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por Astolfo O. de Oliveira Filho

 

Kardec e as discórdias entre os espíritas


Quem já teve contato com os Evangelhos certamente conhece um dos mais importantes depoimentos deixados por Jesus, que asseverou, certa vez, que seus verdadeiros discípulos seriam conhecidos por muito se amarem.

Apesar de haver sido dita por Jesus, a frase foi solenemente ignorada por muitos indivíduos que, valendo-se do argumento de que defendiam a fé cristã, chegaram a combater e perseguir companheiros com cujas ideias não concordavam. A perseguição feita aos huguenotes(1) foi disso um expressivo exemplo, como aliás o fora toda a perseguição feita ao longo do tempo pela Igreja aos chamados hereges.

Estaria o movimento espírita isento de problemas dessa ordem?

Antes de tratar do assunto, examinemos a frase dita por Jesus: “Meus discípulos verdadeiros serão conhecidos por muito se amarem”.

A interpretação do texto leva-nos às considerações abaixo.

Se os que se dizem discípulos do Cristo não se amam, não são eles, em verdade, discípulos. Se insistem em dizer-se discípulos, não o são verdadeiros, ou seja, trata-se de falsos discípulos.

Em uma conhecida classificação dos espíritas publicada em O Livro dos Médiuns, Kardec valeu-se da denominação “espíritas cristãos” para designar os verdadeiros espíritas, isto é, os que conhecem, estudam, aceitam e, mais do que isso, praticam os ensinamentos espíritas, movidos sempre pelo desejo do bem e tendo por farol de suas ações a caridade.

Juntando os dois pensamentos – a afirmativa de Jesus e a análise feita por Kardec – podemos concluir que se não existir o sentimento de amor, de respeito, de fraternidade entre dois espíritas, não podem, tanto um quanto o outro, merecer o título de “discípulo do Senhor” nem o qualificativo de “verdadeiro espírita” e, por conseguinte, de “espírita cristão”.

Como o movimento espírita é formado por pessoas situadas nos mais diferentes níveis evolutivos, é evidente que não se encontra ele isento dos desentendimentos e das rusgas que deparamos, às vezes, nas instituições espíritas mais conceituadas, algo que não ocorre apenas em nossa cidade, mas em diferentes lugares.

Kardec referiu-se, certa vez, a esses conflitos em discurso pronunciado nas reuniões gerais dos espíritas de Lião e Bordéus. (Cf. “Viagem Espírita em 1862”, Editora O Clarim, pp. 76 a 105.)

Disse, então, o Codificador do Espiritismo:

 

“Se, entre vós, há dissidências, causas de antagonismos, se os grupos que devem todos marchar para um objetivo comum estiverem divididos, eu o lamento, sem me preocupar com as causas, sem examinar quem cometeu os primeiros erros e me coloco, sem hesitar, do lado daquele que tiver mais caridade, isto é, mais abnegação e verdadeira humildade, pois aquele a quem falta a caridade está sempre errado, assistido embora por qualquer espécie de razão, pois Deus maldiz quem diz a seu irmão: racca.” (Obra citada, pág. 101.)

 

O conselho do Codificador em casos tais é muito claro e vem a propósito nesta hora difícil em que desentendimentos diversos têm-se verificado em nosso meio. “Abafai as discórdias”, propõe-nos ele. “Seja-vos possível fundir-vos em uma única e mesma família e dar-vos mutuamente, do fundo do coração e sem pensamento premeditado, o nome de irmãos.” (Idem, ibidem.)

Uma providência que poderia ser útil a nós e aos nossos irmãos seria a divulgação dos pensamentos aqui examinados, os quais têm por base a exata dimensão do que o ensino moral contido nos Evangelhos representa em nossa vida.

Nesse sentido, é bom lembrar o que Kardec escreveu e consignou na Introdução d’ O Evangelho segundo o Espiritismo:

 

“Diante desse código divino [ele se refere ao ensino moral contido nos Evangelhos], a própria incredulidade se curva. É terreno onde todos os cultos podem reunir-se, estandarte sob o qual podem todos colocar-se, quaisquer que sejam suas crenças, porquanto jamais ele constituiu matéria das disputas religiosas, que sempre e por toda a parte se originaram das questões dogmáticas. Aliás, se o discutissem, nele teriam as seitas encontrado sua própria condenação, visto que, na maioria, elas se agarram mais à parte mística do que à parte moral, que exige de cada um a reforma de si mesmo. Para os homens, em particular, constitui aquele código uma regra de proceder que abrange todas as circunstâncias da vida privada e da vida pública, o princípio básico de todas as relações sociais que se fundam na mais rigorosa justiça. E, finalmente e acima de tudo, o roteiro infalível para a felicidade vindoura, o levantamento de uma ponta do véu que nos oculta a vida futura.” (Obra citada)


(1)
 Designação depreciativa que os católicos franceses deram aos protestantes, especialmente aos calvinistas, e que estes adotaram. P. extensão, protestante.
 
 
 

     
     

O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita