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por Ricardo Baesso de Oliveira

 

O espírito da solidariedade


A palavra solidariedade tem origem no francês solidarité, que remete a uma responsabilidade recíproca. Assim, ser solidário é ser responsável pelos outros. Kardec reconhecia a grandeza de Deus nessa admirável harmonia que forma a solidariedade em todas as coisas da Natureza.[i]

Na obra kardequiana, encontramos, ocasionalmente, a expressão solidariedade ou fraternidade universal, para expressar a força que liga afetivamente todos os seres vivos da criação, irmanados em sua origem divina. Ao comentar sobre o modo espírita de pensar, Kardec coloca que o Espiritismo mostra a solidariedade que conjuga todas as existências de um mesmo ser, todos os seres de um mesmo mundo e os seres de todos os mundos. E assim vai facultar uma base e uma razão de ser à fraternidade universal.[ii]

Habitualmente, relacionamos a solidariedade com a ação piedosa que é movimentada em direção daquele que sofre, acometido por uma enfermidade, uma desilusão ou coisa equivalente. A solidariedade, todavia, transcende esse conceito, embora o englobe.

Max Scheler, pensador alemão, morto em 1928,[iii] admitiu, em uma divisão didática, duas formas para a solidariedade, a forma de compaixão e a de congratulação. A primeira relaciona o homem ao sofrimento alheio e a segunda o identifica com a alegria do próximo. Segundo Scheler, a congratulação está, axiologicamente, acima da compaixão, pois não é concebível que a esfera do sofrimento seja maior que a da felicidade. De acordo com essa proposta, somos mais valorosamente solidários quando nos alegramos com a alegria alheia, do que quando sofremos com a dor do nosso próximo.

A forma congratulatória da solidariedade se manifesta quando compartilhamos a alegria, as vitórias e as conquistas dos outros como se fossem nossas, com um sentimento sincero de contentamento. Nesse particular, um ato genuíno de congratulação seria incompatível com a inveja (seria o seu contrário?). A inveja, entendida como a sensação de desprazer ante a alegria ou a vitória de outro, é um sentimento egoísta, enquanto a congratulação é um sentimento de alteridade, é um jubilar-se pelo sucesso ou felicidade alheia.

A forma compassiva da solidariedade evoca a piedade, a bondade e a caridade que se verificam quando alguém necessitado de ajuda recebe essa ajuda, desinteressadamente, gratuitamente, despretensiosamente.

A solidariedade compassiva, via de regra, é precedida pelo sentimento de empatia, que nos torna emocionalmente sensibilizados ao sofrimento alheio. Segundo Marshall Rosenberg, autor do livro Comunicação não violenta, empatia é a compreensão respeitosa daquilo por que os outros estão passando, e só ocorre, de verdade, quando nos livramos de qualquer ideia preconcebida e de julgamentos.

Edith Stein (1891-1942) entendia a empatia como a apreensão das vivências alheias, isto é, a percepção das vivências o outro:  o mundo em que eu vivo não é apenas um mundo de corpos físicos, além de mim há também nele sujeitos com suas vivências e eu sei desse vivenciar. Para Edith a empatia estava na capacidade de apreender a vivência do outro que nos é transcendente, ou seja, uma experiência da experiência alheia.[iv]

Mas entendemos que a solidariedade pode transcender a congratulação e a compaixão e tornar-se uma disposição de ânimo, um estado de espírito, que deve existir de maneira permanente, em qualquer contexto, relacionando-nos a qualquer forma de vida e a tudo aquilo que mantém a vida no universo. Francisco de Assis captou isso ao chamar a natureza de irmã; desejava mudar a relação com a natureza de serva do homem para parceira. Seria a solidariedade uma espécie de abertura ao outro, de boa vontade permanente, de respeito incondicional ao diferente e às diferenças. 

Em sua expressão mais sublime, a solidariedade é capaz de atitudes sobre-humanas, pouco compreensíveis, ou nada aceitáveis, para o homem vulgar.

Madre Tereza de Calcutá impunha a si mesma e àquelas que se filiavam a sua organização uma vida sacrificial, o banho frio e o leito duro. Não havia penitência nessa ação, e sim, solidariedade aos que nada tinham.

Simone Weil (1909-1943) passou a dormir no chão, a partir do momento em que os jovens soldados franceses mobilizados na guerra contra os alemães não tinham um colchão para fazê-lo. Alimentava-se exatamente da mesma limitada porção de comida destinada aos pobres, durante a guerra, embora fosse de uma família que tinha recursos. Na experiência de quase um ano como operária em uma fábrica de automóvel, recusou-se a continuar vivendo na espaçosa e confortável residência da família e foi habitar um quartinho frio, alugado à guisa de pensão, porque pobremente viviam os “colegas” da fábrica.

Até mesmo Francisco de Assis, algumas vezes criticado, por sua adesão a pobreza e sua rejeição aos estudos e livros laicos, agia assim, possivelmente, por grandioso espírito de solidariedade.

Vivia em uma época muito distante dos institutos de previdência social, que só se tornariam realidade a partir de 1883[v]. Não havia nesse período da história aposentadoria por velhice, ou invalidez, afastamento renumerado do trabalho para cuidar da saúde e pensão para as viúvas. Grande parte dos miseráveis e mendigos dessa longa fase da história era vítima de um total descaso social, impossibilitados, mesmo se quisessem, de se identificar com o mínimo à sobrevivência. Daí, Francisco considerar a esmola como uma herança e um justo direito devido aos pobres[vi]. De forma alguma, podemos considerar esse pensamento como uma devoção à mendicância profissional, e, sim, uma atitude corajosa e sacrificial de colocar-se ao lado daqueles que nada podiam fazer para subtrair-se da miséria.

Quanto à hostilidade de Francisco pela atividade intelectual, devemos lembrar que os livros, naquela época, eram verdadeiros objetos de luxo. Além disso, o saber intelectual costumava ser uma fonte de orgulho e de dominação sobre os iletrados.

Estamos muito distantes dessa disposição permanente de solidariedade, mas podemos caminhar um pouco mais no sentido de ampliar nossa capacidade de amar, de compreender o outro, e de estarmos presentes, atentos e disponíveis na tristeza e na alegria daqueles que compartilham conosco a presente experiência corpórea.

A experiência da solidariedade, mesmo de uma forma elementar e, até mesmo, pouco perceptível, contribui na dissolução do egoísmo, matriz da imperfeição humana, lembrando, com Kardec, que ao destruir os preconceitos de seita, casta e cor, o Espiritismo ensina aos homens a grande solidariedade que deve uni-los como irmãos.[vii]

E ainda o codificador:

Quando os homens tiverem despido o egoísmo que os domina, viverão como irmãos, não fazendo o mal e ajudando-se reciprocamente pelo sentimento mútuo da solidariedade. Então, o forte será o apoio e não o opressor do fraco e não se verão homens desprovidos do necessário, porque todos participarão da lei da justiça. É o reino do bem que os Espíritos estão
encarregados de preparar. 
[viii]


 

[i] LE, item 607-a

[ii] E.S.E, cap. 2, item 7

[iii] A ética de Max Scheler, Alan Carneiro e Marconi Pequeno

[iv] idem

[v] JUS.com.br 14/12/2013

[vi] Ética, Fabio Konder Comparato

[vii] LE, item 779

[viii] LE, item 916


 

 

     
     

O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita