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por Vladimir Alexei

 

Dias nublados


Em meio à persistente pandemia que assola o ano de 2020, em todo o mundo, muitas reflexões surgem, fruto da observação dos movimentos existentes na atualidade.

No meio espírita, os escândalos se sucedem ininterruptamente. A Federação Espírita Brasileira, que se autoproclama “Casa-Máter” do Espiritismo no Brasil, volta e meia colhe o fruto de alguma decisão equivocada do passado distante ou recente. No passado distante mora o docetismo, pertinente, sorrateiro e que permeou o movimento espírita dobrando a cerviz de muitos que acreditaram nessa reedição espírita do Vaticano.

Em passado recente – que se mistura ao passado mais distante pela repetição –, a FEB é envolvida em “adulterações” e, como se surpreendesse alguém a sua decisão, mantém-se firme negando, sendo evasiva e assegurando tratar-se de “atualização ortográfica” ou até mesmo adequação do conteúdo para melhor entendimento na atualidade. É uma obra que precisa ser revista e refeita, para corrigir mandos e desmandos de mais de um século.

Documentos pessoais, pertencentes ao acervo de Allan Kardec, manuscritos diversos, são disponibilizados a conta-gotas, ou então, por meio de livros extensos, repetidos, de leitura enfadonha, que beneficiam apenas quem produz; afinal, os documentos do acervo de Allan Kardec deveriam ser interpretados por cada um, de acordo com seu entendimento e não com base no olhar de um ou de outro. Sem contar, evidentemente, que o principal continua sendo o estudo das obras de Allan Kardec, a Doutrina Espírita.

A chuva de “lives” se arrasta e com ela uma infinidade de impropérios endereçados a lideranças, instituições, coachings, autores de “autoajuda”, “psicólogos e psicanalistas”, que se acotovelam na divulgação de quase tudo, menos Espiritismo. De um lado a fala açucarada daqueles que não desejam embates e conclamam todos a se amarem porque o momento exige; de outro, aqueles que se colocam como instrumentos de justiça “colocando pingos nos is”. No meio, o espírita e o simpatizante, reféns dessas sandices, em busca apenas e tão somente de aprender sobre o Espiritismo. O estrago é tão grande, mas o ego é tão maior que essas tais lideranças não enxergam.

Esses arroubos do ego, as lideranças despreparadas, a prática distante da teoria, o ganho em detrimento do gratuito, as obras complexas ante a necessidade do simples, fizeram com que o jovem se afastasse do Espiritismo. Em pesquisa realizada pelo Sr. Ivan René Franzolim, em 2020, apenas 0,8% dos respondentes possuíam entre 14 e 20 anos, em um total de 3.684 respondentes em 538 cidades, cobrindo todo o território brasileiro. Repetimos: líderes despreparados, que se enxergam missionários, médiuns desequilibrados, vendilhões dos templos e instituições corrompidas, são alguns dos exemplos que podem ser considerados motivos para o afastamento dos jovens.

O mais pessimista, que se diria “realista”, vê tudo isso com tristeza pois, quando os “justiceiros” apontam as incongruências do movimento espírita, “cospem no prato” que já se alimentaram, demonstrando mais uma vez um velho jargão utilizado pelos padres católicos do passado: “faça o que digo, mas não faça o que faço”.

O mais otimista vê todo o movimento como a separação do joio e do trigo, quando esses “infelizes” – que normalmente são aqueles que pensam diferente dos justiceiros, que não possuem a “folha de serviços” que eles possuem ou o “conhecimento” que eles detêm –, serão convidados livremente ou compulsoriamente a deixar o planeta, rumo a um orbe que seja mais adequado ao seu desenvolvimento espiritual. Essa pecha, travestida de “bom senso”, é tão fora de propósito, como a venda de “lotes na Lua” porque é sempre utilizada como a remediar uma contenda, a exemplo de religiões convencionais, quando apelam para a divindade.

Espíritas, de fato, são aqueles que lutam para se transformar e não para transformar o outro a “golpes verbais”. Chico Xavier não tentava traduzir o movimento espírita: ele pregava e vivia o Espiritismo. Carlos Imbassahy se notabilizou pela defesa doutrinária ante os detratores de outras religiões e pensamentos filosóficos, não só pela inteligência nos argumentos, mas pela postura sempre fraterna, reconhecida pelos seus “opositores”, como o Padre Negromonte e o Pastor Jerônimo Gueiros. Herculano Pires foi literalmente preterido pela FEB e teve seu nome aplicado ao index daquela instituição. Em áureos tempos, a FEB viu nele uma ameaça à sua soberania. Deolindo Amorim refugiava-se entre os filósofos da Sociedade Brasileira de Filosofia, levando Léon Denis, como patrono, para o refrigério da alma, já que no meio espírita eram poucos que acompanhavam o alcance de sua obra.

Não sei se vocês perceberam, mas até em outras religiões há mais fraternidade no trato com o espírita, do que entre os próprios espíritas e isso é histórico!

Antigamente, quando nos procuravam para desabafar sobre as agruras vividas no movimento espírita, tentávamos convencê-los a permanecer porque “precisamos” trabalhar nossas emoções etc. e era o que tentávamos aplicar em nós mesmos. Hoje, com um pouco mais de vivência, sugerimos que analisem o contexto: os espíritas que andam “infernizando” sua vida, limitando seus trabalhos, tolhendo a manifestação de pensamentos diferentes, de forma “fraterna”, na realidade, são indivíduos altamente comprometidos com a necessidade de corrigir desmandos do passado, mas que, na vida presente, só conseguem agir dessa forma: desacreditando o outro, tentando limitar as potencialidades do outro ao seu mundo pequeno e assim por diante. É o que eles dão conta de fazer. O nosso papel é compreender, e o nosso desafio é o de não nos agastarmos com isso. O dia que essa postura não incomodar mais, estaremos habilitados a novos desafios, dentro ou fora do movimento espírita. E isso é libertador!

Por fim, ainda que em dias nublados e sem muitas perspectivas de mudança no curto prazo, é possível ser feliz e superar todas essas querelas. Você pode ser espírita e não ter a folha de serviços “formais” que muitos possuem, praticando o Espiritismo por onde passar! É possível ver tudo isso que foi citado e não se deixar afetar, quando você assume seu compromisso de ser melhor hoje e amanhã do que foi ontem! É admiravelmente libertador não se enquadrar em meio a instituições falíveis, com líderes tacanhos, que não representam em absolutamente quase nada aquilo que a Doutrina Espírita preconiza! É empoderador, não se adequar em rótulos que lhe atribuem, pelo simples fato de pensar diferente! É incrivelmente salutar responsabilizar-se integralmente pelo que se diz e faz, sem poder aplicar ou atribuir a terceiros a responsabilidade que lhe cabe! É muito bom ser espírita, sem depender de espíritas e do movimento espírita! Tudo isso “vai passar”...


 

 

     
     

O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita