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por Ricardo Baesso de Oliveira

 

Ainda sobre a ação social espírita


Volta e meia alguns temas são reexaminados e rediscutidos no movimento espírita. Um deles é a ação social espírita.

Houve tempo em que a atividade espírita em prol dos socialmente necessitados consistia unicamente em uma ajuda material: cestas básicas, remédios, roupas, enxovais, natal dos pobres etc. Posteriormente, a essa ação de cunho material associou-se um pequeno suporte espiritual, com passes, água fluidificada e palestras.

Recentemente, alguns confrades vêm questionando a validade da ação de dupla natureza, sob a justificativa de que pode constituir-se em obstáculo à liberdade de consciência do indivíduo, além de ser uma forma de proselitismo. Segundo eles, o centro deve oferecer o socorro material sem que o necessitado seja obrigado a assistir as palestras, ou coisas equivalentes. Acreditam que realizar qualquer tipo de troca quando o assunto é a emancipação das consciências não parece ser a melhor atitude.

Outros confrades, assumindo posicionamento diverso, questionam a tradicional ação espírita de socorro à pobreza, afirmando que não é função das casas espíritas conduzir atividades socioassistenciais, mas apresentar as sementes do pensamento espírita, único capaz de libertar as consciências de todo sofrimento.

Contribuindo nessa reflexão, trouxemos o pensamento de Deolindo Amorim. Personagem marcante do Espiritismo no século passado, Deolindo era formado em Sociologia, jornalista conceituado e um dos fundadores do Instituto de cultura espírita do Brasil (ICEB), no Rio de Janeiro, uma das primeiras instituições a oferecer os cursos regulares de Espiritismo. Isso por volta de 1957.

As ideias que apresento abaixo foram extraídas do livro O Espiritismo e os problemas humanos, escrito em 1948 e reescrito em 1984. A obra encontra-se disponível gratuitamente na internet.

 

O movimento espírita não pode ficar alheio aos problemas sociais, cumprindo-lhe por isso, interferir na solução desses problemas; devemos desenvolver e aprimorar cada vez mais a consciência de participação na vida social, em harmonia com o legítimo pensamento da Doutrina, que não quer o espírita fora do mundo, mas dentro do mundo, ajudando a transformá-lo.

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É verdade que a Doutrina se preocupa, acima de tudo, com o lado espiritual da vida, mas nem por isso devemos desconhecer as omissões da sociedade, que é culpada de muitos dramas e conflitos por causa de sua indiferença diante de injustiças de toda ordem. E a sociedade somos todos nós, logo, também nos cabe uma parte de responsabilidade. [...] Não se compreende tamanha desigualdade sob o céu de uma civilização cristã.

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A solução espírita é muito mais humanista do que as soluções de interesse simplesmente político, pois não basta oferecer o necessário à subsistência, que é dever elementar, nem promover ascensões violentas, porque é preciso educar, preparar o homem, melhorar também o sistema que o envolve e remover hábitos, ideias e processos defeituosos ou viciados de sua formação e do ambiente de origem. A solução é global, não pode ser parcial, nem momentânea.

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Quando Jesus recomenda vestir os nus e dar pão a quem tem fome, implicitamente está ensinando ação social, que é uma forma prática de aplicar o Evangelho. O movimento espírita, neste particular, já está em campo há muito tempo. Mas a solução proposta pela Doutrina Espírita não é unilateral, é diferente de outras soluções. Antes de tudo, precisamos ter em vista, sempre e sempre, a premissa básica do Espiritismo: a ação social é um meio, e um meio necessário, mas não o fim último de nossa realização.

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Não se melhora o homem, profundamente, apenas pela comida e pela roupa. Temos de ir mais longe. Se é verdade que nos cumpre matar a fome física como dever inadiável, também é verdade que não podemos deixar em segundo plano as necessidades de ordem espiritual, pois no ser humano coexistem a fome do corpo e a fome do espírito. Dentro desta concepção, naturalmente a ação social do Espiritismo não poderia reduzir-se ao suprimento exclusivo das carências materiais. Seria uma assistência incompleta, conquanto benéfica e de caráter premente. Quem está faminto e abandonado cria "alma nova", como se diz, quando recebe um prato de comida, mas o resultado do benefício, que é, aliás, um dever elementar, pode ser apenas momentâneo ou passageiro, se não houver uma palavra de orientação e reerguimento espiritual.

