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por Rogério Coelho

 

Não se tratava de pleonasmo

 

Para receber a palavra divina é necessário apresentar o coração vazio de resíduos da Terra


“E Ele lhes disse: como não entendeis ainda?” - 
Jesus. (Mc., 8:21).

 

Misoneísta por excelência, a humanidade tem sido contumaz na atitude de fazer ouvidos moucos a todo fator ou a qualquer situação que, de uma forma ou de outra, venha desalojá-la de sua ancestral quão funesta acomodação. Assim, vão se forjando as paralisantes tradições na esteira do tempo, e as criaturas não se sentem motivadas a se emanciparem do círculo vicioso que as conservam limitadas entre as inexpugnáveis e cerceantes muralhas da mesmice...

Profundo conhecedor das humanas limitações, Jesus não estava Se valendo de pleonasmos nas expressões neotestamentárias, quando Se referia[1] a “olhos de ver” e “ouvidos de ouvir”. Sua intenção outra não era senão chamar a atenção de Seus ouvintes. Era como se dissesse: “prestem atenção!”; “o que eu vou lhes dizer agora é importante para suas vidas!”; “fiquem atentos!”; “não deixem passar esta oportunidade de aprendizado!...”. Tal, também, o sentido de Sua frase inúmeras vezes repetida: “em verdade, em verdade vos digo...”

Até mesmo os próprios integrantes do Colégio Apostólico não conseguiam, algumas vezes, alcançar o sentido de muitas palavras Suas. Só mais tarde é que iriam compreendê-las, exceto aqueloutros ensinamentos que ficariam sob o encargo do outro Consolador revelar, bem mais tarde...

Na verdade, hodiernamente, entender, nós já entendemos. O difícil é transportar o “discurso” teórico para o “curso” prático de nossas vidas. Como temos lá as nossas dificuldades, as nossas idiossincrasias e nossos sofismas, vamos continuando a nos fazer de desentendidos. É assim que ainda nos damos ao luxo de conservar comburentes mágoas em nosso coração, quando Ele ensinou que devemos levar as expressões do vero amor até mesmo aos nossos mais ferrenhos inimigos.

Muitas vezes Jesus perguntou aos Seus boquiabertos ouvintes: “por que não me entendeis?”[2]

Ante tão direto questionamento de Jesus, Emmanuel elucida[3]a linguagem do Cristo sempre se afigurou a muitos aprendizes indecifrável e estranha... Fazer todo o bem possível, ainda quando os males sejam crescentes e numerosos; emprestar sem exigir devolução; desculpar incessantemente; amar os próprios adversários; ajudar aos caluniadores e aos maus...

Muita gente escuta a Boa Nova, mas não lhe penetra os ensinamentos. Isso ocorre a muitos seguidores do Evangelho, porque utilizam a força mental em outros setores. Creem vagamente no socorro celeste, nas horas de amargura, mostrando, porém, absoluto desinteresse ante o estudo e ante a aplicação das leis divinas. A preocupação da posse lhes absorve a existência... Reclamam o ouro do solo, o pão do celeiro, o equilíbrio da carne, o prazer dos sentidos e a consideração social, com tamanha volúpia que não se recordam da posição de simples usufrutuários do mundo em que se encontram, e nunca refletem na transitoriedade de todos os patrimônios materiais, cuja função única é a de lhes proporcionar adequado clima ao trabalho na caridade e na luz para engrandecimento do espírito eterno.

Registram os chamamentos do Cristo, todavia algemam furiosamente a atenção aos apelos da vida primária. Percebem, mas não ouvem. Informam-se, mas não entendem. Conservam no coração enormes potenciais de bondade, contudo, a mente deles vive empenhada no jogo das formas perecíveis. São preciosas estações de serviço aproveitável com o equipamento, porém, ocupado em atividades mais ou menos inúteis.

Não nos esqueçamos, pois, de que é sempre fácil assinalar a linguagem do Senhor, mas é preciso apresentar-lhe o coração vazio de resíduos da Terra, para receber-Lhe, em espírito e verdade, a palavra divina”.

Também comentou com muita precisão o nosso irmão Martins Peralva[4]: “ante a realidade do túmulo vazio, situado nos generosos domínios de José de Arimateia, as mulheres que tinham vindo da Galileia se lembraram das palavras de Jesus, acerca da ressurreição no terceiro dia... Enquanto o Senhor estava com elas, com os discípulos e o povo, que Lhe desfrutavam a presença sublime, não Lhe conseguiam guardar os ensinos, pois Lhe esqueciam as lições, claras algumas vezes, noutras ocasiões ocultas sob o véu da alegoria e das parábolas. Ouviam, mas não guardavam. Registravam a suave ressonância do Seu verbo luminoso, mas não Lhe absorviam o conteúdo divino e eterno.   Inúmeras vezes, conforme descrevem os Evangelistas, confundem os Seus ensinamentos, dando-lhes interpretações em desacordo com o real sentido deles.  

O mesmo fenômeno se verifica com referência às mensagens que a Espiritualidade Superior nos está enviando, em sucessivas ondas de luz e amor, numa demonstração de que as comportas celestes continuam abertas de par em par.

Jesus retornou ao mundo para educar e salvar, para consolar e esclarecer. Trouxe-nos, de novo, fartas messes, que nos compete assimilar e reter, ouvir e guardar...

Lições em torno da fraternidade, para que o amor se expanda; incentivos ao estudo nobre, para que a cultura dignifique e eleve a criatura humana; exortações à indulgência, para que a compreensão e o respeito favoreçam a convivência harmoniosa; valiosos conceitos sobre o perdão, para que se não adube a sementeira do ódio; incessantes alvitres à reforma íntima, em consecutivas efusões de luz e misericórdia, enlevam-nos o coração comovido, sempre que as mensagens surgem, aqui e alhures...  Ao suave impulso da palavra do Alto, indefinível paz invade-nos a alma, trazendo-nos a confortadora certeza da presença do Mestre no santuário da nossa cons­ciência.

Todavia, obediência e fraternidade, estudo e indulgência, perdão e esforço renovador são, ainda, os “grandes ausentes” da nossa caminhada.  Mais tarde, contudo, quando se der o inevitável re­torno de nossos Espíritos aos planos subjetivos, pela desencarnação, lembrar-nos-emos, surpresos ou desola­dos, das palavras desses abnegados instrutores...

A mensagem renovadora é tão necessária ao Espírito imortal como o pão diário ao corpo transitório. É imprescindível, contudo, não só assimilar e reter, ouvir e entender, mas, sobretudo, guardar e viver o que o Céu tem enviado, com tamanha prodigalidade, mercê de instrumentos mediúnicos devotados e seguros.

Guardar o ensino, exemplificando-o, constitui, em verdade, garantia de aproveitamento e iluminação, agora e sempre, hoje e amanhã...”  


 


[1] - Mt., 11:15.  

[2] - Jo., 8:43.

[3] - XAVIER, F. Cândido.  Fonte Viva. 10. ed. Rio [de Janeiro]: FEB, 1982, cap. 48.

[4] - PERALVA, Martins. Estudando o Evangelho.  3. ed. Rio [de Janeiro]: FEB, 1975, cap. 39.


 

 

     
     

O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita