armas e que tais; risco de outras nações invadirem o território alheio e outras tantas dores de cabeça resultantes da nossa insistência em nos pautarmos pelo orgulho e pelo egoísmo, que geram esse malfadado efeito cascata que resulta em disputa de poder, opressão, guerras etc.

Fico pensando também em como ficariam os hinos nacionais depois que o reino dos céus for devidamente instaurado nas consciências humanas. De quatro em quatro anos, nas Copas do Mundo de futebol, presto atenção às seleções dos países, devidamente perfiladas e uniformizadas para a ocasião, entoando seus hinos de louvor às respectivas pátrias. Todos, sem exceção, falam do orgulho de haver tão valorosos filhos desse ou daquele chão; da importância do combate às hostes inimigas; da bravura de se manter a bandeira erguida, apesar de ensanguentada; de marchar para degolar o vil adversário... Nem o nosso escapa quando diz: “Mas se ergues da justiça a clava forte, verás que um filho teu não foge à luta.” Pois é, dia virá em que tais hinos terão de ser refeitos, pois não mais condirão com o patamar moral que tanto almejamos alcançar.

Outro aspecto que me deixa intrigado diz respeito à paridade cambial. Num mundo em que todas as nações primarão pela fraternidade, haverá uma moeda que valha mais que as outras? Ou todas terão o mesmo valor, facilitando a vida de quem viaja e possibilitando um comércio bem mais fraterno entre os países? Divagações de um cidadão que imagina como a Terra virá a ser.

Na mesma questão, os amigos espirituais afirmam que “a caridade não conhece latitudes e não faz distinção dos homens pela cor”. Sabemos que uma das questões mais graves que o Brasil e o mundo enfrentam diz respeito ao racismo em relação à população negra. Infelizmente, são numerosos os casos de extermínio de jovens negros, que tombam quase que diariamente, vitimados por supostas balas perdidas, truculência policial, guerra entre facções criminosas ou simplesmente porque são ‘confundidos’ com bandidos por serem negros. Quem porventura duvide, recomendo que assista ao documentário “A última abolição”. Roteirizado e dirigido por Alice Gomes e produzido por Gávea Filmes, Esmeralda Produções e Buda Filmes, a película mostra o protagonismo do povo negro na luta pela abolição, as consequências políticas e sociais da Lei Áurea e a luta que nossos irmãos de pele preta enfrentam até hoje para reverter tristes estatísticas como a que mostra ser negra 64% da população carcerária do país. Em sua maioria, de baixa renda e baixa escolaridade. Uma dura realidade que reflete o racismo estrutural entranhado em nosso modus operandi social e que precisa desaparecer. A caridade que não conhece latitudes e não distingue cor, como bem ressalta “O Livro dos Espíritos”, tem de ocupar o lugar que lhe é devido no concerto da orquestra, que precisa afinar os instrumentos para que a fraternidade se faça presente entre nós.

Enfatizo a questão do racismo porque já vi, em redes sociais de pessoas espíritas, um questionamento infeliz à frase “Vidas negras importam” (“Black lives matter”), que ganhou o mundo quando o norte-americano George Floyd, em maio de 2020, foi morto na cidade de Minneapolis devido a uma abordagem policial totalmente equivocada. Desde então, “Vidas negras importam” passou a ser palavra de ordem onde quer que haja racismo, inclusive no Brasil. Alguns espíritas desavisados, no entanto, andaram criticando a frase. Para tanto, alegam que, na verdade, todas as vidas importam, e não somente as vidas negras.

Trata-se de uma interpretação equivocada. Quando afirmamos que as vidas do povo negro importam, eu não estou dizendo que elas devem valer mais que as do povo branco ou amarelo. Estou dizendo que elas valem menos porque, historicamente, o negro é tratado, há séculos, como cidadão de segunda classe. Entrar numa loja de roupas ou numa agência bancária, para um branco, não é a mesma coisa para um negro. Os brancos não são alvo de olhares furtivos e desconfiados. Participar de um processo seletivo para uma vaga de engenheiro, por exemplo, também não é a mesma coisa para um jovem negro em contraponto ao que um rapaz branco vivencia quando passa pela mesma situação. Imaginem quando se trata de uma abordagem policial. O negro, infelizmente, é sempre visto como eventual suspeito até que prove o contrário, quando consegue provar. Por isso, quando digo que vidas negras importam, eu não estou dizendo “E as vidas brancas que se lixem”. Da mesma forma que, quando defendo a preservação da ararinha azul, eu não estou querendo dizer “E as andorinhas que vão às favas”.

No livro “A Gênese”, capítulo 17, itens 31 e 32, ao analisar o dito evangélico “Um só rebanho para um só pastor”, (João, cap. 10, v. 16) Kardec afirma que a unidade religiosa será feita “como já tende a fazer-se socialmente, politicamente, comercialmente, pela queda de barreiras que separam os povos”.

Quando Kardec fala em unidade religiosa, não é para que todos se convertam à mesma religião. Mesmo porque, o Espiritismo não é somente uma religião. O Codificador deixa claro que o senso de justiça à luz da imortalidade da alma imperará, fazendo com que os homens se vejam como irmãos em humanidade. Por conseguinte, as diferenças sociais, políticas, econômicas e comerciais, que causam tantas desigualdades e injustiças, desaparecerão. Seremos, portanto, um só rebanho, livre de fronteiras e barreiras sociais, raciais e afins que ainda teimam em nos infelicitar.


Bibliografia:

1- KARDEC, Allan – A Gênese, Federação Espírita Brasileira (FEB), 34ª Ed., 1991, Brasília, DF.

2- ______ – O Livro dos Espíritos, Federação Espírita Brasileira (FEB), 60ª Ed., 1984, Brasília, DF.

3- A Última Abolição – clique aqui


 

 

     
     

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