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Se o indivíduo volta ao que era, depois de alimentado, retornando à trilha do vício e do crime, sem o menor indício de transformação, evidentemente o trabalho de assistência ficou na superfície, porque não penetrou na alma. Justamente por isso, a visão espírita do problema é diferente: a assistência deve corresponder também às necessidades do espírito, pois é preciso despertar o homem, mostrar-lhe a vida por outro prisma, levá-lo a formar uma consciência de responsabilidade perante o seu próximo e perante as leis divinas.

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Já se sabe que. diante de um quadro pungente ou desesperador de miséria, onde há revolta e lágrimas por causa da fome, não é com um discurso nem um sermão que se abranda uma criatura que já não pode fazer uso da razão, já perdeu a fé em si mesma, nos homens, em tudo, afinal. A solução, no caso, terá de ser prática, imediata. Dê-se-lhe o alimento, antes de quaisquer observações teóricas. Quem chega a esse ponto, naturalmente sente a mensagem do Cristo cada vez mais distante. Não basta, porém, alimentar e deixar como está. E como falar da mensagem do Cristo, como dizer que ela não está distante sem ajudar, sem conversar, sem instruir? É o outro aspecto da assistência preconizada pelo ensino espírita.  

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O programa espírita no campo social não está, portanto, fora da realidade humana, tanto assim que a Doutrina desaprova o procedimento dos que "fogem" do mundo ou ficam à parte, pois não se pode recomendar a observância de princípios superiores sem conhecer o mundo, sem sentir os problemas de perto, tal como Paulo, pois é pelo trabalho junto às necessidades do corpo e do espírito que se desenvolve a ação social do Espiritismo. E se o Espiritismo significa, para nós, a restauração do Cristianismo em sua expressão mais viva, sem roupagens de culto externo e sem instituições hierarquizadas, portanto, o trabalho espírita de assistência é uma afirmação do Cristianismo, porque leva mensagem de amor sem nenhuma discriminação religiosa e sem o mínimo intuito de proselitismo.

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Nesta linha de procedimento, consequentemente, não se pode perder de vista a necessidade da reforma do homem, por mais relevante ou imperiosa que seja a assistência material. Dar o alimento, a roupa, o remédio e o abrigo, segundo a natureza dos casos, é um recurso imediato, a bem dizer imposto pelo dever de solidariedade humana, quando se tem a consciência desse nobilitante dever. Muitas vezes se observa, na vida prática, o impulso generoso de um descrente ou apontado como ateu, com verdadeiro espírito de sacrifício pelo seu semelhante, ao passo que muitos crentes, entre os que vivem de Evangelho na mão e não faltam às cerimônias do templo, ficam indiferentes aos apelos da dor e aos quadros deprimentes da pobreza desamparadas, porque preferem a comodidade e as grandezas de seu mundo de egoísmo.

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A visão espírita de assistência abrange o homem na totalidade, justamente porque, além do plano biológico, onde se localizam as necessidades básicas do mecanismo orgânico, existem direitos e aspirações que dizem respeito à destinação superior do homem. Cumpre, pois, ajudar o homem a melhorar-se nos três planos - material, intelectual e espiritual - não importa o grupo étnico a que pertença ou o meio social de onde provenha. É o ser humano, antes de tudo, em sua conceituação global. Não podemos, entretanto, pensar em melhorá-lo sem que lhe ofereçamos instrumentos que o ajudem a reerguer-se, compenetrando-se conscientemente de seu papel no mundo. Por isso mesmo, repetimos que a comida e a roupa têm muito valor em seu momento mas é indispensável libertá-lo da ignorância e reintegrá-lo na dignidade da vida pelo conhecimento e pela reeducação. Não podemos certamente alimentar ilusões com programas que vejam somente a solução material. Seria como que um retorno à época do "pão e circo".

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Como seria possível uma ordem social realmente justa sem atenção à pessoa humana, sem liberdade, sem amor, mas amor na acepção elevada de respeito e solidariedade sem discriminação? [...] Para os espíritas, finalmente, o Cristianismo não é apático. Se, na realidade, o cristão ficasse apenas na fé, rezando e contemplando o mundo a grande distância, sem participar do trabalho de transformação do homem e da sociedade, jamais a palavra do Cristo teria influência ponderável. O verdadeiro cristão, o que tem o Evangelho dentro de si, e não o que apenas repete versículos e sentenças, não pode cruzar os braços dentro de um mundo arruinado e poluído pelos vícios, pela imoralidade e pelo egoísmo.



 

     
     

O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita