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por Marcus Vinicius de Azevedo Braga

 

“Soul” e a missão libertadora


O final do conturbado 2020 nos presenteou com a estreia no streaming de uma pérola da animação. O filme “Soul” (Peter Docter/2020) que, como o filme do mesmo estúdio (Pixar), “Viva, a vida é uma festa” (Adrian Molina, Lee Unkrich/2017), explora questões transcendentais e filosóficas, tão caras a nós, espíritas. Sobre esse filme escrevi algumas linhas, que serão melhores aproveitadas na reflexão por quem assistiu ao mesmo. Se não o fez, faça-o agora. É imperdível.

Sem me deter no roteiro do filme especificamente, vou pular diretamente para sua mensagem principal: a de que não existe uma missão na Terra. Não no sentido pragmático, de se ter um objetivo sociotécnico, do tipo “eu encarnei para ser músico”, como se isso fosse um determinismo sem o qual a nossa jornada não se completaria, um argumento que serve de desculpas ou muletas para ações obcecadas, egoísticas, nos chamados sonhos disfarçados de ambição desenfreada, que, por vezes, nos hipnotizam e cegam.

Essa ideia do filme, de matriz filosófica existencialista, dialoga com a visão espírita de reencarnação, e com proposições que vemos na prática, de almas gêmeas, ou de missões estritamente determinadas antes da encarnação, fazendo da existência um jogo já combinado de deuses, ao estilo do antigo Olimpo, e não uma construção na qual aproveitamos oportunidades que se descortinam, de acordo com as nossas necessidades evolutivas, e traçamos jornadas, com pessoas da nossa rede, mas com outras também, passando por novos temas e por novas aprendizagens, ressignificando o conceito de evolução.

Nessa visão, a reencarnação perde aquela concepção estrita de cumprir um roteiro rígido e predeterminado, para ser um caminho de experienciação evolutiva, na qual o aprendizado e a entrega aos que nos cercam tem um grande sentido, e somos convidados a nos superar, fazendo a lógica da prova se sobrepor a das expiações. Então, a vida deixa de ser vista como um sofrimento pesaroso – em que devemos pagar pela nossa desobediência a um poder tirano – para ser uma oportunidade de reinício e de reconstrução, de um pai amoroso que nos oportuniza.

Essa narrativa é bem trabalhada no filme, trazendo uma nova leitura para a pergunta 132, de “O Livro dos Espíritos”: Qual o objetivo da encarnação dos Espíritos? “Deus lhes impõe a encarnação com o fim de fazê-los chegar à perfeição. Para uns, é expiação; para outros, missão. Mas, para alcançarem essa perfeição, têm que sofrer todas as vicissitudes da existência corporal: nisso é que está a expiação. Visa ainda a outro fim a encarnação: o de pôr o Espírito em condições de suportar a parte que lhe toca na obra da criação. Para executá-la é que, em cada mundo, toma o Espírito um instrumento em harmonia com a matéria essencial desse mundo, a fim de aí cumprir, daquele ponto de vista, as ordens de Deus. É assim que, concorrendo para a obra geral, ele próprio se adianta”.

Note, estimado leitor, que a ideia de pagar por coisas, ou ainda, de colocações determinísticas na vida social, não tem espaço nessa definição trazida pela nossa obra primeira. Seria um reducionismo fazer de nossa existência uma peça teatral de um diretor radical, na qual nos caberia ser, apenas, coisas ao seu gosto. O que se propõe é que a vida se faz maior quando a vivenciamos, e de que forma passamos por essa experiência, e que frutos colhemos na cesta do espírito que levaremos para as outras vidas.

Uma visão libertadora que, para aqueles que sofrem ao lado de pessoas, por entenderem ali estar o seu compromisso, ou pelos que perseguem, obcecados, carreiras de renome, justificando ali a sua tara por conta de questões reencarnacionistas, traz uma visão de que a reparação, parte essencial da evolução, precisa de interações mais profundas, e que não nascemos para ser coisas, mas para vivenciar situações que nos trazem crescimento espiritual. E que se descortinam; algumas planejadas, outras não.

A encarnação é uma nova oportunidade de aprendizado da escola da existência. Um espaço aberto de possibilidades que nos atendam como espírito, construindo opções e caminhos e fazendo a diferença – para os que nos cercam e para nós mesmos. Se a vida tivesse o seu ápice quando chegamos ao sucesso em algum aspecto profissional, como é discutido no filme, desprezaríamos o seu papel experiencial, de viver esse e outros papéis, importantes na jornada até lá, mas, também, pelo viver o após e o transversal a isso tudo.

Olhamos pessoas de destaque e pensamos que elas nasceram assim, e esquecemos que aquela condição é a construção de várias existências e que tem o potencial de aprendizado, mas também de derrocada. Justificar apenas pela missão espiritual e diminuir o potencial de uma oportunidade de crescimento no caudaloso rio da vida que, consoante ao dito por Jesus, é regido por um Pai que faz nascer o seu sol sobre maus e bons, e faz chover sobre justos e injustos.



 

     
     

O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita